Mensagens de texto ligam cartel e polícia a massacre de estudantes no México

Episódio em que 43 estudantes foram sequestrados por policiais e nunca mais vistos é um dos casos mais conhecidos do país

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Cidade do México | The New York Times

É talvez o caso mais conhecido do México: 43 estudantes universitários baleados pela polícia, forçados a entrar em viaturas, entregues a um cartel de drogas e nunca mais vistos.

O mistério tem assombrado a nação por quase uma década. Como uma gangue relativamente desconhecida cometeu uma das piores atrocidades da história recente do México, com a ajuda da polícia e com o Exército observando o sequestro em massa acontecer em tempo real?

Um acervo de cerca de 23 mil mensagens de texto inéditas, depoimentos de testemunhas e arquivos de investigação obtidos pelo The New York Times aponta para uma resposta: praticamente todos os braços do governo nessa região do México estavam trabalhando para o grupo criminoso há meses, eliminando qualquer obstáculo que surgisse em seu caminho.

Imagens de alguns dos 43 estudantes que foram sequestrados no México, em 2014
Cartazes com imagens de alguns dos 43 estudantes que foram sequestrados no México, em 2014 - Luis Antonio Rojas/The New York Times

As mensagens de texto mostram que os comandantes da polícia, cujos policiais sequestraram muitos dos estudantes naquela noite de 2014, estavam recebendo ordens diretas dos traficantes. Um de seus comandantes chegou a entregar armas aos membros do cartel.

O Exército, que monitorou de perto o sequestro, mas não interveio, também havia sido subornado pelo cartel. Nas mensagens de texto, que foram interceptadas em escutas telefônicas, traficantes e seus colaboradores reclamavam da ganância dos soldados, chamando-os de "prostitutas" que eles tinham "na mão".

Um tenente até armou pistoleiros ligados ao cartel e, segundo uma testemunha, ajudou a polícia a encobrir seu papel no crime depois que os estudantes foram sequestrados e mortos. Há muito tempo se sabe que policiais e funcionários do governo ajudaram o cartel no sequestro ou assistiram ao crime acontecer sem fazer nada para impedi-lo.

Mas as mensagens de texto são um avanço para investigadores —oferecendo a hipótese mais clara até agora de um possível motivo para a colaboração entre as autoridades e os assassinos. Menos de duas dúzias das mensagens já foram tornadas públicas. O que as milhares de outras revelam é que além de comprar favores individuais, o cartel, conhecido como Guerreros Unidos, havia transformado membros da administração pública em empregados em tempo integral.

A subserviência do governo foi o que tornou possível o assassinato em massa de 43 estudantes universitários, dizem investigadores. E o nível de lealdade era alto. Um dos socorristas que foi ao local do sequestro tinha um segundo emprego não oficial: coletar informações para o cartel.

Durante meses, as escutas telefônicas o capturaram enviando atualizações minuto a minuto sobre os movimentos das forças policiais para um líder dos Guerreros Unidos a quem ele chamava de "chefe". Um legista também enviava fotos de cadáveres e evidências de cenas de crime, mostram as mensagens.

As mensagens de texto também podem ajudar a responder outra pergunta em aberto: por que os Guerreros Unidos executaram um grupo de 43 estudantes que não tinham nada a ver com o crime organizado?

Nas semanas e meses anteriores ao sequestro, escutas telefônicas mostram que o cartel estava cada vez mais paranoico, lutando para defender seu território enquanto rivais avançavam. Então, quando dezenas de jovens chegaram à cidade de Iguala em ônibus de passageiros —semelhantes aos que o cartel usava para contrabandear drogas para os EUA— traficantes confundiram o comboio com uma invasão e deram a ordem para atacar, dizem promotores.

Nove anos após o desaparecimento dos estudantes, ninguém foi condenado, transformando o caso em um símbolo de um sistema que não consegue resolver nem mesmo atos mais audaciosos de brutalidade.

Soldados do Exército mexicano e da Polícia Federal em Iguala, no México, onde os 43 estudantes desapareceram
Soldados do Exército mexicano e da Polícia Federal em Iguala, no México, onde os 43 estudantes desapareceram - Adriana Zehbrauskas/The New York Times

O governo anterior foi acusado de orquestrar uma conspiração para esconder o envolvimento das forças federais no sequestro, especialmente o Exército. Agora, a investigação está em um momento crítico. Sob o presidente Andrés Manuel López Obrador, autoridades ordenaram a prisão de 20 soldados mexicanos.

