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Feridas da ditadura sangram de tempos em tempos, dizem presas da era Pinochet

Mulheres detidas e torturadas durante ditadura militar no Chile lamentam crescimento do negacionismo histórico

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Santiago

Cecilia Bottai formalizou sua militância no Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR, na sigla em espanhol) apenas um mês antes do golpe militar que, há 50 anos, iniciou no Chile um regime repressor que duraria 17 anos. E a mola propulsora para sua decisão foram os aprendizados que colheu ao lado de amigos brasileiros.

Estudante de odontologia, ela conheceu no início dos anos 1970, em Santiago, exilados da ditadura que vigorava no Brasil desde 1964. Para muitos deles, Bottai foi fundamental —com sua cidadania chilena e seu passaporte italiano, ela ajudou os brasileiros a cruzarem fronteiras da região com documentos falsos para fugir dos militares.

Até que ela própria foi vítima da repressão.

Cecilia Bottai em Roma, na Itália, ao lado do marido, Patricio Bustos, quando ele chegou no país como exilado político, em dezembro de 1976
Cecilia Bottai em Roma, na Itália, ao lado do marido, Patricio Bustos, quando ele chegou no país como exilado político, em dezembro de 1976 - Arquivo Pessoal

Bottai foi levada pelo regime em setembro de 1975, quando estava grávida de dois meses, à Villa Grimaldi, que até 1978 foi um dos centros secretos de tortura da Dina (Direção de Inteligência Nacional). Estima-se que 4.500 detidos políticos passaram pelo mesmo lugar, hoje um parque aberto ao público e voltado para a preservação da memória.

"Fui torturada mesmo estando grávida. Deram-me choques dizendo que eram 'para a guaguita' [para o bebê]. E seguiram me torturando mesmo após os alertas de um médico. Assim, perdi meu bebê", relatou em uma declaração oficial em 1998.

Antes de ser detida, sua mãe e irmã, sem envolvimento com política, foram levadas pelos militares, que as torturaram em busca de informações sobre o paradeiro de Bottai. Seu marido, Patricio Bustos, a quem conheceu na clandestinidade, também foi levado à Villa Grimaldi.

No cinquentenário do golpe que a violentou e exilou, não há muito a celebrar. "No marco dos 40 anos [em 2013], estávamos melhores do que agora", diz a cirurgiã-dentista de 73 anos à Folha. "A impunidade no Chile abriu espaço para o negacionismo."

Os exemplos da onda negacionista não são difíceis de achar. Há duas semanas, a deputada independente chilena Gloria Naveillán chegou a afirmar publicamente que a violência sexual exercida por militares na ditadura contra prisioneiras políticas faz parte de uma "lenda urbana".

"As vítimas dessas violências sempre tentam cicatrizar as feridas. Mas é impossível. Sempre há algo nessa sociedade que nos agride. Essa ferida periodicamente sangra", diz Bottai.

É uma visão compartilhada por outras mulheres que também foram alvos da repressão do regime de Augusto Pinochet e hoje tentam lidar com o passado ao mesmo tempo em que mantêm viva a memória de um dos momentos mais violentos da história do país.

Cecilia Bottai ao lado dos filhos perto do mural pintado em homenagem a seu marido, Patricio Bustos, em 2019, no bairro Yungay, em Santiago
Cecilia Bottai ao lado dos filhos perto do mural pintado em homenagem a seu marido, Patricio Bustos, em 2019, no bairro Yungay, em Santiago - Arquivo Pessoal

"Quando se nega tudo, é como dizer que o que passamos não existiu. É negar nossa história", diz a psicóloga educacional Hilda Amalia Garcés, 71, também ela uma presa política na Villa Grimaldi, o centro de tortura onde ao menos 241 detidos foram mortos ou desapareceram. "Isso me traz muita dor e raiva."

