Entenda por que Qatar teve papel central para libertação de reféns do Hamas

Emirado acena a grupos islâmicos e ao Ocidente ao mesmo tempo e ganha protagonismo como mediador no Oriente Médio

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São Paulo

Desde o início da guerra Israel-Hamas, o Qatar vem sendo elogiado por diversos líderes mundiais. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, agradeceu por sua parceria. O da França, Emmanuel Macron, disse que o país dava esperanças de que seria possível "encontrar soluções para conseguir o retorno do máximo de reféns possível".

À lista se somaram os primeiros-ministros do Reino Unido, Rishi Sunak, e da Alemanha, Olaf Scholz, além do secretário-geral da ONU, António Guterres, que agradeceu pessoalmente ao líder do emirado, o xeque Tamim bin Hamad al-Thani.

O emir do Qatar, Tamim bin Hamad al-Thani, cumprimenta o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, em Riad, na Arábia Saudita - Gabinete da Presidência do Irã - 11.nov.23/Wana (Agência de Notícias do Oeste da Ásia)/via Reuters

As loas fazem referência ao papel que o diminuto país do Golfo desempenhou nas negociações do acordo, anunciado nesta quarta-feira (22), para soltar 50 dos cerca de 240 cidadãos sequestrados pelo Hamas em sua sangrenta incursão a Israel de 7 de outubro.

Antes, os qataris já tinham ajudado a mediar a abertura da passagem de Rafah, que liga Gaza ao Egito, permitindo a saída de estrangeiros e cidadãos de dupla nacionalidade e feridos em estado grave e a entrada de insumos como água, comida, remédios e combustível. Também haviam garantido a soltura de quatro pessoas —duas israelenses e duas americanas.

Os elogios da comunidade internacional escondem, porém, a ambivalência que parte dela tem em relação ao emirado, que deve seu sucesso como mediador em grande medida à proximidade que mantém com o Hamas e outros grupos extremistas, como Talibã, Al Qaeda e Estado Islâmico, além do próprio Irã.

Doha é sede de um escritório da facção palestina há mais de uma década e abriga algumas de suas principais lideranças políticas. É o caso de Ismail Haniyeh, chefe oficial do partido, por exemplo, e de Khalid Mashaal, um de seus fundadores, sobrevivente de uma tentativa de assassinato por Tel Aviv nos anos 1990.

O arranjo vinha servindo bem à comunidade internacional —inclusive aos Estados Unidos, que mantêm sanções contra Haniyeh e Mashall em vigor há anos.

Para os americanos, a estratégia era uma maneira de manter uma via de comunicação aberta com grupos inimigos por meio de um intermediário confiável, avalia Kristian Coates Ulrichsen, especialista em Oriente Médio da Universidade Rice.

À medida que a guerra Israel-Hamas se alonga, contudo, essa proximidade entre o Qatar e facções islâmicas vem alimentando cada vez mais suspeitas.

O primeiro incidente nesse sentido ocorreu imediatamente depois dos atentados do Hamas. Na ocasião, o emirado havia concordado em servir como intermediário do Irã e em receber US$ 6 bilhões (R$ 30 bilhões) em ativos congelados do país em solo sul-coreano, resultado de um acordo de troca de prisioneiros entre a república islâmica e os EUA. Após o início da guerra, Washington e Doha suspenderam o trato e impediram Teerã de ter acesso aos fundos, destinados à ajuda humanitária, ao menos por ora.

Ainda em outubro, um grupo bipartidário de 113 congressistas americanos enviou uma carta ao presidente Joe Biden pedindo que ele pressionasse países que apoiam o Hamas a cortar laços com o grupo, incluindo o Qatar.

Semanas depois, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, declarou que a relação com o Hamas terá que mudar, ao que o emirado respondeu estar disposto a reconsiderar a presença do grupo uma vez que os reféns fossem liberados. Não está claro, até o momento, se isso de fato ocorrerá após o anúncio do acordo desta quarta.

Para Ulrichsen, essa pressão é em certa medida injusta. Afinal, ele explica, o estabelecimento do Hamas em Doha, em 2012, foi coordenado com os americanos. Naquela época, a liderança política da facção estava em uma Síria engolida pela guerra civil. A lógica de Washington ao ajudar a fixar um escritório do Hamas em solo aliado foi a mesma aplicada no ano seguinte ao Talibã: facilitar eventuais negociações.

"Houve momentos em que eles puderam falar com figuras do Hamas indiretamente, por meio do Qatar, o que foi considerado positivo. E agora vemos o mesmo com a situação dos reféns", diz o especialista.

Para ele, mesmo Israel se beneficiou da presença do grupo terrorista no Qatar, ainda que os países não tenham relações diplomáticas. Tel Aviv chegou a assumir a função de distribuir os fundos doados pelo Qatar às famílias necessitadas e funcionários públicos na faixa controlada pelo Hamas, em um entendimento de, a princípio, seis meses, que foi sendo continuamente renovado —a pedido de Israel.

A operação ainda conta com a coordenação da ONU. Os fundos são transferidos eletronicamente de Doha para Tel Aviv e então repassados a autoridades israelenses e das Nações Unidas, que por sua vez levam o dinheiro físico até a fronteira com Gaza.

Não há se sabe se esse arranjo se manterá após a guerra. Mais importante, desde os ataques de 7 de outubro, é provável que nem Qatar, nem Israel consigam lidar de forma pragmática com problemas que vinham sendo abordados de forma conjunta, diz Ulrichsen.

Isso é verdade sobretudo para Tel Aviv, mas também para Doha, dada a indignação do mundo árabe com a retaliação desproporcional do Exército israelense contra Gaza. Segundo o Ministério da Saúde local, a ofensiva no território palestino já causou mais de 14,5 mil mortes, enquanto a invasão a Israel pelo Hamas provocou 1.200 óbitos.

Com isso, o conflito pode acabar prejudicando a estratégia de política externa do Qatar de se postar como um mediador por excelência do Oriente Médio.

A tática vem contribuindo para alavancar o soft power do país no plano internacional ao lado de iniciativas como o financiamento estatal da emissora Al Jazeera, talvez o principal canal de notícias árabe, e o investimento em esportes que contribuiu para que Doha sediasse a última Copa do Mundo.

E é considerada vital para um país com meros 11,5 mil km² (pouco mais que a metade de Sergipe) e menos de 3 milhões de habitantes situada no meio de uma das regiões mais instáveis do planeta.

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