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Renan Ferreirinha: A ética do jeitinho brasileiro

Prática pode ser resposta social inteligente para humanizar o sistema

Renan Ferreirinha, cofundador dos movimentos Mapa Educação e Acredito
Renan Ferreirinha, cofundador dos movimentos Mapa Educação e Acredito - Keiny Andrade - 6.nov.17/Folhapress

O Brasil é único. É um país criativo, inventivo e nós, brasileiros, sabemos nos adaptar às adversidades. É o nosso diferencial. O jeitinho brasileiro é idiossincrático e, por isso mesmo, pode ter uma conotação negativa ou positiva, a depender do contexto, conforme esta Folha mostrou recentemente em artigos publicados. Por um lado, é associado a desonestidade, quebra de leis e corrupção. Por outro, a virtudes, como persistência, criatividade e solidariedade.

Foquei meus estudos em Harvard para tentar entender esse fenômeno sob orientação do filósofo político Michael Sandel. A conclusão é que, numa sociedade bastante desigual e burocratizada, o “jeitinho do bem” pode humanizar relações e encontrar um caminho para melhorar a vida das pessoas, mas o “jeitinho do mal” enraizado em práticas diárias deve ser combatido.

As origens históricas do jeitinho remontam ao início da colonização portuguesa. Até 1808, quando a família real portuguesa chegou ao Rio, pouca atenção foi dada ao desenvolvimento de leis, instituições e normas. Antes disso, 98% da população era analfabeta e quase 40% de seus habitantes eram escravos. Como afirmou o ministro do STF Luís Roberto Barroso, “nós começamos muito atrás e seguimos um longo caminho para nos tornarmos a democracia relevante e uma das principais economias globais". O período colonial, como apontou Barroso, deixou o Brasil com idiossincrasias disfuncionais, que, desde então, várias gerações de brasileiros têm tentado superar.

Na visão dele, a qual eu corroboro, o Estado brasileiro tem três disfunções primitivas: o patrimonialismo, o funcionalismo oficial e a cultura da desigualdade. O primeiro surgiu como um legado da tradição ibérica de não distinguir deveres públicos de interesses privados.

A inclinação para a sobreposição de responsabilidades públicas com agendas particulares tornou-se tão forte que a Constituição brasileira de 1988 teve que proibir explicitamente os funcionários públicos de usar dinheiro público para promoção pessoal. A naturalização contraintuitiva do inaceitável é mais bem englobada pela máxima brasileira do “rouba, mas faz”.

Há também uma dependência do Estado em todas as esferas. Os brasileiros se acostumaram a buscar o apoio e o financiamento do governo e isso coloca os benefícios pessoais geralmente acima do dever. Outra máxima popular sintetiza bem essa característica grosseira, que fomenta uma sociedade do favoritismo e da exclusão: “Aos amigos tudo; aos inimigos a lei”.

Ainda há a forte cultura de desigualdade. Uma vez que algumas instituições democráticas ainda são frágeis e o poder da lei nem sempre é aplicável, uma estrutura social lateral baseada na distribuição desigual de privilégios emergiu sustentada por privilégios especiais. A máxima do “você sabe com quem está falando?” incorpora esse preceito.

O lado negativo é a violação de normas sociais e das leis do dia a dia, como a corrupção em grande escala que acontece na política e nas empresas. E deve ser combatido integralmente. Do contrário, o “mecanismo” vai se proliferar na sociedade.

O “jeitinho” não deveria existir em uma sociedade ideal, na qual eficiência e igualdade são características vitais. Contudo, o Brasil está longe de ser uma sociedade ideal. O lado bom do jeitinho surge como uma resposta social inteligente para humanizar o sistema, aliviar dificuldades e consertar certas injustiças. Portanto, ao contrário do que muitos críticos sugeriram, não deve ser abolido, mas sim reformulado para garantir a preeminência de suas melhores práticas.

Renan Ferreirinha

Formado em economia e ciência política em Harvard e cofundador dos movimentos Mapa Educação e Acredito

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