Descrição de chapéu
Todas União Europeia

Vitória histórica do feminismo francês dá proteção sem precedente à liberdade de abortar

Conquista ecoa manifesto assinado em 1971 por nomes como Simone de Beauvoir e Catherine Deneuve

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Às vésperas do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e sob a pressão simbólica desta data, 925 parlamentares franceses se reuniram em Versalhes, nos arredores de Paris, para aprovar o texto que faz da França o primeiro país do mundo a consagrar de forma explícita na sua Constituição a liberdade das mulheres de interromper voluntariamente uma gravidez.

A medida foi celebrada como uma vitória histórica das ativistas feministas francesas diante de um cenário político de ascensão da ultradireita, de pressão sobre o serviço público de saúde do país e de manifestações antiaborto nas ruas e na Igreja Católica, que pediu "jejum e orações" durante a votação desta segunda (4).

Com a constitucionalização da liberdade da mulher de dispor sobre seu corpo no caso de uma gravidez indesejada, o presidente Emmanuel Macron posiciona a França na vanguarda da proteção dos direitos das mulheres e transmite o que chamou de "mensagem universal".

Trata-se de um protagonismo que remonta à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789 —texto que, ironicamente, excluía as mulheres da época desses mesmos direitos.

Parlamentares em sessão da Assembleia Nacional francesa aplaudem decisão que inscreve direito ao aborto na Constituição do país - Stephanie Lecocq - 4.mar.24/Reuters

O projeto de emenda constitucional aprovado foi apresentado pelo governo Macron no ano passado e cita em sua justificativa a derrubada pela Suprema Corte dos EUA do direito ao aborto em junho passado, revertendo decisão de 1973 conhecida como Roe vs Wade.

O impacto da reviravolta americana e da consequente movimentação das feministas francesas foi imenso. Basta lembrar que, em 2018, parlamentares de oposição tiveram proposta semelhante rejeitada por Macron e seu partido, o Renascimento, então com maioria na Assembleia Legislativa da França.

Na época, dois dos ministros do governo Macron eram alvo de denúncias de agressão sexual, mas o argumento do partido do presidente era que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) já estava garantida às mulheres francesas.

De fato, o aborto é descriminalizado por lei na França desde 1975, quando as mulheres passaram a poder se submeter legalmente à IVG até a 14ª semana de gravidez.

Três anos antes, a Corte Constitucional francesa inocentou do crime de aborto a jovem Marie-Claire Chevalier. A decisão abriu caminho para o debate legislativo sobre essa criminalização, sob forte pressão dos movimentos feministas.

Filha de uma mãe solo de classe média, Chevalier ficou grávida depois de sofrer um estupro aos 17 anos. Sua mãe conseguiu reunir recursos para um aborto clandestino. As complicações do procedimento quase a mataram. Ela sobreviveu, mas foi denunciada pelo seu agressor, interessado em uma potencial redução da pena, e acabou presa.

O caso mobilizou o aguerrido Movimento pela Libertação das Mulheres (MLF, na sigla em francês), que reunia coletivos feministas de diferentes matizes e muitas divergências, mas com ao menos três pautas comuns: o direito ao aborto, a liberação de corpos e o fim da violência doméstica.

Ativistas do MLF se expuseram ao risco de serem processadas criminalmente e presas ao assinar o "Manifesto das 343", em 1971, publicado pela revista Le Nouvel Observateur. Naquele tempo, a Justiça francesa condenava, em média, uma mulher por dia pelo crime de aborto.

Redigido pela filósofa e intelectual feminista Simone de Beauvoir, autora de "O Segundo Sexo", o manifesto era uma carta de admissão da prática do aborto por 343 mulheres, incluindo nomes de peso como a atriz Catherine Deneuve, a cineasta Agnès Varda e a física nuclear Annie Sugier, cuja prisão levaria à comoção pública. Nenhuma foi processada ou presa, e o texto influenciou a opinião pública no país.

Mais de quatro décadas depois, 81% dos franceses dizem ser a favor da constitucionalização do direito ao aborto, segundo pesquisa Viavoice do final de 2022, o que reforçou a mudança de postura da direita francesa na direção de apoio ao texto que agora faz parte da Constituição: "A lei determinará as condições em que será exercida a liberdade garantida à mulher de recorrer à interrupção voluntária da gravidez".

Conheça Caso das 10 Mil, podcast sobre o maior processo por aborto do Brasil

A proposta inicial da esquerda francesa era a de consagrar um "direito ao aborto", mas o texto acordado no Senado adotou a noção de "liberdade garantida". A mudança sutil de formulação foi vista como um exercício de retórica para que se chegasse a um consenso político, mas também com desconfiança. Alguns constitucionalistas avaliam que o texto aprovado permite aos legisladores limitar seu exercício por lei ao restringir as condições em que mulheres poderão recorrer ao aborto.

O Conselho Constitucional da França, guardião da Constituição, também pode alterar o entendimento do texto ao avaliá-lo à luz de outros direitos e liberdades, tais como o direito à objeção de consciência dado a profissionais de saúde que se recusam a fazer abortos. A expectativa é de que uma liberdade não ofusque a outra, mas isso sempre depende dos olhos de quem vê, e uma composição mais conservadora do Conselho, cujos membros são apontados pelo presidente, pode alterar o jogo.

Seja qual for o cenário, no entanto, inscrever o acesso ao aborto na Constituição dá proteção às mulheres e dificulta bastante a vida de quem estiver contra ele.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.