Presidente de Portugal é acusado de favorecer bebês brasileiras em fila para remédio de R$ 10 mi

Atendimento de gêmeas com AME por hospital em Lisboa desobedeceu protocolos, diz emissora; chefe de Estado nega

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Lisboa

Uma reportagem exibida pela emissora portuguesa TVI na semana passada levantou suspeitas de que o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, possa ter interferido para que duas bebês brasileiras —que também têm nacionalidade lusa— recebessem tratamento médico no país orçado em mais de R$ 20 milhões.

O chefe de Estado nega veementemente ter agido em favor das crianças. A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (Igas) anunciou, porém, que o episódio será investigado depois que a TVI apontou uma série de inconsistências relacionados ao processo. O atual conselho de administração do hospital em Lisboa em que o caso ocorreu também declarou que abrirá uma auditoria para investigar o caso.

Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, discursa durante evento em Cascais, perto de Lisboa - Carlos Costa - 30.set.23/AFP

O episódio aconteceu em junho de 2020. As crianças, que têm uma doença neurodegenerativa rara chamada atrofia muscular espinhal (AME), foram tratadas com o medicamento Zolgensma. O remédio, de dose única, custa € 2 milhões (cerca de R$ 10,5 milhões) por unidade e é popularmente considerado o "mais caro do mundo".

A própria equipe de neuropedriatria do Hospital de Santa Maria, onde foi feito o tratamento, opôs-se ao uso do fármaco, destacando as circunstâncias pouco claras em que as bebês chegaram até a instituição. A consulta delas foi marcada sem que outros médicos especialistas tivessem encaminhado seu caso ao local ou mesmo que elas tivessem estado em solo português anteriormente. Elas também não tinham inscrição no Sistema Nacional de Saúde, o SUS lusitano, o que contraria os trâmites normais nessas situações.

Os médicos e suas equipes enviaram uma carta à administração da instituição pedindo que o tratamento não fosse adiante. A missiva destacava que várias crianças com a mesma doença eram elegíveis para o tratamento, algumas delas pertencentes a famílias portuguesas no exterior.

Questionado pela TVI, o hospital afirmou não ser capaz de explicar o processo de admissão das bebês brasileiras, alegando que tanto o dossiê de registro quanto a sua inscrição foram perdidos. "A voz corrente nos corredores era de que era influência do presidente da República", afirmou, na televisão, o coordenador da unidade de pediatria do Hospital de Santa Maria, António Levy Gomes, um dos que assinaram a carta.

Ao ser questionada pela reportagem, a mãe das crianças, Daniela Martins, negou ter havido qualquer influência do chefe de Estado luso para a obtenção do tratamento. Após a entrevista, mas ainda com as câmeras da televisão gravando —aparentemente sem que a mulher percebesse—, ela confirmou, porém, que apelou a contatos próximos a Rebelo de Sousa.

"Eu fui lá e dei de cara com a médica. Ela falou para mim que não ia dar [o remédio], que não tinha mandado eu ir lá. Aí a gente usou nossos contatos, né? Aí entrou o pistolão que você falou", detalhou. "Conheci a nora do presidente, que conhecia o ministro da Saúde, que mandou um email para o hospital."

Nuno Rebelo de Sousa, um dos filhos do chefe de Estado, vive no Brasil com a mulher e é presidente da Câmara de Comércio Portuguesa em São Paulo, onde também vivia a família das gêmeas antes de ela se mudar para Portugal.

Procurados pela Folha, Nuno e a mãe das crianças não responderam aos questionamentos da reportagem. Enquanto isso, o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, negou duas vezes que tenha tido qualquer relação com o caso —a primeira à própria emissora e a segunda, no sábado (4), a jornalistas.

"Se tivesse feito, tinha dito: ‘fiz isso’. Não, não fiz. Não falei ao primeiro-ministro, não falei à ministra, não falei ao secretário de Estado, não falei ao diretor-geral, não falei ao presidente do hospital nem ao conselho de administração. Não falei", afirmou.

