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Documento secreto diz que forças de segurança do Irã molestaram e mataram manifestante adolescente

Papéis da Guarda Revolucionária aos quais a BBC teve acesso mostram detalhes dos últimos momentos de Nika Shakarami

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Bertram Hill Aida Miller Michael Simkin
BBC News Brasil

Uma adolescente iraniana foi abusada sexualmente e morta por três homens que trabalhavam para a segurança do Irã, diz um documento vazado e atribuído a uma força do país.

O documento permitiu mapear o que aconteceu com Nika Shakarami, de 16 anos, que desapareceu de um protesto anti-regime no Irã em 2022. Seu corpo foi encontrado nove dias depois. O governo alega que ela se matou.

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Nika tinha apenas 16 anos quando desapareceu durante protestos contra o rígido código de vestimenta feminino do Irã - Atash Shakarami/via BBC News Brasil

As alegações do relatório foram apresentadas ao governo do Irã e aos seus Guardas Revolucionários, mas eles não responderam a pedidos de comentários.

Marcado como "Altamente Confidencial", o relatório resume uma audiência sobre o caso de Nika, realizada pelo Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, a força de segurança que defende a ordem islâmica do país.

O documento inclui o que seriam os nomes dos assassinos de Nika e dos comandantes seniores que tentaram esconder a verdade, além de mostrar detalhes perturbadores do que aconteceu na traseira de uma van descaracterizada na qual as forças de segurança mantiveram a adolescente.

Esses fatos incluem:

  • Um dos homens a molestou enquanto estava sentado sobre ela
  • Apesar de estar algemada e contida, ela revidou, chutando e xingando
  • Uma admissão de que isso provocou os homens a espancá-la com bastões

Existem vários documentos oficiais iranianos falsos em circulação. Por isso, a BBC passou meses verificando cada detalhe com múltiplas fontes. As extensas investigações indicam que os documentos obtidos pela rede britânica narram os últimos momentos da adolescente.

O desaparecimento e a morte de Nika Shakarami foram amplamente cobertos pela imprensa, e a fotografia da jovem tornou-se símbolo da luta das mulheres no Irã por mais liberdade. À medida que os protestos de rua se espalhavam por todo o país no segundo semestre de 2022, seu nome era gritado por multidões furiosas contra as regras estritas do país sobre o véu obrigatório.

O movimento Mulher, Vida, Liberdade havia começado poucos dias antes motivado pela morte de uma mulher de 22 anos, Mahsa Amini. Ela morreu devido a ferimentos sofridos sob custódia policial, de acordo com uma missão de investigação da ONU (Organização das Nações Unidas), depois de ser acusada de não usar o hijab adequadamente.

No caso de Nika, sua família encontrou o corpo dela em um necrotério mais de uma semana depois de seu desaparecimento em um protesto. As autoridades iranianas, porém, negaram que a morte de Nika estivesse ligada à manifestação e, depois de conduzirem sua própria investigação, afirmaram que ela tinha se suicidado.

Pouco antes de desaparecer, Nika foi filmada, na noite de 20 de setembro, perto do Parque Laleh, no centro de Teerã, em cima de um latão de lixo, ateando fogo em hijabs. Outros ao seu redor gritavam "morte ao ditador" em referência ao líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei.

O que ela não sabia à época é que estava sendo vigiada, como deixa claro o relatório confidencial.

Endereçado ao comandante-chefe da Guarda Revolucionária, o documento diz ter sido baseado em extensas conversas com as equipes que fizeram o policiamento daquele protesto. A manifestação foi acompanhada por diversas unidades de segurança disfarçadas, afirma o texto.

O documento diz que uma delas —a Equipe 12— suspeitava que a adolescente teria papel "de liderança, devido ao seu comportamento pouco convencional e repetidas ligações com o celular". A equipe enviou um de seus agentes para a multidão, passando-se por manifestante, para confirmar que Nika era de fato uma das líderes da manifestação.

Depois, segundo o relatório, ele convocou sua equipe para prendê-la. Mas a adolescente fugiu.

Sua tia já havia contado à BBC Persian, serviço de notícias em persa da BBC, que Nika ligou para uma amiga naquela noite para dizer que estava sendo perseguida pelas forças de segurança. Quase uma hora se passou antes que ela fosse localizada novamente, diz o relatório, detida e colocada no veículo da equipe —uma van de refrigeração sem identificação.

