Descrição de chapéu
Fábio Tofic Simantob

Genocídio?

No caso de Bolsonaro, vontade de punir se sobrepõe à racionalidade jurídica

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Fábio Tofic Simantob

Advogado criminalista, é mestre em direito penal pela USP e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)

Galvanizado pelas oitivas e resultados da CPI da Covid no Senado Federal, há um intenso debate em torno da caracterização de prática de genocídio no Brasil durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro.

É preciso ter sempre em mente que a vontade de punir muitas vezes se sobrepõe à racionalidade jurídica, a qual deve pautar os debates em torno dos enquadramentos de condutas de qualquer cidadão, inclusive do presidente da República, um dos fundamentos basilares do Estado de Direito.

Quem primeiro usou o termo genocídio foi Raphael Lemkin, advogado polonês de origem judaica, que emigrou para os Estados Unidos em 1941. Lemkin fez uso do termo não para tratar dos crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, mas para falar do genocídio armênio. Em 1945, o especialista travou uma enorme batalha para que o crime de genocídio fosse incluído entre as acusações do Tribunal de Nuremberg. Finalmente, em 1946, a Convenção das Nações Unidas cria o crime de genocídio como um crime internacional. No Brasil, é incorporado ao direito penal por meio de lei em 1956.

A definição de genocídio é uma só: a tentativa ou a consumação de atos tendentes a exterminar, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, religioso ou racial. Bolsonaro já demonstrou inúmeras vezes ​—como no fatídico episódio na Hebraica do Rio de Janeiro, em 2018— desapreço por indígenas e quilombolas, mas seus atos enquanto presidente não têm sustentação jurídica como crime de genocídio.

Por mais tentadora que seja a vontade de incriminação, no trágico caso do Brasil, cuja política negacionista e obscurantista adotada pelo governo federal vitimou mais de 600 mil pessoas, não se verificam as elementares típicas de um crime de genocídio.

Apesar do evidente e maior impacto em grupos vulneráveis, como comunidades indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e periféricas das metrópoles, além, é claro, dos chamados grupos de risco, idosos e pessoas com comorbidades, não se pode afirmar que esta foi uma política empregada com propósitos de extermínio de raça, de grupos religiosos, étnicos ou raciais.

Ela foi muito além. Trata-se de uma política ampla e generalizada de adoção da tese de imunidade de rebanho contra toda a população.

Não por outro motivo, o relatório da CPI indiciou o presidente por diversos crimes, inclusive crime contra a humanidade, mas não por genocídio. Dois juristas insuspeitos também repelem o termo genocídio para definir a conduta do presidente, como Sylvia Steiner, primeira brasileira a ocupar o cargo de juíza no TPI (Tribunal Penal Internacional), e Luciano Mariz Maia, procurador da República responsável pela primeira condenação de genocídio no Brasil.

Só é crime o que está na lei. O direito penal não deve ser utilizado com uma sanha punitivista e arbitrária, pois, dessa forma, como nas parábolas literárias, acabamos nos assemelhando ao que pretendemos combater.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.