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Roberto Simon

É hora de o Brasil reconhecer seu papel na destruição da democracia do Chile

Ao mostrar que não tem medo do passado, país aumentará a pressão para que outros, como os EUA, façam o mesmo

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Roberto Simon

Mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard, é autor de “O Brasil contra a Democracia: a Ditadura Brasileira, o Golpe no Chile e a Guerra Fria no Cone Sul”

Há 50 anos, quando Augusto Pinochet fulminou a mais longeva democracia da América Latina, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a nova junta militar do Chile. Com milhares de civis a serem despejados no Estádio Nacional de Santiago, a arena esportiva convertida em centro de prisioneiros, o governo de Emílio Garrastazu Médici despachou uma missão, sob o comando do SNI (Sistema Nacional de Informações), para auxiliar nos "interrogatórios".

Enquanto notícias de torturas e execuções corriam o mundo, diplomatas brasileiros foram os principais advogados da neófita ditadura em foros internacionais e bilateralmente. O Brasil saltou novamente à frente ao tentar evitar uma bancarrota chilena, oferecendo crédito subsidiado de US$ 1,8 bilhão (R$ 9 bilhões, em valores atuais). Rapidamente, virou o segundo maior fornecedor de armas ao Chile. E dezenas de agentes da Dina —a polícia secreta de Pinochet— receberiam treinamento em território brasileiro.

Apoiador do ditador chileno Augusto Pinochet (1915-2006) exibe retrato do general em manifestação no 30º aniversário do fim do regime militar no país em Santiago - Claudio Reyes - 5.out.18/AFP

Cinco décadas após aquele 11 de setembro de 1973, documentos antes secretos do Brasil, Chile e Estados Unidos mostram como, ao lado do governo Richard Nixon, a ditadura brasileira foi o principal ponto de apoio externo à destruição da democracia no Chile.

É um passado que ainda nos assombra, perpetuando-se na injustiça dos desaparecidos, chilenos e brasileiros, e no revisionismo histórico que hoje intoxica ambas as democracias. O antídoto é encarar essa história. Cabe ao Brasil reconhecer sua responsabilidade no apoio ao golpe contra Salvador Allende e ao regime de terror que o sucedeu.

Esse capítulo vergonhoso da política externa brasileira não começou em 1973, mas três anos antes, com a eleição do socialista Allende à Presidência. Desde o início do governo, o Brasil criou canais secretos com militares que conspiravam, liderou uma campanha diplomática para isolar o Chile, preparou-se para apoiar a oposição em uma guerra civil, protegeu terroristas de extrema direita, e mais.

Paranoico, o governo Médici viu no triunfo de Allende um precedente intolerável à América Latina —uma coalizão de socialistas e comunistas chegara ao poder pelo voto, sem disparar um tiro. Ao mesmo tempo, a ditadura criou o mito de que o Chile se tornara uma "nova Cuba", onde os milhares de exilados brasileiros que ali viviam receberiam treinamento guerrilheiro. Pior: ao contrário da ameaça cubana, o problema não estaria à deriva no Caribe, mas fincado na vizinhança do Cone Sul.

Médici e os militares não estavam sozinhos. Os principais jornais brasileiros defendiam uma intervenção militar no Chile à la Brasil em 1964. Parte da imprensa brasileira virou uma caixa de ressonância do que hoje chamaríamos de fake news da extrema direita chilena.

Setores empresariais brasileiros —como a Confederação Nacional das Indústrias (CNI)— apoiaram grêmios patronais chilenos, convencidos de que o papel do empresariado na derrocada de João Goulart poderia se repetir no Chile de Allende. Estavam certos.

Não por acaso, no momento do golpe, a espionagem americana, a repressão brasileira e membros da recém-criada junta chilena faziam todos referência a um tal "modelo brasileiro". Um regime militar anticomunista, enraizado no campo do Ocidente na Guerra Fria, capaz de obliterar a ameaça da esquerda e colocar o país nos trilhos do progresso. A ditadura brasileira provia, a um só tempo, um exemplo —seu soft power— e apoio político, econômico e material.

Cinquenta anos depois, o governo brasileiro tem a oportunidade de usar seu poder em defesa da democracia. Um primeiro gesto, tímido, já foi anunciado: a colocação de uma placa com os nomes dos brasileiros assassinados no golpe chileno diante da embaixada do Brasil e na Praça Brasil, em Santiago. A decisão foi fruto da pressão de uma caravana de ex-exilados brasileiros que retornará ao Chile para o cinquentenário.

É preciso bem mais. Os ministros da Justiça e dos Direitos Humanos, Flávio Dino e Silvio Almeida, que representarão o Brasil em Santiago, terão a chance de reconhecer, sem assombros e com todas as letras, que o Estado brasileiro teve um papel na tragédia chilena. Os documentos da ditadura brasileira sobre ações no Chile e no Cone Sul —todos eles teoricamente públicos, mas não facilmente acessíveis— podem ser disponibilizados digitalmente, incluindo a autoridades que investigam casos de desaparecidos.

Ao mostrar que não tem medo de seu passado, o Brasil assumirá um protagonismo regional no tema e aumentará a pressão para que outros façam o mesmo. É o caso, sobretudo, dos EUA, que ainda se recusam a liberar grande parte de um vasto acervo documental da época, inclusive sobre suas vergonhosas ações no Chile.

Meio século nos separa do golpe chileno, mas a maneira como lidamos com ele tem consequências reais para nossas democracias hoje.

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