Nika estava no compartimento traseiro do veículo com três membros da Equipe 12 —Arash Kalhor, Sadegh Monjazy e Behrooz Sadeghy. O líder da equipe, Morteza Jalil, estava na parte da frente, com o motorista.

O grupo tentou encontrar um lugar para levá-la, diz o relatório.

Eles tentaram um campo policial nas proximidades, mas foram rejeitados porque o local estava superlotado. Então, seguiram até um centro de detenção, a 35 minutos de carro. O comandante do local inicialmente concordou em receber Nika, mas depois mudou de ideia.

"A acusada xingava e gritava constantemente", disse ele aos investigadores, segundo o relatório. "Naquele momento, havia outras 14 detentas na delegacia e minha percepção era que ela poderia agitar as outras", acrescentou o comandante. "Eu estava preocupado que ela pudesse causar um motim."

Morteza Jalil mais uma vez contatou seu quartel-general da Guarda Revolucionária para obter direcionamentos, diz o relatório, e foi instruído a se dirigir à famosa Prisão de Evin, em Teerã. No caminho, ele disse que começou a ouvir barulhos atrás dele vindos do compartimento traseiro completamente escuro da van.

É possível saber o que ele estava ouvindo pelo depoimento, descrito no documento, dos homens que guardavam Nika no compartimento traseiro.

Um deles, Behrooz Sadeghy, disse que, assim que foi colocada de volta na van depois de ser rejeitada pelo centro de detenção, Nika começou a xingar e a gritar.

"Arash Kalhor amordaçou-lhe a boca com as meias dele, mas ela começou a debater-se. Depois, Sadegh deitou-a no freezer horizontal e sentou-se sobre ela. A situação acalmou-se", disse ele aos investigadores. "Não sei o que aconteceu, mas, depois de alguns minutos, ela começou a xingar. Eu não conseguia ver nada, só conseguia ouvir sons de luta e golpes."

Ele diz que ligou brevemente a lanterna do telefone e viu que Sadegh Monjazy colocou "a mão dentro das calças dela". Depois disso, disse Arash Kalhor, eles perderam o controle.

"Ele não sabe (...) quem [estava fazendo isso], mas ele podia ouvir (...) o bastão atingindo a acusada [Nika]. (...) 'Comecei a chutar e socar, mas realmente não sabia se estava acertando nossos homens ou a acusada'", diz o relatório.

Sadegh Monjazy contradisse a declaração de Arash Kalhor e disse que ela foi motivada por ciúme profissional. Ele negou ter colocado a mão dentro das calças dela, mas afirmou que não podia negar que ficou "excitado" ao sentar-se sobre a adolescente e que tocou as nádegas de Nika.

Ele disse que isso fez a adolescente arranhá-lo e sacudi-lo, apesar de suas mãos estarem amarradas nas costas, fazendo-o cair. "Ela chutou meu rosto, então tive que me defender."

Da cabine da van, Morteza Jalil ordenou ao motorista que parasse. Ele abriu a porta traseira e encontrou o corpo já sem vida de Nika. Ele disse que limpou o sangue do rosto e da cabeça dela, "que não estavam em boas condições".

O relato reforça o que a mãe de Nika disse sobre o estado em que encontrou a filha no necrotério e a certidão de óbito de Nika, obtida pela BBC Persian em outubro de 2022. O documento afirma que ela foi morta por "múltiplos ferimentos causados por golpes com um objeto contundente".

O líder da equipe, Morteza Jalil, admitiu que não tentou descobrir o que havia acontecido.

"Eu só estava pensando em como transferi-la e não fiz perguntas a ninguém. Só perguntei: 'Ela está respirando?' Acho que foi Behrooz Sadeghy quem respondeu: 'Não, ela está morta'." Com um assassinato em mãos, Jalil ligou para o quartel-general da Guarda Revolucionária pela terceira vez.

Dessa vez, ele falou com um oficial superior, de codinome "Naeem 16".

"Já tivemos mortes nas nossas instalações e eu não queria que o número subisse para 20", disse Naeem 16 à investigação. "Levá-la para a base não teria resolvido problema algum." Ele disse a Jalil para simplesmente "desová-la na rua". Jalil afirmou que eles deixaram o corpo de Nika em uma rua tranquila sob a rodovia Yadegar-e-Emam, em Teerã.

O relatório conclui que uma agressão sexual causou a briga no compartimento traseiro da van e que as pancadas da Equipe 12 causaram a morte de Nika. "Foram usados três bastões e três tasers [armas de choque]. Não está claro qual dos golpes foi o fatal", diz o documento.

