As tensões internacionais têm hoje um grande espírito de porco. São os houthis, rebeldes que ocupam parte do Iêmen, no sul da Península Arábica, e são patrocinados e armados pelo Irã.
A rigor, os houthis não obedecem a ninguém. Não foram dominados pela Arábia Saudita, que tentou patrocinar a paz entre eles e os iemenitas. E a China e a Rússia se fingem de surdas enquanto os Estados Unidos, baseado numa resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre a liberdade das vias de comércio, soltam mísseis e bombas contra os rebeldes para permitir o trânsito pelo mar Vermelho.
Isso porque os houthis bloquearam recentemente a passagem pelo golfo de Áden, rota pela qual passa 12% do comércio mundial e 30% do volume transportado em contêineres. O que eles querem é prejudicar Israel por meio de uma solidariedade criminosa com os terroristas do Hamas.
O assunto, complicado, foi discutido por especialistas em um podcast da France Culture, uma das emissoras francesas da rádio pública. Como previsível, porém, ele não chega a nenhuma unanimidade.
Maxence Brischoux, autor de dois livros sobre obstruções do comércio marítimo, lembra que os primeiros incidentes no mar Vermelho desde o início da Guerra Israel-Hamas ocorreram em 19 de novembro —34 dias depois que o Hamas assassinou 1.200 judeus em solo israelense. Os rebeldes sequestraram um cargueiro e seus tripulantes e passaram a usar drones e mísseis contra barcos que circulavam na região.
O efeito imediato foi a triplicação dos preços dos fretes e dos seguros. Os EUA mobilizaram a Quinta Frota, baseada em Bahrein, e o Reino Unido, quatro caças baseados em Chipre. A guerra entre Israel e Hamas havia subido de patamar.
Outro pesquisador, Laurent Bonnefoy, cientista político e arqueólogo, diz que há dias a Marinha americana interceptou mísseis desmontados que o Irã encaminhava aos houthis. Esse tipo de arma nunca havia sido entregue a um "não-Estado".
Os houthis não são obedecem cegamente ao Irã, o que ocorre com o Hezbollah, grupo xiita que controla o sul do Líbano. Mas foi como aliado dos iranianos que o grupo emergiu em 2004, combatendo outros iemenitas.
Onze anos depois, enfrentaram juntos forças sauditas, num confronto que não terminou e pode ser utilizado como moeda de troca para outros arranjos militares na região. Detalhe curioso: há três anos, Washington suspendeu dos houthis o rótulo de terrorista que havia usado para classificá-los para poder doar alimentos a eles. Mas os interessados não se comoveram e voltaram a pegar em armas.
Camille Lons, do Conselho Europeu de Relações Internacionais, diz que a autonomia demonstrada pelo houthis em relação ao Irã é conveniente para a república islâmica. Não interessa a Teerã escalar o conflito que o Hamas desencadeou contra Israel. Para aquele país, faz bem mais sentido o papel discreto que exerce junto ao Hezbollah, que não extrapola os incidentes de que participa na fronteira de Israel com o Líbano.
Em outras palavras, o Hezbollah é mais confiável no momento em que o Irã sabe que na região se desconfia que o país tem uma preciosa carta na mão. É a arma nuclear. Segundo a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), ligada à ONU, o Irã já enriquece seu urânio em 70%. Pode-se temer sua capacitação bélica.
Mesmo assim, diz Lons, armadores que insistem em transitar pelo mar Vermelho notam que os até houthis atiram, mas erram a mira, quando se trata de embarcações mercantis aliadas dos iranianos.
Um último especialista, Sebastien Jean, professor de economia em Paris, nota que o fluxo do transporte marítimo foi estendido em dez dias com a obrigatoriedade de os cargueiros circundarem pela África do Sul o Cabo da Boa Esperança. Para um carregamento da Ásia à Europa, o trajeto é agora de 45 dias.
Os custos não subiram tanto, uma vez que economiza-se o pedágio de US$ 500 mil (cerca de R$ 2,5 milhões) cobrado por um porta-contêineres que passa pelo Canal de Suez. Há, no entanto o custo ambiental da viagem mais longa. Gasta-se bem mais combustível para o mesmo transporte, o que hoje já entra nos cálculos políticos das grandes empresas da União Europeia.
O temor do mercado, no entanto, está na interrupção da cadeias de suprimento. Uma montadora sueca e um grupo alemão de eletrônica já tiveram problemas. Por causa disso, os empresários têm obviamente uma razão a mais para alimentar sua impressão ruim dos houthis.
Paradoxalmente, os EUA são os que menos têm problemas como esses. Não importam petróleo —um quinto dos produtos que atravessam Suez— e recebem boa parte de seus contêineres pelo oceano Pacífico. Dispensam Suez e o Canal do Panamá.
Os EUA se comportam no episódio como garantidores da globalização. Sabem que interessa à China que os americanos cumpram seu papel. Mas os chineses –tanto quanto os russos– não se dispõem a dividir os custos do guarda-chuva americano de Defesa.
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