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Chile vê ultradireita ressuscitar 50 anos após golpe militar

Grupo lidera revisão da Constituição de Pinochet impulsionado por rejeição a reformas progressistas

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Foto em preto e branco mostra soldados deitados em telhado mirando suas armas ao palácio do governo, que está tomado por fumaça

Bombardeio ao Palácio de La Moneda, em Santiago, que derrubou o socialista Salvador Allende em 11 de setembro de 1973 AFP Photo/Arquivo

Buenos Aires

Há um ano, 200 homens montados em cavalos e carroças entraram em Santiago e marcharam pelas ruas da capital com bandeiras do Chile em punho. "São milhares de anos de tradição chilena, não podem deixá-la de fora da Constituição", dizia em frente às câmeras um senhor de chapéu e poncho enquanto segurava as rédeas.

Uma semana depois do ato —que terminou com dois ciclistas opositores atropelados por um dos carroceiros—, o país rejeitou por ampla margem uma proposta de Carta Magna dominada por pautas progressistas e identitárias, como a autonomia de indígenas sobre seu território, o direito ao aborto e a ampliação da proteção ao meio ambiente.

Os episódios são exemplos de como o pêndulo político voltou à ultradireita no Chile 50 anos após o golpe militar que levou o general Augusto Pinochet ao poder, completados nesta segunda-feira (11). Nesse contexto, em vez de se consolidar como uma contundente mensagem contra a ditadura, o marco tem aprofundado ainda mais a polarização entre os chilenos.

Parte desse grupo agora planteia uma espécie de "revisão histórica" das condições que levaram ao golpe durante o governo do socialista Salvador Allende, que se suicidou naquele dia enquanto o Palácio de La Moneda era bombardeado. A cena serviu de prólogo para uma das ditaduras mais sangrentas na América Latina, que em seus 17 anos de duração contabilizou oficialmente ao menos 1.469 mortos e desaparecidos.

"A primeira ditadura no Chile foi a de Salvador Allende", defendeu José Antonio Kast, principal rosto dessa nova força política à emissora espanhola esRadio. O ex-candidato presidencial alega que a atual Constituição, criada em 1980, ainda na ditadura, "permitiu os 30 anos de maior progresso no Chile" e transformou o país em um "farol na América do Sul".

O surpreendente resultado do seu Partido Republicano em maio, nas eleições do conselho que está reescrevendo a Carta até dezembro, é o principal indicador desse fortalecimento. Criada em 2019, a sigla conseguiu 22 das 50 cadeiras que, somadas às 11 vagas ocupadas pela direita tradicional, fazem com que a legenda não precise negociar com a esquerda ligada ao presidente Gabriel Boric para aprovar emendas.

Homem branco de cabelo branco acena em palco iluminado
José Antonio Kast, líder do Partido Republicano, ao lado da esposa, María Pía Adriasola, durante campanha presidencial em 2021, na qual perdeu para Gabriel Boric - Mauro Pimentel - 16.dez.2021/AFP

Entre as pautas mais caras a essa direita radical estão reduzir ainda mais o Estado e a cobrança de impostos, mantendo sistemas privatizados de aposentadoria e saúde; ampliar o poder das famílias na educação dos filhos; e proibir o aborto inclusive em casos de estupro, risco à mãe e inviabilidade do feto, condições em que hoje o procedimento é permitido.

"Estamos lutando principalmente por uma maior proteção à vida dos que estão por nascer", afirma Vicente Hargous, advogado da ONG católica Comunidad y Justicia, que presta assessoria a parlamentares e se define como entidade de direitos humanos. "Hoje temos a lei do aborto, o matrimônio entre pessoas de mesmo sexo, uma lei de educação sexual muito agressiva, desde muito cedo. Temos tentado evitar isso."

O grupo não se identifica como de direita, mas cita em sua página que nasceu para "ir contra a corrente" diante da "expulsão de Deus do discurso público". Trata-se de uma referência à forte guinada à esquerda vivida pelo Chile em 2019, com o "estallido social". O movimento começou contra o aumento da passagem de metrô, mas logo se transformou em protestos massivos e violentos contra a desigualdade e as elites econômicas.

