Pensei que ia morrer

Me sentindo um grão de açúcar na coqueteleira de Deus, passei a minha vida em revista

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Giovana Madalosso

Nada como uma boa turbulência para nos tirar do estado anestésico de estar vivo. Há poucos dias, eu voava para a minha cidade quando o avião começou a chacoalhar. Não foi o meu primeiro sacode aéreo mas foi o mais intenso e, por alguns minutos, acreditei que ia morrer.

Me sentindo um grão de açúcar na coqueteleira de Deus —e o pior, sem nem acreditar em Deus— passei rapidamente a minha vida em revista, me certificando de que as pessoas que amo podem viver sem a minha ilusória onipresença.

Tirando essas poucas relações, todo o resto pareceu tão pequeno quanto as casas lá embaixo. Como se o voo fosse uma experiência de autoajuda em que você paga para ver o mundo em maquete e perceber a dimensão irrelevante do que é material. "Atenção, senhores passageiros, percebam como diminuem até sumir os carros e piscinas à sua direita."

Pode parecer um lugar-comum, e talvez seja um lugar-comum, mas é isso mesmo que as melhores epifanias costumam descortinar: o óbvio que de tão óbvio não enxergamos. Foi assim quando tomei ayahuasca. Achei que descobriria a lâmpada pós-moderna mas tudo o que percebi é que não andava me abaixando para olhar nos olhos da minha filha —posteriormente, essa flexão de joelhos mudou a nossa dinâmica afetiva.

Dessa turbulência, saí com aquela sensação de ganhar um crédito. Desembarcando com minha bagagem de mão na vida extra, pensei que não quero mais usar o trabalho incessante para me esconder da angústia, não quero mais trocar rostos pela tela do Instagram e nem perder uma única chance de chutar a canela do patriarcado. De resto, agradeci ao Deus-barman por estar viva e (tomara) poder ver o Brasil acordar melhor em janeiro de 2023.

É o que ainda sinto dentro dessa frágil caixa torácica, sabendo que logo tudo voltará a anuviar-se no horizonte curto dos boletos e timelines. Até que a vida me dê um sacode de novo.

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