Premiê de Portugal renuncia após escândalo de corrupção no setor de energia

António Costa e membros de seu governo são suspeitos de irregularidades em projetos de lítio e hidrogênio verde

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Lisboa

O primeiro-ministro de Portugal, António Costa (Partido Socialista), renunciou ao cargo nesta terça-feira (7). O anúncio foi feito em pronunciamento nacional, horas após uma megaoperação que investiga irregularidades em negócios ligados à transição energética atingir o núcleo de seu governo.

Embora tenha negado "a prática de qualquer ato ilícito ou censurável", Costa afirmou que sua continuidade no cargo se fez impossível. "A dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeição da sua boa conduta e menos ainda com a suspeita de qualquer ato criminoso."

O primeiro-ministro de Portugal, António Costa, após pronunciamento em sua residência oficial, o Palácio de São Bento, em Lisboa - Patricia de Melo Moreira - 7.nov.23/AFP

Em encontro com a imprensa, ele disse que os próximos passos serão anunciados pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que já aceitou formalmente sua renúncia.

Pela lei portuguesa, é o chefe de Estado quem tem a prerrogativa de convocar eleições antecipadas e de dissolver o Parlamento em casos considerados graves. Rebelo agendou reuniões com líderes partidários e um encontro extraordinário do Conselho de Estado e deve fazer um pronunciamento à nação na próxima quinta-feira (9).

Devido aos prazos legais e ao recesso de fim de ano, eventuais eleições antecipadas só devem acontecer a partir de janeiro. Costa deve permanecer no cargo até que seu sucessor seja escolhido.

Na manhã desta terça, um efetivo de mais de 140 agentes, incluindo policiais e membros do Ministério Público, realizou uma série de buscas em endereços dos suspeitos, incluindo a residência oficial do premiê no Palácio de São Bento, em Lisboa.

No centro das investigações estão negócios relacionados ao lítio e ao chamado hidrogênio verde, dois componentes importantes para os projetos de transição energética da União Europeia.

As primeiras informações sobre suspeitas de irregularidades remontam a 2019. As investigações sobre o lítio estão relacionadas à concessão e à extração do minério —fundamental para baterias de carros elétricos— no município de Montalegre, no norte do território. Quanto ao hidrogênio, as suspeitas se concentram sobre a atuação do governo em um grande projeto a ser realizado em Sines, no sudoeste.

Duas figuras muito próximas ao primeiro-ministro foram detidas na operação: seu chefe de gabinete, Vítor Escária, e o consultor Diogo Lacerda Machado, amigo pessoal de Costa.

Além deles, foram presos ainda o também socialista Nuno Mascarenhas, presidente da Câmara Municipal de Sines (cargo equivalente ao de prefeito), e dois empresários. O porto de Sines é a principal porta de saída das exportações portuguesas.

A Procuradoria-Geral da República portuguesa justificou as detenções alegando "perigos de fuga, de continuação de atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas". Segundo o órgão, os detidos são suspeitos de "prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência".

Sobre a situação do premiê, o Ministério Público esclareceu que o nome de António Costa foi invocado por suspeitos durante as investigações, que teriam mencionado "sua intervenção para desbloquear procedimentos" no contexto das investigações.

Jornalistas em frente ao Palácio de São Bento, residência oficial do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, em Lisboa - Patricia de Melo Moreira - 7.nov.23/AFP

Também alvo de buscas em sua casa, o ministro das Infraestruturas, João Galamba, foi formalmente declarado suspeito no caso. O ministro do Meio Ambiente, Duarte Cordeiro, e o ex-titular da pasta João Matos Fernandes também estão sob investigação.

A chamada energia verde é uma das apostas da União Europeia para a transição para fontes menos poluentes. Portugal tem a maior reserva de lítio do bloco —e a oitava maior do mundo. Mas a exploração do minério, cada vez mais valorizado devido à popularização de carros elétricos, não é consensual no país. Moradores, sobretudo das regiões onde há concentração de lítio, fazem reiterados alertas sobre as consequências negativas da mineração para o meio ambiente e a sociedade.

