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Irã cruzou todas linhas vermelhas rumo à bomba atômica, diz ONU à Folha

Chefe de agência nuclear afirma que Estados Unidos e aliados agem como se o problema não existisse

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São Paulo

A comunidade internacional, Estados Unidos à frente, está assistindo impassível ao Irã cruzar as linhas vermelhas estabelecidas por seus adversários rumo à fabricação de uma bomba atômica.

Esta é a avaliação de Rafael Grossi, o diretor-geral da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica). Ele é responsável por mediar as negociações que visam a evitar que o regime dos aiatolás adquira armas nucleares.

O diretor da AIEA Rafael Grossi, um homem de terno, cumprimenta o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, que usa turbante e robe em um palácio
O presidente do Irã, Ebrahim Raisi, recebe o diretor-geral da AIEA, Rafael Grossi, em visita a Teerã - Presidência do Irã - 5.mar.2023/Xinhua

"Não é porque você não olha para o problema que ele desaparece. A questão segue, e o Irã tem enriquecido urânio em níveis altos", afirma o argentino em conversa com a Folha nesta segunda-feira (15), por Zoom, da sede da AIEA em Viena.

"A situação com o Irã é muito frustrante. Há uma redução da visibilidade [do problema] que começou em 2021. Eu tomei medidas para mitigá-la, mas foram apenas parcialmente bem-sucedidas", diz ele. "O nível de cooperação hoje é mínimo."

Há dois anos e meio, o acesso de inspetores da AIEA dentro do escopo do acordo nuclear de 2015 está virtualmente cortado, com exceções pontuais. Aquele arranjo havia sido capitaneado pelos EUA sob o governo democrata de Barack Obama, mas foi rompido por seu sucessor republicano, Donald Trump, em 2018.

Grosso modo, o acordo previa o relaxamento de sanções econômicas contra Teerã em troca do compromisso, monitorado pela AIEA, de que o programa nuclear do país teria apenas fins pacíficos. Trump via um embuste nos termos.

A volta dos democratas ao poder com Joe Biden em 2021 foi acompanhada pela promessa da retomada de negociações. "Não aconteceu nada", afirma Grossi, e o Irã voltou a operar seu programa de forma acelerada e sem vigilância. "É notável como temos capacidade de nos acostumarmos [à situação]."

Ele aponta o dedo para a comunidade internacional como um todo. "Há uma falta de foco nela devido aos processos eleitorais [como o provável tira-teima entre Biden e Trump em novembro], à guerra na Faixa de Gaza, à Guerra da Ucrânia. A agenda está lotada."

"Todas as linhas vermelhas de que eles falavam, de que [o premiê israelense Binyamin] Netanyahu falava, foram ultrapassadas completamente", diz, fazendo referência às ameaças feitas por Israel de atacar o Irã caso o país quisesse obter armas nucleares.

Israel é 1 das 9 potências nucleares do mundo —e a única que não o admite. Seu arsenal é estimado por entidades como a Federação dos Cientistas Americanos em 90 ogivas. Teerã prega o fim do Estado judeu, assim como o aliado Hamas, ora em guerra com os israelenses, e seus parceiros como o Hezbollah libanês e os houthis do Iêmen.

Até por sua posição de mediador, Grossi mede algumas palavras. Questionado sobre o quão perto da bomba está o Irã, devolveu a bola para o vice-presidente do país, Mohammad Eslami, que também gerencia o programa nuclear local. No domingo (14), Eslami havia afirmado no Azerbaijão que seu país não deseja ter o artefato, mas pode construí-lo a qualquer momento.

"É muito preocupante. Eu não tenho informação de que há um programa bélico, não posso mentir. Mas certamente há uma situação de latência. É uma confissão [do iraniano]", sustenta Grossi.

No fim de dezembro, relatório da AIEA apontou que o Irã aumentou em 27% o ritmo de enriquecimento de urânio no país. Teerã tem agora 4.745 kg do produto com mais de 20% de enriquecimento, o suficiente para alimentar reatores de propulsão naval e algumas aplicações militares. O volume é 15 vezes maior do que o estabelecido no acordo de 2015.

A agência estimou em ao menos 128 kg a quantidade da substância com 60% de enriquecimento, um índice elevado. Esse material poderia ser usado em talvez três bombas atômicas menos potentes —a taxa usual nas armas russas e americanas é ao menos de 90%.

O enriquecimento é um processo no qual o gás hexafluoreto de urânio, obtido a partir de uma pasta do minério chamada "yellow cake" (bolo amarelo, em razão de sua cor), é girado em poderosas centrífugas para separar seus átomos mais leves, usados na fissão nuclear —seja controlada em reatores ou libertada em bombas.

Grossi diz ainda ter esperança de engajar os iranianos em negociações, embora admita que seus encontros com o presidente, Ebrahim Raisi, e outras autoridades "lamentavelmente não frutificaram soluções". "É minha obrigação, quero renovar o diálogo, sempre abri uma porta a mais."

Situação na Ucrânia segue tensa

O argentino também segue preocupado com a situação na usina ucraniana de Zaporíjia, a maior da Europa, ocupada pelos russos desde o início da invasão de 2022. "É uma situação sem paralelo em termos de riscos", declara.

Ele já esteve nove vezes na Ucrânia e três, na usina, onde a AIEA tem um time de até cinco técnicos supervisionando as condições. "Nossa presença está estabilizada", afirma. O mais recente relatório se queixava de que Moscou não dava acesso completo a todos os seis reatores, cinco dos quais estão desligados.

Questionado sobre qual o momento de maior tensão da crise, que pegou o mundo de surpresa e reacendeu temores do acidente de 1986 em Tchernóbil, não muito distante dali na Ucrânia soviética, Grossi diz que "todos".

"Houve três ataques diretos à usina e sete blecautes, que são tão perigosos quanto, porque a falta de alimentação pode afetar o sistema de resfriamento do reator e causar um derretimento de seu núcleo", diz, descrevendo o pior pesadelo de quem trabalha com energia nuclear.

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