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Marcelo Issa

Partidos políticos e sentimento antissistema

Fosso entre sociedade e seu sistema político deve seguir assombrando a democracia brasileira

Sessão plenária da Câmara dos Deputados, em 2017 - Pedro Ladeira - 5.set.17/Folhapress
Marcelo Issa

A dimensão da repulsa ao sistema político que vigorou nos últimos 20 anos ficou evidente com as eleições. E foi precisamente a falta de partidos íntegros, transparentes, abertos e programáticos que fez com que o arranjo institucional de coalizão – que deveria produzir pluralidade e moderação nas decisões – passasse a ser associado simplesmente a fisiologismo e corrupção, dando espaço para o difuso e arriscado sentimento antissistema.

Até o ano passado, os partidos prestavam contas em montanhas de papel, o que em parte explica a grande dificuldade do TSE de fiscalizar a contabilidade das agremiações. As últimas contas julgadas são de 2012.

A Justiça Eleitoral buscou implementar em 2006 um sistema eletrônico de prestação de contas, mas houve forte resistência das siglas, e o projeto acabou engavetado. Nos últimos anos, nova tentativa e, mais uma vez, a maioria dos partidos insurgiu-se contra a modernização.

Mas agora a sociedade civil estava atenta, e o sistema foi finalmente implementado. As legendas tiveram, então, que lançar na plataforma do TSE suas contas de 2017 e, pela primeira vez, a população pode acessar a contabilidade de seus partidos políticos de maneira organizada.

O Transparência Partidária analisou esses dados e constatou, por exemplo, que recursos públicos corresponderam a mais de 80% da receita total do sistema partidário do ano passado e que os diretórios nacionais concentraram 92% desses recursos. Do ponto de vista das despesas, mais de R$ 120 milhões foram alocados em rubricas designadas por alguma variante da expressão “outros”. Apenas com “outros serviços técnico-profissionais” foram quase R$ 45 milhões.

O principal gasto, entretanto, foi com pessoal, quase R$ 140 milhões. Em seguida, as fundações partidárias, que receberam mais de R$ 130 milhões, não se sabe ao certo com que finalidade, já que o sistema não exige que se especifiquem esses gastos. Além disso, também se identificaram vínculos em larga escala entre dirigentes partidários e empresas fornecedoras: mais de R$ 4,5 milhões repassados ao longo do ano para empresas das quais são sócios os próprios dirigentes dos partidos contratantes.

No último dia 31 de outubro, entregamos ao TSE tanto o relatório completo de análise quanto nossas recomendações de melhoria. Agora, é necessário corrigir as distorções e deficiências apontadas e fazer com que as contas dos partidos sejam informadas e publicadas com frequência e não apenas uma vez ao ano.

Dados atualizados são fundamentais para transparência e controle social da coisa pública. Menos de um mês após o primeiro turno, o Transparência Partidária cruzou os dados sobre os candidatos com as contas apresentadas durante a campanha e já descobriu, por exemplo, que os partidos deram quase dez vezes mais dinheiro para os candidatos à reeleição que para os outros candidatos; que as candidaturas indeferidas gastaram mais de R$ 36 milhões; e que os partidos destinaram em média quatro vezes mais recursos do fundo eleitoral para homens brancos que para mulheres negras que disputaram uma vaga na Câmara dos Deputados.

Isso só foi possível porque desde 2016 as contas passaram a ser divulgadas na internet ao longo da campanha eleitoral. E se recursos do fundo partidário podem ser usados nas eleições, não há como justificar que as contas dos partidos não tenham o mesmo tratamento das contas de campanha.

Os efeitos incertos e temerários do fosso entre a sociedade e seu sistema político devem seguir assombrando a democracia brasileira enquanto o Congresso Nacional e as instituições de Justiça não forem capazes de aprovar e pôr em prática um marco regulatório que efetivamente estimule o desenvolvimento de agremiações políticas propositivas, abertas, responsivas e representativas.

Marcelo Issa

Advogado e cientista político, diretor-executivo do Movimento Transparência Partidária

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