"O amor venceu o ódio", estampou a capa do jornal popular conservador El Pingüino quando o país rejeitou a primeira Constituição, usando uma frase que no Brasil é empregada de maneira contrária —da esquerda contra a direita. Segundo o sociólogo Simón Escoffier, professor da Universidade Católica do Chile (UCC), foi esse o discurso que permitiu à ultradireita crescer, unindo ativistas do campo e da cidade.

"Esses grupos tendem a ter muito sucesso em fazer campanhas 'contra', em provocar as pessoas quando há êxitos progressistas. Esse ano de campanha pela rejeição à Constituição deu a eles muita visibilidade e fez com que passassem de um ambiente muito mais privado, de treinamento de jovens e lobby no Congresso, para as ruas", afirma ele, que pesquisa movimentos conservadores na América Latina.

Da ditadura de Pinochet, o movimento herdou o forte discurso anticomunista e militarista e a retórica revisionista, fatores que aproximam o ex-presidenciável Kast a figuras como Jair Bolsonaro. "A direita tem poder suficiente hoje para defender em declarações, atos e livros o projeto da ditadura, culpando Allende pelo golpe", diz o pesquisador.

Juntou-se a esse contexto o aumento da pobreza depois da pandemia, a explosão da imigração peruana e venezuelana e a piora da violência, ainda que ela continue baixa para os padrões latino-americanos —foram 4,7 homicídios a cada 100 mil habitantes em 2022, quase o dobro de dez anos atrás, mas um quarto da taxa registrada no Brasil no mesmo ano (19,5).

Para especialistas, isso também deu nova vida às falas em defesa da ordem, da meritocracia e do nacionalismo que remontam ao governo militar. Os policiais, conhecidos como "carabineros", veem sua aprovação subir a níveis recordes depois de terem passado por uma crise de imagem por episódios de abuso nos protestos de 2019.

Kast representa esses anseios, já que, apegado às normas, distancia-se da impulsividade de Bolsonaro e Donald Trump. Católico e pai de nove filhos, ele foi deputado por 12 anos antes de tentar a Presidência duas vezes. Seu irmão foi ministro de Pinochet e seu pai, membro do Partido Nazista na Alemanha, apesar de o político dizer que ele era apenas um recruta da Segunda Guerra.

Tanto Kast quanto seu Partido Republicano carregam ainda a vantagem de nunca terem gerido o país e, portanto, nunca terem fracassado. Assim como ocorre na Argentina com o fenômeno Javier Milei, a sociedade chilena tem se mostrado cansada das forças políticas tradicionais e buscado respostas simplificadas aos problemas.

O cientista político Tiago Nery, que pesquisa a ascensão da extrema direita pelo Lab-Mundo da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), ressalta que o controle de Pinochet sobre a transição democrática no Chile pode ter contribuído para a manutenção de visões positivas sobre a ditadura. "Ele teve 44% dos votos no plebiscito que acabou com a ditadura, em 1990, e foi chefe das Forças Armadas até 1998. Os pilares da sua revolução neoliberal são mantidos até hoje", diz.

Para Nery, até agora, a principal consequência da ascensão da ultradireita tem sido uma pressão sobre a direita tradicional: "Esses partidos terão que decidir se se aliam ou se afastam, como fez [o vice-presidente] Geraldo Alckmin no Brasil", afirma. Isso tem ocorrido principalmente na discussão constitucional, em temas como a proibição ao aborto —ideia impopular, já que a maior parte da população defende o procedimento.

Nesse sentido, a maior força da ultradireita pode ser também sua maior fraqueza. "À diferença de Brasil e Argentina, os partidos no Chile têm muito pouco vínculo com a sociedade e tendem a se guiar por grupos que não representam o todo. No Brasil, há uma luta cultural em que a direita ganhou. Mas no Chile ainda não é assim, pelo menos até agora", diz Simón Escoffier.

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