Ele chegou a ameaçar procurar a Justiça para exigir provas das acusações. "Vendo a reportagem, ninguém aparece dizendo que eu falei com essa pessoa", salienta. "Se aparecer alguém, eu aí não tenho outro remédio se não, eventualmente , ir a tribunal comparar a minha verdade com a verdade dessa pessoa. Os portugueses têm direito de saber se o presidente está mentindo ou se está dizendo a verdade. Não se trata do dever da defesa da minha honra, mas do dever da defesa do presidente da República."

Em 2019 e 2020, Portugal tinha uma ministra da Saúde, e não um ministro, como sugeriu a mãe das gêmeas em sua fala à TVI. A então titular da pasta, Marta Temido, que atualmente é deputada, nega ter recebido qualquer contato sobre o tema por parte do presidente.

Portugal foi um dos primeiros países do mundo a pagar pelo tratamento com Zolgensma, em agosto de 2019, após uma mobilização inédita em torno do caso de uma outra criança com AME, a bebê Matilde.

A família da menina organizou uma grande campanha de financiamento coletivo que conseguiu superar os € 2 milhões para pagar o medicamento, mas o governo luso acabou bancando a aplicação do fármaco. Natália, outra criança com a condição, teve acesso à droga no mesmo dia que a bebê Matilde recebeu o tratamento.

A mãe das gêmeas é filha de um português e tirou a nacionalidade lusa já adulta. Ela teria decidido acelerar os trâmites da dupla cidadania das meninas após a confirmação de que o Estado português financiou o medicamento para as duas bebês com AME.

Documentos exibidos pela reportagem mostram que o pedido de nacionalidade foi submetido ao consulado de Portugal em São Paulo cerca de uma semana depois do tratamento de Matilde e Natália. A cidadania foi concedida duas semanas depois.

Devido ao delicado estado de saúde das gêmeas, a viagem para Portugal foi cercada de cuidados. O percurso foi acompanhado por um médico e um fisioterapeuta.

Diversos médicos entrevistados pela televisão portuguesa destacam que as crianças já estavam recebendo tratamento com medicação adequada no Brasil.

Uma avaliação do Infarmed —a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) portuguesa— sobre o uso do Zolgensma comparou o medicamento com o fármaco que as gêmeas usavam anteriormente. Segundo o relatório, "não se observaram diferenças com significado estatístico" em termos de resultados entre elas.

A reportagem da televisão portuguesa destaca ainda o caso de uma criança nascida em Portugal, filha de pais imigrantes de Cabo Verde, que foi diagnosticada e é atendida no mesmo hospital que as gêmeas. Ela ainda não teve direito ao tratamento de 2 milhões de euros a que elas tiveram acesso, porém.

Em meados de dezembro de 2022, no fim do governo de Jair Bolsonaro (PL), o ministério da Saúde do Brasil anunciou a incorporação do medicamento ao SUS (Sistema Único de Saúde) para crianças com o nível 1 de AME, o mais grave da doença.

Até o mês passado, contudo, o Zolgensma seguia indisponível na rede pública. Questionada pela Folha, a pasta afirmou que a gestão passada não formalizou o acordo, que agora estaria em andamento, e que não há prazo definido para a droga começar a ser distribuída. Enquanto isso, muitos pacientes recorrem à via judicial para obtê-lo.

Em fevereiro, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) acompanhou a posição do ministério e incorporou o remédio ao rol de tratamentos com cobertura dos planos de saúde. Quando prescrito pelos médicos e para administração hospitalar, o Zolgensma tem agora de cobertura obrigatória pelas operadoras nos planos de segmentação hospitalar e planos-referência.

Erramos: o texto foi alterado

Título anterior da reportagem afirmava que o medicamento Zolgensma custa R$ 20 milhões em Portugal. O remédio custa R$ 10,5 milhões, ou € 2 milhões.

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