As escutas telefônicas não divulgadas têm sido cruciais. Conversas do cartel foram interceptadas pela DEA, agência antidrogas dos EUA, em 2014, enquanto investigavam o cartel por traficar drogas para os subúrbios de Chicago. O México solicitou as mensagens de texto por anos, mas autoridades americanas entregaram as 23 mil apenas no ano passado, em parte por desconfiarem do governo mexicano, disse um investigador.

A DEA se recusou a comentar. As mensagens obtidas pelo New York Times não cobrem a noite do desaparecimento, e detalhes-chave do que aconteceu com os estudantes ainda são desconhecidos. O que está claro é que o horror começou em 26 de setembro de 2014, quando dezenas de estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa viajaram para Iguala, no estado de Guerrero.

Eles cooptaram vários ônibus para participar de uma marcha na Cidade do México, uma prática que as autoridades toleravam. Mas eles nunca passaram dos limites da cidade. Minutos depois que os estudantes deixaram a estação de ônibus, a polícia os perseguiu. Vários membros do cartel testemunharam que as vítimas foram entregues ao grupo criminoso, que as matou e mutilou.

O Exército recebeu informações sobre o crime enquanto ele acontecia. Soldados estavam nas ruas e um batalhão local até tinha um informante infiltrado entre os estudantes, mostram as investigações. Oficiais de inteligência do Exército também estavam acompanhando o caso, já que espionavam um chefe do cartel e um comandante da polícia enquanto os dois discutiam para onde levar alguns dos estudantes naquela noite, mostram documentos.

E, dias após o ataque, o Exército sabia a localização de dois suspeitos que falavam sobre libertar estudantes que, de acordo com investigadores, poderiam estar vivos. Como o Exército sabia disso está mais claro: eles estavam usando uma ferramenta de espionagem israelense chamada Pegasus para monitorar membros do grupo criminoso, disse um investigador ao New York Times.

Mas o Exército não compartilhou a informação com as autoridades que buscavam os estudantes, e não há evidências de que as Forças Armadas tenham tentado resgatá-los, de acordo com a investigação.

Investigadores que buscam descobrir a extensão do envolvimento do Exército têm sido pressionados há anos. O principal funcionário de direitos humanos do governo foi espionado enquanto investigava o papel das Forças Armadas no desaparecimento.

Um promotor que liderou a investigação contra os soldados fugiu do país no final do ano passado. Em julho, um grupo de investigadores internacionais disse que estava desistindo de sua investigação citando "obstrução da Justiça" pelo Exército. Mas nenhuma obstrução pode esconder a cumplicidade revelada nas escutas telefônicas. A evidência "é muito robusta, forte, inquestionável", disse Omar Gómez Trejo, um promotor mexicano que enfrentou o Exército e depois fugiu para os EUA por temer por sua segurança. "Isso corrobora como o cartel opera e as conexões que tinha com as autoridades, incluindo o Exército."

Lendo as mensagens de texto do cartel pela primeira vez no ano passado, em uma sala de conferências na sede da DEA em Chicago, Gómez Trejo percebeu sua importância. Levou anos para que autoridades mexicanas tivessem acesso a algumas das escutas telefônicas, desencadeando críticas no México.

Agora, a DEA finalmente havia dado a ele e sua equipe acesso a um amplo conjunto de interceptações que cobriam meses de comunicações do cartel.

Naquela época, a administração Biden havia listado Guerreros Unidos entre as organizações criminosas "que representam a maior ameaça de drogas para os Estados Unidos".

Mas ali estavam os traficantes e autoridades admitindo isso eles mesmos, em conversas privadas. "Você quer que eu coloque seu vereador na linha?", perguntou um membro do cartel a um prefeito local em sua folha de pagamento, "ou devemos eliminá-lo?"

Os estudantes não tinham como saber como o cartel havia se infiltrado em todos os cantos da vida em seu reduto em Guerrero, dizem os investigadores. Um membro do cartel era açougueiro. Um ferreiro local construía compartimentos ocultos para esconder heroína e cocaína dentro de ônibus destinados aos EUA. Um grupo de irmãos violentos na gangue trabalhava em um lava-rápido.

O socorrista disse que foi apresentado ao grupo porque uma pessoa conhecida do ensino médio estava namorando um membro do cartel, de acordo com seu depoimento. Ele disse que, quando tentou parar de trabalhar para eles, foi sequestrado, amarrado e espancado até ceder. "A partir desse dia, atuei como informante involuntário", disse.

As escutas telefônicas mostram a extensão de suas responsabilidades. Ele enviava mensagens para líderes do cartel rastreando todos os movimentos das forças policiais, incluindo quando eles simplesmente paravam "para comprar água fresca".