O relatório contradiz a narrativa do governo sobre o que aconteceu com Nika. Quase um mês depois de seu funeral, a televisão estatal transmitiu os resultados da investigação oficial, que dizia que Nika havia saltado de um prédio.

A emissora mostrou imagens de circuito interno de televisão de uma pessoa entrando em um prédio de apartamentos, mas a mãe da adolescente disse à BBC Persian, em uma entrevista por telefone, que ela não poderia, "sob nenhuma circunstância, confirmar que essa pessoa é Nika". "Todos sabemos que eles estão mentindo", disse Nasrin Shakarami mais tarde num documentário da BBC, discutindo as alegações das autoridades sobre as mortes de manifestantes.

A investigação da BBC Eye não se preocupou apenas com o conteúdo do relatório, mas também se ele poderia ser considerado uma falsificação. Às vezes, o que parecem ser documentos oficiais iranianos e outros materiais que circulam na internet são falsos.

A maioria desses documentos falsificados, no entanto, são fáceis de detectar porque divergem claramente do formato oficial, com espaçamento de letras e cabeçalhos equivocados, ou contendo erros gramaticais e ortográficos significativos.

Eles também podem incluir o slogan ou logotipo oficial errado para o ano de origem que mimetizam, ou um título anacrônico para uma agência ou departamento governamental, por exemplo. Outro indicador é a linguagem que não corresponde ao estilo muito específico que tende a ser utilizado pelos órgãos oficiais iranianos.

O documento no qual a investigação da BBC se baseou continha algumas dessas inconsistências. Por exemplo, a força policial "Naja", citada no relatório, era conhecida como "Faraja" na época. Portanto, para testar a veracidade do documento, nós o entregamos a um ex-oficial da inteligência iraniana que viu centenas de documentos legítimos.

Usando um código oficial emitido todos os dias para altos funcionários da inteligência no Irã, ele administrou o arquivo da Guarda Revolucionária para verificar se o arquivo do caso do qual o relatório supostamente fazia parte realmente existia e do que se tratava.

Ele recebeu a confirmação de que sim, e que o número do relatório mostrava que ele fazia parte de um arquivo de 322 páginas sobre manifestantes antigoverno em 2022. A informação deu confiança à BBC de que o documento é genuíno, embora isso não possa ser totalmente comprovado.

Seu acesso único à Guarda Revolucionária também ajudou a rede britânica a resolver outro mistério —a identidade de "Naeem 16", o homem que disse à equipe para se livrar do corpo de Nika.

O ex-oficial de inteligência fez isso fazendo outra ligação —desta vez para alguém dentro do aparato militar iraniano. Disseram-lhe que Naeem 16 é o indicativo de chamada do capitão Mohammad Zamani, a serviço da Guarda Revolucionária. O nome está na lista de participantes da audiência de cinco horas sobre a morte de Nika, resumida no relatório.

Apresentamos as acusações à Guarda Revolucionária e ao governo iraniano. Eles não responderam. Os homens responsáveis pela morte de Nika não foram punidos, até onde a BBC sabe.

Uma pista sobre o porquê disso pode ser encontrada no próprio documento. Todos os integrantes da Equipe 12, que estiveram na audiência, estão listados no relatório e à direita de seus nomes está o grupo ao qual pertencem: "Hezbollah".

Isso se refere a um grupo paramilitar iraniano, o Hezbollah, sem relação com o grupo libanês de mesmo nome. Seus membros são utilizados pela Guarda Revolucionária, mas por vezes operam fora da sua jurisdição, como o relatório parece reconhecer.

"Como as pessoas acima mencionadas pertenciam às forças do Hezbollah, não foi possível acompanhar este caso além da obtenção dos compromissos e garantias de segurança necessários", afirma o documento. O oficial da Guarda Revolucionária, Naeem 16, por outro lado, recebeu uma reprimenda por escrito, acrescenta o texto.

Cerca de 551 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança durante o movimento Mulher, Vida, Liberdade do Irã, a maioria deles por tiros, de acordo com a missão de investigação da ONU.

Os protestos diminuíram depois de alguns meses devido à repressão sangrenta das forças de segurança. Seguiu-se uma pausa na atividade da polícia moral do Irã, mas uma nova onda de repressão às violações do código de vestimenta islâmico começou no início deste mês.

Entre os presos está a irmã mais velha de Nika, Aida.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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