Também membro do MIR, Garcés, uma estudante de história no início dos anos 1970, vivia com outros militantes em um acampamento na região de Barrancas, em Santiago, onde desenvolvia trabalhos com a população local. Com o golpe de 11 de setembro de 1973, partiu para a clandestinidade. Mas em 1974, voltou a sua casa.

"Pensei que o pior já havia passado. Nunca pensamos que viriam atrás de nós. Não era soberba, mas sim muita ingenuidade."

Em dezembro daquele ano, ela "caiu" —expressão usada para se referir aos detidos pelos militares. Ficou na Villa Grimaldi por 12 dias até que foi levada para Tres Álamos, outro lugar de detenção, onde ficou um ano e meio.

Hilda Amalia Garcés, detida e torturada pela ditadura militar no Chile, deixa o país em setembro de 1976
Hilda Amalia Garcés, detida e torturada pela ditadura militar no Chile, deixa o país em setembro de 1976 - Arquivo Pessoal

"Havia muito assédio sexual, golpes, ameaças de disparo e 'parrilla' [forma habitual de tortura no regime chileno na qual presos eram colocados deitados nus em uma estrutura de metal e eletrocutados]. Colocavam a arma nas nossas cabeças e diziam que iam nos matar."

Uma vez em liberdade, Garcés partiu para o exílio na Bélgica, onde ficou por dois anos com uma bolsa de estudos. Fugir foi a única alternativa para muitos: ao menos 200 mil pessoas exilaram-se durante a ditadura chilena, dizem estimativas consideradas subnotificadas.

Segundo o Acnur, a agência de refugiados da ONU, ao menos 73 mil chilenos obtiveram reconhecimento da condição de refugiados em outros países de 1974 a 1990, ano da redemocratização —54% em nações da América Latina e do Caribe, e 34% em países da Europa.

A última cifra também foi engrossada por Margarita Iglesias Saldaña, 66. "Fui tirada do país sem família. Sozinha. Recém-saída da adolescência", diz. Refugiada política na França, formou-se historiadora e hoje é professora da Universidade do Chile.

Saldaña foi um dos casos —não tão raros— de menores de idade detidos pelo regime. Com apenas 17 anos, ela foi expulsa de sua escola e banida do sistema de ensino público antes de completar o último ano do ensino médio por pertencer ao MIR. Em janeiro de 1975, foi levada à Academia de Guerra da Força Aérea do Chile.

"Estive três meses incomunicável", relata. "Minha família soube que caí porque, entre os soldados que me vigiavam, havia um que tinha me conhecido em uma comunidade local e a avisou. Ainda assim, quando minha mãe ia aos postos militares, diziam que isso era impossível, porque eles não detinham menores de idade."

Margarita Iglesias em Paris, em 1982, onde estava exilada da ditadura militar chilena
Margarita Iglesias em Paris, em 1982, onde estava exilada da ditadura militar chilena - Arquivo Pessoal

Saldaña retornou a seu país apenas em 10 de março de 1990, no florescer democrático que sucedeu a derrocada de Pinochet. Chegou acompanhada da nova geração de sua família que ainda não havia podido conhecer o país: as duas filhas.

Ela faz coro às críticas sobre o negacionismo histórico que ganha palco no Chile. "Um país sem memória não tem história e não pode construir o futuro. A memória não é pura, claro. Pode ser analisada. Mas há um fato inquestionável: houve um golpe de Estado em 1973."

As três mulheres, que hoje contribuem com projetos de preservação da memória em seu país, veem na educação uma peça-chave para manter viva a consciência do que ocorreu de 1973 a 1990. E insistem que é preciso ampliar a ação da Justiça contra os torturadores.

"A impunidade abriu espaço para o negacionismo, que avançou como uma verdadeira bola de neve. É preciso interromper isso", diz Cecilia Bottai que, como Iglesias, pisou novamente em seu país novamente somente no início dos anos 1990, após 15 anos exilada na Itália.

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