Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Por que Bolsonaro é genocida

Debate semântico é real, mas há uma dimensão em que soa a desconversa

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É curioso o debate sobre adequação vocabular da semana, com impacto direto no saldo da CPI da Covid e, imagina-se, no futuro do governo: está certo chamar Jair Bolsonaro de genocida?

À primeira vista, trata-se de um daqueles cismas vocabulares de fundo político-ideológico que, volta e meia, dividem a esfera pública em dois times inconciliáveis. Em 1964, houve golpe ou movimento? Em 2016, impeachment ou golpe?

Nesses casos, a tomada de posição costuma organizar toda uma visão de mundo, com sua justificação moral e suas estratégias de ataque e defesa.

Manifestante segura cartaz com desenho representando Jair Bolsonaro em protesto em Brasília - Ueslei Marcelino - 20.out.2021/Reuters

O debate sobre o Bolsonaro genocida é um pouco diferente. Apenas apoiadores de crachá, muitos na folha de pagamento do governo, diriam que o presidente não pode ser chamado de genocida porque é um grande defensor da vida.

Nesse caso, só rindo. Mas faz tempo que bolsonaristas andam sem crédito para participar de conversas sérias.

Em geral, mesmo quem defende a impropriedade de aplicar a palavra genocida a Bolsonaro reconhece que sua conduta na pandemia produziu montanhas de cadáveres.

O que se busca então –por razões mais ou menos confessáveis, ligadas ao xadrez político que se joga de olho em 2022– é só uma atenuante para crimes incontestáveis.

O editorial do Globo de terça (19), sob o título “É um abuso acusar Bolsonaro de genocídio”, abusa até da lógica interna ao citar os crimes cometidos pelo governo contra os indígenas e acrescentar que “nenhum deles foi cometido especificamente contra os indígenas”.

Isso logo após reconhecer que, nas comunidades indígenas, “a omissão criminosa do governo (...) foi responsável por centenas de mortes, resultantes da falta de vacinas, da insistência em tratamentos ineficazes, da resistência a combater as invasões e o desmatamento que introduziram o vírus em suas comunidades”.

Argumentação ruim à parte, o que está declaradamente em debate é uma questão de sintonia fina, coisa de razoável sofisticação semântica, alimentada por discussões jurídicas cascudas.

Que perfil étnico-social precisam ter as vítimas de um assassinato em massa para que se caracterize genocídio? Matar aleatoriamente pode? O número de cadáveres –gigantesco, muito grande ou apenas grande– faz diferença? A partir de que número o alarme dispara? Qual é a jurisprudência internacional?

Deixo essas questões para quem entende delas. Me limito a apontar uma dimensão, a meu ver bastante relevante, em que tudo isso soa a pura desconversa. Estou falando da linguagem comum.

A linguagem comum merece todo o respeito, nem que seja só por ser aquela que as pessoas de fato falam –em outras palavras, a régua e o compasso que milhões usam para mapear o mundo.

Fascinados por seus sentidos restritos, manipulados em laboratório, nem sempre os especialistas se dão conta disto: é na linguagem comum que a vida pulsa, palavras prosperam ou definham, sentidos se reinventam.

Nesse âmbito, já era –Bolsonaro é genocida, ponto. A acepção de genocídio como assassinato em massa, sem mais qualificações, parece ter amadurecido junto com a consciência de que nunca, nem de longe, houve um brasileiro que carregasse tantas mortes nas costas.

Bolsonaro e genocida viraram palavras grudadas, pão e manteiga. Ah, o sentido é juridicamente controverso? E daí? Depois de uma vida vendo chefes de quadrilha serem chamados de próceres da República, o povo aprende a ser flexível com as palavras.

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