Guerra Israel-Hamas destrói também a infância de palestinos na Faixa de Gaza

Três meses após perder os pais e dois irmãos em uma ofensiva israelense, menino de 9 anos também é vítima de bombardeio

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Raja Abdulrahim
The New York Times

A guerra na Faixa de Gaza mal havia começado quando Khaled Joudeh, 9, sofreu uma perda inimaginável. Sua mãe, seu pai, seu irmão mais velho e sua irmã, um bebê, junto com dezenas de outros parentes, foram mortos em um ataque aéreo israelense em sua casa.

Nos meses seguintes, Khaled tentou ser corajoso, lembra seu tio, Mohammad Faris. Ele consolava seu irmão mais novo, Tamer, que, assim como Khaled, sobreviveu ao ataque de 22 de outubro que matou sua família. Mas Tamer, 7, ficou gravemente ferido, com a coluna e a perna fraturadas, e sentia dor constante.

"Ele sempre acalmava seu irmão quando ele chorava", diz Faris ao The New York Times em uma entrevista telefônica recente. "Ele dizia a Tamer: ‘mamãe e papai estão no céu. Mamãe e papai ficariam tristes se soubessem que estamos chorando por causa deles'."

A imagem mostra um hospital onde várias pessoas estão sentadas. À esquerda, há mulheres usando hijabs. No centro, uma criança em uma cadeira de rodas com a perna engessada, e ao lado dela, um menino em pé. À direita, uma mulher sentada com um hijab escuro.
Khaled Joudeh (em pé) conversa com seu irmão Tamer (na cadeira de rodas), que foi ferido no ataque aéreo israelense que matou seus pais e dois irmãos em Gaza; ambos foram mortos em um bombardeio em janeiro deste ano - Samar Abu Elouf - nov.23/The New York Times

À noite, quando os incessantes ataques aéreos israelenses em Gaza recomeçavam, Khaled acordava tremendo e gritando, às vezes correndo para seu tio em busca de conforto.

Foi uma existência curta e aterrorizante para os jovens irmãos, que terminou quando outro ataque aéreo atingiu a casa da família onde estavam abrigados em 9 de janeiro, matando Khaled, Tamer, sua prima de 2 anos, Nada, e outros três parentes, de acordo com dois membros da família.

Sua história exemplifica como a guerra em Gaza tem causado um impacto excepcional nas crianças que estão no meio do conflito.

Após o ataque liderado pelo Hamas em Israel em 7 de outubro, as Forças Armadas israelenses iniciaram a guerra com o objetivo declarado de erradicar o grupo terrorista, desencadeando um dos bombardeios aéreos mais intensos que o mundo já viu neste século em uma Gaza densamente povoada.

Israel acusou o Hamas de se aproveitar da área urbana de Gaza para fornecer a seus combatentes e à infraestrutura de armas uma camada extra de proteção, construindo túneis sob os bairros, lançando foguetes perto de casas civis e mantendo reféns nos centros das cidades.

O Hamas nega essas acusações e diz que seus membros são residentes de Gaza e vivem entre a população.

Especialistas em direito internacional afirmam que Israel tem a responsabilidade de proteger civis, mesmo que o Hamas os explore da maneira como Israel diz que faz. As Forças Armadas israelenses afirmam que tomam "todas as precauções viáveis" para mitigar danos aos civis.

As crianças de Gaza têm sofrido de várias maneiras. De dezenas de milhares de palestinos mortos na guerra, estima-se que 15 mil tinham menos de 18 anos, de acordo com autoridades de saúde de Gaza. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que pelo menos 19 mil crianças ficaram órfãs. Quase 1 milhão de crianças foram deslocadas, de acordo com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

"Gaza continua sendo o lugar mais perigoso do mundo para crianças", disse Jonathan Crickx, porta-voz do Unicef.

A maioria das crianças vive em casas superlotadas onde várias famílias se abrigam juntas, ou em barracas improvisadas que podem parecer fornos no calor do verão, sem água corrente e saneamento básico. Milhares estão gravemente desnutridos e correm risco de morrer de fome.

As Nações Unidas pediram na última sexta-feira (16) um cessar-fogo de uma semana em Gaza para permitir a vacinação contra a poliomielite e prevenir um surto da doença, afirmando que muitas crianças estão em risco. No mesmo dia, o primeiro caso de poliomielite na região em muitos anos foi confirmado pelo Ministério da Saúde de Gaza.

Tem sido uma luta constante apenas para sobreviver em Gaza, e as crianças tiveram que ajudar.

Quando visitou o território alguns meses atrás, Crickx disse que raramente via crianças brincando ou rindo. Em vez disso, ele as via principalmente ajudando suas famílias: carregando jarras de água nos postos de abastecimento, tentando encontrar comida e ajudando a mover seus poucos pertences quando a família era deslocada.

Crickx disse que viu na rua um menino que parecia ter no máximo cinco anos empurrando uma cadeira de rodas com dois galões de água que ele havia enchido. As alças da cadeira de rodas eram mais altas do que a cabeça do menino, e ele mal conseguia ver para onde estava indo.

"Não há infância em Gaza", escreveu Louise Wateridge, porta-voz da principal agência da ONU que ajuda os palestinos, a UNRWA, nas redes sociais no mês passado. "Desnutridas, exaustas. Dormindo em escombros ou sob lonas plásticas. Vestindo a mesma roupa por nove meses. A educação foi substituída pelo medo e pela perda. Perda de vida, lar e estabilidade", acrescentou.

Nas primeiras semanas do conflito, as famílias começaram a planejar o pior. O pai de Khaled disse aos parentes que, se algum deles fosse morto, aqueles que sobrevivessem deveriam proteger e educar as crianças, disse Faris.

Pouco depois, em 22 de outubro, um ataque aéreo israelense destruiu dois prédios onde a família extensa de Khaled estava morando na cidade de Deir Al-Balah, no centro de Gaza, segundo parentes e jornalistas locais.

Khaled e Tamer foram os únicos de sua família imediata a sobreviver. Nada, sua prima de 2 anos, foi a única sobrevivente desse primeiro ataque em sua própria família imediata.

A imagem mostra um grupo de pessoas ao redor de uma criança morta, envolta em um lençol branco. Um menino, irmão da outra criança, está ajoelhado ao lado da irmã, chorando, enquanto outros homens tocam a criança com as mãos.
Khaled Joudeh chora sobre o corpo de sua irmã mais nova, Misk, em Deir Al-Balah, na Faixa de Gaza - Samar Abu Elouf - 22.out.23/The New York Times

Logo após o ataque de outubro, no pátio do necrotério onde dezenas de corpos envoltos em mortalhas estavam deitados no chão, Khaled, descalço e chorando, beijou os rostos de seus pais e irmãos em uma triste despedida final.

Um total de 68 membros da família estendida de Khaled foram mortos naquele dia enquanto dormiam em suas camas, de acordo com relatos na época de três parentes do menino. Eles foram sepultados juntos, lado a lado, em uma vala comum.

Por quase um mês após a morte de seus pais, Khaled e Tamer ficaram com seu tio, Faris, em outro prédio da família em Deir Al-Balah. Khaled, Tamer e Nada ocasionalmente saíam para brincar na rua cheia de destroços.

"Eles são crianças e tentavam se apegar à sua infância", diz Faris. "Eles brincavam do lado de fora em certos momentos de calma, mas os ataques aéreos muitas vezes os faziam voltar gritando", acrescenta.

"Ele vinha rapidamente e se escondia perto de mim", diz Faris sobre Khaled.

Então, em 9 de janeiro, a curta vida de Khaled chegou ao fim.

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