Descrição de chapéu

O desinteresse recorde do brasileiro pela Copa do Mundo pode ser um sinal positivo? NÃO

Futepolítica

Moradores da zona leste de São Paulo decoram rua para a Copa do Mundo
Moradores da zona leste de São Paulo decoram rua para a Copa do Mundo - Rivaldo Gomes - 14.mai.18/Folhapress
Luiz Henrique de Toledo

O Brasil não é dos desinteressados. Numa de suas notáveis crônicas futebolísticas a respeito do comportamento do torcedor, o dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), pouco antes daquela que seria a primeira conquista de um selecionado brasileiro em Copas, escreveria:

"Há uma relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção. Um péssimo torcedor corresponde a um péssimo jogador (...)."

O triunfo de 1958 passaria a amparar cada vez mais uma narrativa ufanista entre futebol e sociedade. Agora na Rússia talvez convenha renovar a pergunta se ainda vale a pena "ler" o Brasil pelo futebol.

O insucesso na Copa de 1950 perduraria na memória como representação de um Brasil escamoteado, revelando a face menos rosada da democracia racial. A derrota acabaria debitada na conta sobretudo dos jogadores negros, maliciosamente responsabilizados pelo malogro num momento em que o país tentava se afirmar como nação moderna e democraticamente estável.

Décadas depois, na segunda Copa ocorrida no país, além do devastador 7 a 1 imposto pelo selecionado alemão, o xingamento direcionado à então presidenta da República, num coro desferido sobretudo pelos mais endinheirados presentes ao estádio, expunha ao mundo a debilidade da política nacional, escancarando projetos distintos de Brasis encenados como antagônicos, alimentando um binarismo ideológico simplista entre direita e esquerda.

As sucessivas crises de representação política que tomaram recentemente o país, tornando o futuro próximo um evento politicamente ainda mais incerto, espelham uma seleção que, para completar esse quadro de desassossego, é alicerçada em modelos de gestão esportiva para lá de suspeitos.

Ademais, interroga-se sobre o que esperar de multimilionários craques cada vez mais longe do burburinho da vida ao rés do chão nacional. Contudo, é necessário saber interpretar o silêncio do torcedor, até mesmo porque mora em cada um o pragmatismo esportivo que pode ser revertido. Vale esperar para ver o quanto o desempenho do selecionado poderá, à revelia da conjuntura, mudar tal estado anímico.

Já para aqueles que pouco apreciam futebol e as experiências de convívio com a diferença, o desinteresse já é a regra e, portanto, o comportamento se torna menos sujeito ao jogo e às especulações que poderiam estabelecer relações mais intensas entre futebol e política.

O desinteresse capturado em recentes pesquisas de opinião a respeito da mobilização torcedora pelo mundial não deixa de ser um sinal ruidoso dessas mudanças e sucessivas crises de representação de uma nação exposta às demandas de classe, gênero, expressões religiosas, ideológicas e existenciais.

Os desencaixes das identidades no jogo das representações têm colocado os torcedores à prova. O sujeito que passou a se desentender com um familiar por questões ideológicas terá que negociar se torcerão juntos ou separados pelo selecionado. Usar ou não usar a camisa amarela envolve cálculos políticos consideráveis. Torcer ou não torcer por este ou aquele jogador que ostenta estilo de vida nababesco sensibiliza torcedores mais atentos às novas demandas que apregoam austeridade e recato.

O momentâneo desinteresse pela Copa —que, repito, poderá ser revertido pelo pragmatismo torcedor à medida que as vitórias começarem a aparecer— é menos função de maturidade política e pode ser creditado, ao contrário, ao manejo da intimidade existente entre política e futebol.

Luiz Henrique de Toledo

Doutor em antropologia social (USP), professor de ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros de "Lógicas no Futebol"

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.