Nova lei do aborto da Itália é uma lição sobre como funciona governo de Meloni

Primeira-ministra recicla lei de 1978 para acenar a eleitorado conservador sem danificar sua imagem na política externa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Elisabetta Povoledo Jason Horowitz
Verbania (Itália)

Em um centro de aconselhamento familiar em Verbania, uma cidade arborizada à beira do lago no norte da Itália, os funcionários não apenas explicam às mulheres as regras para obter abortos, mas também distribuíram panfletos fornecidos por um grupo local antiaborto.

"Você está grávida?", diz o folheto do "Centro de Assistência à Vida" na cidade. Se você acha que a única opção é o aborto, diz às mulheres considerando o procedimento: "Entre em contato conosco! Podemos conversar, e, juntas, será diferente."

Mulheres seguram cartazes e uma eles diz "Meu corpo, minhas escolhas".
Ativistas italianas protestam em frente ao senado contra a operação de ativistas pró-aborto em clinicas - Yara Nardi/Reuters

Em breve, pode haver mais do que apenas folhetos nesses e em centros semelhantes. Uma medida introduzida pelo partido da primeira-ministra Giorgia Meloni e aprovada pelo Parlamento na última terça-feira (23) potencialmente encoraja grupos antiaborto a fazer ativismo dentro dos centros de aconselhamento familiar, lembra seus apoiadores conservadores de que ela é uma deles e deixou a oposição louca —tudo sem realmente mudar muito.

A medida é essencialmente uma reafirmação de uma parte da lei do aborto da Itália de 1978, que enfatizou a prevenção mesmo ao legalizar o aborto. Com esse fim, a lei permitiu que os centros de aconselhamento familiar fizessem uso de associações de voluntários "protegendo a maternidade" para ajudar as mulheres a evitar a interrupção de suas gestações por dificuldades econômicas, sociais ou familiares.

Mas a nova legislação —e as mudanças que poderia inspirar— novamente mostra a maestria de Meloni na mensagem política. Com raízes em partidos nascidos das cinzas do fascismo, ela assegurou a um establishment de política externa antes cético que ela é uma parceira confiável, mais ou menos convencional, disposta a se dar bem com a União Europeia e atuar como uma aliada sólida dos Estados Unidos contra a agressão da Rússia à Ucrânia.

Mas analistas políticos dizem que a agenda doméstica que ela tem seguido desde que chegou ao poder há 18 meses ainda se encaixa muito bem em suas crenças de longa data —e agrada sua base tradicional— sem ainda fazer mudanças drásticas que poderiam prejudicar sua imagem internacional.

"Ela é sutil", diz Gianfranco Pasquino, professor emérito de ciência política na Universidade de Bolonha, acrescentando que Meloni estava buscando deslocar as sensibilidades italianas e europeias para a direita sem necessariamente mudar as leis. "Ela é uma excelente política."

Além da medida do aborto, Meloni está buscando uma mudança na constituição da Itália que permitiria aos cidadãos votar diretamente no primeiro-ministro. Ela diz que isso tornaria os governos italianos mais estáveis, algo que os partidos de centro-esquerda também buscaram; seus críticos dizem que isso eliminaria os freios e contrapesos e criaria oportunidades para um potencial futuro autocrata.

Seu partido propôs tornar crime para os italianos contornarem a proibição do país à barriga de aluguel encontrando gestantes em nações que permitem a prática, e seu governo aprovou medidas anti-imigração e propôs um limite para estudantes não italianos nas salas de aula.

E ainda assim, Meloni tem se mostrado difícil de rotular.

Na semana passada, a emissora pública RAI, que ela recheou, seguindo a tradição italiana, com aliados políticos, foi acusada de censurar um autor que planejava ler um monólogo antifascista no ar. O texto acusava o governo de Meloni de tentar reescrever a história. A primeira-ministra contestou a acusação de censura, argumentando que o escritor havia pedido simplesmente muito dinheiro. Então, em uma jogada que confundiu seus críticos, ela publicou o monólogo inteiro em suas redes sociais.

Sobre a questão do aborto, o partido Irmãos da Itália, de Meloni, inclui políticos que propuseram dar direitos legais aos embriões. Mas aqui, também, ela adotou uma abordagem diferente.

Em uma entrevista ao The New York Times pouco antes de sua eleição em 2022, Meloni disse que tinha uma "abordagem muito profunda" sobre o assunto como resultado de sua mãe quase abortá-la depois que seu pai abandonou a família. Ela disse que não tinha intenção de revogar os direitos ao aborto, mas queria garantir que as mulheres que consideravam fazer o procedimento tivessem outra opção. A lei de 1978 estipula que as mulheres devem receber "toda a ajuda necessária" para evitar a interrupção da gestação.

"Quero aplicar tudo isso", disse Meloni, referindo-se à lei original. "Há uma parte sobre a lei do aborto que é sobre prevenção. Isso nunca foi feito." Ela acrescentou que sua esperança era fazer "todo o possível para ajudar uma mulher que pensa que o aborto é a única saída."

Mas mesmo alguns daqueles que compartilham de seus objetivos duvidam do valor da legislação aprovada na semana passada.

"Minha impressão é que não fará muita diferença", diz Laura Cristofari, que estava cercada por berços, carrinhos de bebê e brinquedos no escritório do Centro de Assistência à Vida em Verbania. Seu grupo, conta ela, já tinha um espaço dentro do hospital local onde os abortos eram realizados, no qual os ativistas podiam se encontrar com mulheres que estavam considerando o procedimento.

Jacopo Coghe, presidente da Pró-Vida e Família, outra organização antiaborto, afirma que embora esteja feliz que o governo tenha reiterado o direito de grupos como o dele de participarem de discussões com mulheres que estão considerando o aborto, seu grupo não planejava entrar em centros de aconselhamento. Ele diz que prefere focar mudar políticas, como fazer campanha por uma exigência de que uma mulher que busca um aborto ouça os batimentos cardíacos do feto antes de prosseguir.

Alguns defensores dos direitos ao aborto também dizem que a lei não fará muita diferença. Mirella Parachini, uma ginecologista e ativista de longa data pelos direitos ao aborto, diz que a medida era uma "proclamação que não muda nada", acrescentando que era apenas "agitar uma bandeira ideológica".

Mas outros apoiadores dos direitos ao aborto protestaram do lado de fora do Parlamento e disseram que temiam que a medida encorajasse os ativistas antiaborto a serem mais assertivos em sua abordagem com mulheres que buscam abortos.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.