Escolas de samba são, na essência, uma forma particular de rancho. Apesar de terem música e coreografia peculiares, herdaram de seus antepassados, entre outros elementos, a ideia fundamental que justifica um desfile: o enredo.
Na base de um conjunto complexo de artes plásticas, musicais, dramáticas e coreográficas, está a narrativa, que contém três níveis superpostos: a letra do samba; a figuração do enredo (por meio de alegorias, fantasias, adereços); e um roteiro, peça literária (obrigatória para o júri) que define a tese e esboça a sequência do desfile.
Embora seja a porta de entrada para as ideias contidas no enredo, a letra do samba é secundária, como parâmetro da criatividade narrativa, pois seu alcance estético sempre dependeu do enredo.
No que denominamos (Luiz Antonio Simas e eu) de período clássico do samba de enredo, as letras, em si, não tinham beleza.
Foram as melodias que atingiram patamares de extraordinária sofisticação, talvez para compensar o inventário imutável de vultos e efemérides extraído de insossos manuais escolares: muitas Iracemas, múltiplos Guaranis, incontáveis bandeirantes, Santos Dumonts e Rui Barbosas, além da interminável Guerra do Paraguai.
Só a partir dos anos 1960, com uma ampliação do espectro temático (mitos indígenas e africanos, cultura popular e regional, obras literárias, episódios históricos e personagens não canônicos), as letras se desenvolveram.
Boas composições poéticas, portanto, dependem de um bom enredo. E esse enredo entrou em crise, em meados dos anos 1990. Uma das razões talvez seja o relativo esgotamento daquele manancial, depois de 30 anos de exploração.
Creio, no entanto, que o motivo dominante seja outro: sinto (com poucas exceções) certa preguiça intelectual nos criadores de enredo, que podem ser os próprios carnavalescos. E isso é ainda mais grave hoje, quando o tema nacional deixa de ser obrigatório.
Não se justifica, assim, que o enredo, depois de involuir ao nível de simples tema, tenha se apequenado ainda mais, para chegar a mero mote. Como, por exemplo, num hipotético "petiscos brasileiros". Pessoalmente, ficaria em dúvida sobre qual alegoria pôr na frente: se a do croquete ou a do bolinho de bacalhau.
Houve também uma profusão de enredos irrelevantes, em geral vinculados a patrocinadores, como gás ou iogurte. Não há como exigir dos compositores um bom samba. Não há como fazer exibição plástica que emocione.
Outro problema grave, de natureza intelectual, é a permanência de uma certa teoria das três raças, segundo a qual o índio é guerreiro e o negro lutou, mas trouxe samba, acarajé e Iemanjá. O branco, naturalmente, é o responsável pelo resto. No século 21, sinceramente, chega a ser constrangedor.
Do ponto de vista estritamente semiótico, a figuração do enredo sofre a limitação imposta pelo espaço e por sua natureza sequencial, embora não necessariamente cronológica. Como os enredos e as abordagens estão muito estagnados, a narrativa plástica não tem como se renovar, salvo no que possui de menos relevante: os suportes.
O fenômeno tomou impulso com a chamada verticalização de carros alegóricos; e culmina hoje com o emprego abusivo da tecnologia, como homens voadores ou efeitos de luz e fumaça, que podem ser um espetáculo em si, mas nada acrescentam de substancial à narrativa.
Criadores de enredo precisam estudar mais, explorar novos horizontes temáticos e investir na dramatização propriamente dita.
Se sucumbirem à tecnologia, em detrimento da arte (que é humana), as escolas de samba perderão seu sentido. Na concorrência há coisa bem melhor.
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