O hidrogênio verde, pensado como um substituto do gás natural e produzido com eletricidade de fontes renováveis, é outra aposta lusa para a transição energética. O governo português chegou a se unir à Espanha em um megaprojeto ibérico para converter seus gasodutos à circulação do hidrogênio. A produção comercial de larga escala a preços competitivos, no entanto, ainda é uma realidade distante.

A operação policial e a renúncia de Costa provocaram um terremoto político no país, e a maior parte dos partidos defendeu abertamente a realização de novas eleições. Isso inclui a principal sigla da oposição, o PSD (centro-direita), cujo líder Luís Montenegro afirmou que "o governo caiu por dentro" após mais de uma reunião com correligionários.

"Não é uma fatalidade haver corrupção administrativa e política. Não é uma fatalidade termos impostos asfixiantes sobre tudo o que mexe na sociedade. Não é uma fatalidade, é uma escolha", afirmou Montenegro, já em tom de campanha. Ele disse ainda que a responsabilidade pela crise política era unicamente do Partido Socialista.

Enquanto isso, o chefe do partido de ultradireita Chega, que tem a terceira maior bancada de deputados, André Ventura saudou a demissão do primeiro-ministro e afirmou que a única solução para o impasse político é a dissolução do Parlamento.

"As eleições devem ser marcadas o mais depressa possível, porque qualquer outra resolução atrasará o processo político do país", disse. As últimas pesquisas de intenção de voto mostram que o Chega pode se beneficiar com a antecipação do pleito.

André Ventura, líder do partido de ultradireita Chega, durante convenção em Santarém, em Portugal - Patricia de Melo Moreira - 29.jan.23/AFP

António Costa é primeiro-ministro de Portugal desde novembro de 2015, quando conseguiu chegar ao poder graças a uma inédita aliança entre partidos de esquerda, historicamente divididos. Apesar da aparente fragilidade do arranjo, pejorativamente apelidado de geringonça, o grupo conseguiu completar a legislatura.

Reeleito em 2019, António Costa teve de enfrentar eleições antecipadas depois de não conseguir aprovar o Orçamento de Estado de 2022 e ver o Parlamento dissolvido pelo Presidente da República.

Na época, as pesquisas de intenção de voto indicavam empate técnico com a maior legenda da oposição. Em um resultado surpreendente, contudo, o Partido Socialista saiu das urnas em janeiro de 2022 com maioria absoluta na Assembleia da República.

Apesar da situação confortável na Casa, o terceiro mandato de Costa foi marcado por uma sucessão de escândalos políticos no primeiro escalão e pela queda de sua popularidade.

O caso atual também reacendeu as memórias de corrupção ligadas ao partido. Último integrante da legenda a ser primeiro-ministro antes de António Costa, José Sócrates foi um dos principais alvos da operação Marquês, conhecida como "Lava Jato lusitana" por também atingir políticos e empresários.

Sócrates governou Portugal entre 2005 e 2011, mas só foi objeto da investigação após deixar o cargo. Em novembro de 2014, ele foi preso no aeroporto de Lisboa após retornar de uma temporada em Paris.

Nove anos depois, o ex-premiê ainda não foi julgado, e algumas das acusações correm risco de prescrever. Citando fragilidades nas provas, em abril de 2021, o juiz responsável pelo caso decidiu que Sócrates não seria julgado por corrupção, mas ainda enfrentará a Justiça por seis outros possíveis crimes: três referentes a lavagem de dinheiro e três por falsificação de documento que envolvem pagamento por uma dissertação de mestrado.

Embora não tenha sido condenado, o ex-premiê tornou-se uma figura considerada tóxica dentro do partido. Em entrevista à Folha, Sócrates afirmou que foi deixado de lado pelos socialistas. "Eu nunca pedi ao PS que me defendesse, mas nunca pensei que fosse o próprio Partido Socialista a atacar-me", disse.

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