Escutas também revelam outro colaborador: um legista da cidade. Nas mensagens de texto, ele diz que o irmão de seu colega era um matador de aluguel. O legista usava a conexão para avisar o cartel quando assassinos estavam de olho em seus membros. Ele manteve conversas sobre receber carros do grupo e declarou sua lealdade ao líder do cartel em Chicago, Pablo Vega Cuevas —declarado culpado em crimes relacionados a tráfico de drogas nos EUA— chamando-o de "meu chefe". Testemunhas disseram que Guerreros Unidos pagava aos policiais mensalmente uma espécie de honorário que permitia ao cartel chamar as autoridades sempre que quisesse.

Integrantes das Forças Armadas em Iguala, no México; infiltração do cartel nas instituições incluía polícias, Exército e altos escalões da política
Integrantes das Forças Armadas em Iguala, no México; infiltração do cartel nas instituições incluía polícias, Exército e altos escalões da política - Adriana Zehbrauskas/The New York Times

Quando os membros do cartel precisavam passar por um posto de controle, esconder armas ou fazer emboscadas para seus rivais, recorriam à polícia. "Não se preocupe, primo", disse um comandante da polícia a um membro do cartel em mensagem, "você sabe que estamos 1.000% com você aqui."

Na noite de sexta, 26 de setembro, o cartel enviou um aviso, segundo promotores mexicanos. Membros de um grupo inimigo estavam passando por Iguala, camuflados entre estudantes em ônibus sequestrados, disse um chefe do cartel. Mas não era verdade.

Não havia traficantes rivais nos ônibus, dizem investigadores, e além dos paus e pedras que os estudantes usaram para tomar os veículos, eles estavam desarmados. Mas o cartel estava tenso há meses. Um de seus principais chefes havia se afogado recentemente, outro havia sido preso e os irmãos que ficaram no comando haviam perdido a confiança do grupo, mostram as escutas.

Os traficantes se preocupavam com um membro que havia desertado para um cartel rival e um assassinato que parecia ter sido cometido internamente. "Meu primo foi morto e foi nossa gente", disse o líder de Chicago. "Não podemos confiar em ninguém, absolutamente ninguém", disse a esposa do líder do cartel em outra conversa. Os inimigos do grupo pareciam ter percebido sua vulnerabilidade. Nas semanas anteriores ao desaparecimento dos estudantes, a mídia local relatou que os rivais do cartel haviam "se reagrupado" e estavam indo atrás dos Guerreros Unidos.

"Isto vai ficar mais feio", disse o líder de Chicago do cartel no fim de agosto. Um mês depois, quando os Guerreros Unidos receberam a mensagem sobre seus supostos rivais passando em ônibus, sua rede de colaboradores entrou em ação. Os dois comandantes de polícia que trocavam mensagens de texto regulares com o cartel lideraram os primeiros ataques aos estudantes naquela noite.

Enquanto estudantes tentavam deixar Iguala a bordo de vários ônibus, policiais sob o controle dos comandantes bloquearam as ruas e atiraram neles, atingindo alguns, incluindo um que permanece em coma. Eles foram então colocados em viaturas, desaparecendo logo depois. A alguns quilômetros de distância, mais policiais pararam outro ônibus usando gás lacrimogêneo e depois os sequestraram. Eles também estavam entre os 43 desaparecidos. O socorrista pago pelo cartel disse que recebeu duas ligações naquela noite. Um dos comandantes de polícia perguntou a ele "para quem ele deveria entregar os 'pacotes'". Um assassino do cartel também ligou, perguntando quem estava levando "os pacotes", de acordo com seu depoimento.

O que exatamente aconteceu em seguida permanece um mistério. De acordo com um membro do cartel cujo testemunho se tornou fundamental para o caso, alguns dos estudantes foram levados para uma casa, mortos e esquartejados. Restos dos estudantes foram posteriormente incinerados no crematório pertencente à família do legista.

Anos após o desaparecimento, o governo mexicano continuou espionando o grupo, ouvindo suas conversas telefônicas em 2017. Os laços entre o cartel e as autoridades ainda eram fortes. Um dos traficantes envolvidos no sequestro falou sobre como havia acabado de "ficar bêbado com soldados".

Um vereador falou sobre o transporte de drogas para os EUA. Uma noite, a mulher de um líder preso perdeu o paradeiro de um carregamento de drogas. Pensando que o motorista poderia ter fugido com ele, enviou um aviso. "O motorista não sabe o que aconteceu com os 43?", disse, referindo-se aos estudantes sequestrados. "Tenho certeza de que ele não quer ser o número 44."

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