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João Miragaya

Legítimo e necessário, sionismo vive crise de identidade

Movimento essencial para a fundação do Estado de Israel tem sido sequestrado por base do governo Netanayahu, que converte caráter moderno e secular em intolerância e fanatismo

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João Miragaya

Mestre em história pela Universidade de Tel Aviv e colaborador do Instituto Brasil-Israel

O cientista político Shlomo Avineri (1933-2023) definiu o sionismo como uma revolução ocorrida no seio do judaísmo. O movimento, segundo o autor, não tinha como objetivo somente dar uma resposta às perseguições sofridas pelos judeus enquanto minorias ao redor do mundo, embora desse à questão um lugar de destaque. Na introdução de "A Ideia Sionista", Avineri defende que o sionismo rompia com a identidade tradicional e religiosa da diáspora judaica, possibilitando uma resposta caracterizada pela "busca da autodeterminação e libertação sob as condições modernas de secularização e de liberalismo".

O sionismo, então, seria uma resposta moderna do povo judeu à modernidade. Foi deste processo que nasceu o Estado de Israel que, nesta semana, completou 76 anos de independência, no que talvez seja o momento de maior crise da identidade judaica e sionista dos últimos séculos.

Judeu ultraordodoxo caminha em Jerusalém, Israel
Judeu ultraordodoxo caminha em Jerusalém, Israel - Ronaldo Schemidt - 14.mai.24/AFP

As forças propulsoras para a criação do Estado de Israel eram seculares e modernas. A materialização da ideia sionista se deu por correntes laicas, fossem liberais ou socialistas, o que de mais vanguardista havia no contexto pós-Segunda Guerra Mundial. Fosse por meio da vibrante Tel-Aviv, a primeira cidade hebraica surgida em mais de 2.000 anos, ou dos fascinantes kibutzim, que inspiravam socialistas das mais diversas correntes, o Estado de Israel parecia destinado, de fato, a revolucionar o sujeito judeu dali em diante.

O sionismo promoveu o surgimento do novo hebreu, que desenvolvia uma cultura moderna e nacional e agarrava seu destino com suas próprias mãos. Essa ideia romântica de país encantava expoentes antagônicos, de Churchill a Simone de Beauvoir. Tal entusiasmo, inclusive, eclipsava o cruel destino do povo palestino, cujo direito de autodeterminação não foi —e segue sem ser— respeitado.

Passamos para outro Avineri, o jornalista Uri (1923-2018), apenas dez anos mais novo que Shlomo, com quem não tinha parentesco. Em 2015, Uri Avineri alertava para as transformações em curso no sionismo, que alteravam seu caráter para algo oposto aos valores modernos que impulsionam a sua criação. Em "O Estado Hebraico em Perigo", publicado no Haaretz, alegava que, desde 1967, transcorre em Israel uma conversão a passos largos do Estado hebraico para o Estado judaico.

Segundo Uri Avineri, forças periféricas nacionalistas religiosas se radicalizaram e se somaram aos grupos ultraortodoxos, em sua maioria não sionistas, em prol de um projeto retrógrado de um judaísmo "fanático, violento, e agora assassino". E profetizava que tal grupo pode enterrar o Estado, como fizeram os fanáticos com o Segundo Templo.

Uri Avineri morreu em 2018 e não presenciou a formação do governo mais extremista da história de Israel, no início de 2023. Grupos incentivados por políticos e outros expoentes, em meio a uma guerra altamente mortífera, pregam abertamente a recolonização da Faixa de Gaza por civis judeus, cuja proteção seria garantida pela restauração das tropas israelenses na região. Gradualmente, grupos extremistas religiosos pautam cada vez mais a agenda do dia em Israel e sequestram o sionismo, transformando seu caráter moderno e secular em intolerância e fanatismo. Por fim, Uri Avineri propunha que a Israel secular e nacional reagisse enquanto houvesse tempo.

Retornamos a Shlomo Avineri. No epílogo de sua obra, ele se refere ao sionismo como uma revolução permanente, que teria criado um sujeito judeu normativo, com uma dimensão pública e forte influência sobre os judeus tradicionais e relativamente religiosos da diáspora. Algo que, por lógica, deve estar constantemente em transformação, a fim de se adequar à modernidade. Passaram-se anos, e é custoso imaginar que Simone de Beauvoir, 76 anos depois, pudesse ser solidária ao Estado de Israel, tomado por essa turba de messiânicos e intolerantes.

O sionismo, enquanto movimento de libertação, é legítimo e necessário. Da mesma maneira que ele provocou uma reinvenção dos judeus no século 19, urge que se reinvente agora. Antes que seja tarde demais.

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