Descrição de chapéu Venezuela refugiados

Cai verba humanitária para venezuelanos no Norte do Brasil; só 9% do pedido pelas ONGs foram destinados

Para organizações, queda já era esperada diante de guerras na Ucrânia e em Gaza; maiores doadores, EUA também citam desastres naturais para redirecionar recursos

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João Pedro Capobianco Isabela Rocha
São Paulo

Agentes humanitários em Roraima e no Amazonas receberam até agora 9% do financiamento declarado como necessário para 2024 nas operações de acolhida de imigrantes venezuelanos, de acordo com a ONU. A quantia repassada até a última sexta-feira (19) foi de US$ 10 milhões (R$ 55,9 milhões).

Em 2023, a plataforma R4V, criada pelas Nações Unidas para monitorar a situação dos imigrantes, registrou que organizações de assistência migratória na região receberam 18,8% do financiamento requisitado, ou US$ 22,9 milhões (R$ 128 milhões). Embora ainda restem cinco meses até o fim de 2024, o cenário não deve ser melhor que o do ano passado.

Fotografia mostra quatro refugiados deitados lado a lado em um gramado envolta de uma calçada. Estirados encima de lonas, alguns usam plásticos como cobertor, outros estão apenas com a roupa do corpo. Do outro lado da calçada, mais pessoas estão deitadas na mesma condição. Ao fundo, estabelecimentos da cidade.
Venezuelanos dormem ao redor da rodoviária de Boa Vista, capital de Roraima. Com o agravamento da crise na Venezuela milhares de pessoas fogem do país rumo ao Brasil, sem dinheiro muitos se acumulam pelas ruas de Boa Vista, capital brasileira mais próxima da fronteira - Avener Prado/Avener Prado - 15.ago.18/Folhapress

Dentre os maiores doadores às operações no Brasil neste ano estão os Estados Unidos, a União Europeia e o Unicef, braço da ONU para a infância.

De acordo com o Departamento de Estado dos EUA, o país já destinou neste ano mais de US$ 19 bilhões (cerca de R$ 106 bilhões) para emergências. Em 2023, as contribuições chegaram a quase US$ 15 bilhões (cerca de R$ 83 bilhões).

Para o Brasil, foram destinados quase US$ 182 milhões (cerca de R$ 1 bilhão) nos últimos seis anos, dos quais US$ 45 milhões (cerca de R$ 250 milhões) para alimentação de venezuelanos em Roraima e no Amazonas. Quantias menores foram para desenvolvimento profissional, assistência familiar e fortalecimento de ONGs e agentes governamentais que atuam na região.

Em nota enviada à Folha, o Departamento de Estado afirmou que guerras persistentes, desastres naturais mais frequentes e os efeitos residuais da pandemia enfraquecem o financiamento humanitário pelo mundo. A expectativa dos EUA, maior doador global para causas emergenciais, é que o dinheiro não acompanhe o aumento de "necessidades sem precedentes" que continuarão em 2024.

O êxodo de venezuelanos foi considerado crise humanitária em 2018 por organizações internacionais. Em média, 300 pessoas cruzam a fronteira terrestre entre Roraima e Venezuela todos os dias, de acordo com dados da ONU. A ação de acolhida é feita de forma conjunta entre as Forças Armadas, o governo e ONGs.

Segundo a plataforma R4V, até março deste ano havia 312.892 venezuelanos registrados no CadÚnico, cadastro que permite a famílias em situação de vulnerabilidade ter acesso a programas de assistência do governo, como o Bolsa Família.

Coordenador de projetos da Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (Adra) em Roraima, John Anderson diz que a queda de recursos era esperada, sobretudo em razão de novos conflitos, como as guerras na Ucrânia e em Gaza.

Anderson relata que um projeto de segurança alimentar desenvolvido pela ONG para os venezuelanos quase foi extinto pela redução de verba. Segundo ele, só continuou em 2023 e 2024 por financiamento da própria Adra.

A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul é exemplo de como novas crises afetam o trabalho no Norte do país. Três parceiros da Adra em Roraima sinalizaram redirecionamento de recursos para o Sul. A Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) também anunciou, em maio, o envio a cidades gaúchas de itens de necessidade básica que estavam estocados em Boa Vista, na Colômbia e no Panamá.

De Manaus, a ONG Hermanitos, que ajuda a inserir os venezuelanos no mercado de trabalho, faz parcerias com empresas e o setor público. Um dos fundadores, Tulio Duarte diz entender as cobranças da sociedade civil com a redução no financiamento: "Mas estamos vivendo em um mundo com fenômenos e demandas muito grandes".

Os impactos da diminuição de recursos não são instantâneos, mas podem levar a um retrocesso no médio e longo prazos, afirma Fernando Xavier, professor de direito internacional da Universidade Federal de Roraima. "Isso ainda não aparece visivelmente. Os trabalhos continuam acontecendo, a rotina dos abrigos permanece a mesma".

Mais de 125.500 venezuelanos foram realocados para outros estados desde abril de 2018, distribuídos entre 1.026 municípios, de acordo com dados da ONU de janeiro deste ano. A chamada interiorização facilita a integração socioeconômica e diminui a pressão sobre serviços públicos, de acordo com a agência.

Para alguns agentes humanitários, há certo comodismo por parte do governo. "Quando se fala em crise humanitária, pensa-se só nos primeiros anos. Mas já estamos nesta há seis anos e os recursos vão deixando de chegar. São seis anos de imigração sem política pública", diz a secretária-executiva da Cáritas Diocesana em Roraima, Orilene Pinheiro.

Em nota, a Prefeitura de Boa Vista disse que investe no acolhimento dos imigrantes. "A atuação da prefeitura tem sido, desde 2016, de acolhimento e enfrentamento dos reflexos da chegada de centenas de migrantes diariamente." Para a administração municipal, os impactos de uma queda no financiamento são "altamente preocupantes e diversos".

O Governo do Amazonas afirmou que faz o acolhimento, auxílio documental e presta assistência aos estrangeiros. "O governo vem trabalhando na implementação de um Centro Estadual de Referência para Atendimento de Migrantes, Refugiados e Apátridas no Estado do Amazonas, com o foco de atuar no âmbito da cidadania como proteção dessa população, além de possibilitar a articulação para o recebimento de contrapartida financeira e apoio na manutenção do local."

O Governo de Roraima, as Prefeituras de Manaus e Pacaraima (RR), e o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome não responderam à reportagem.

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