Descrição de chapéu A mulher da casa abandonada

Podcast investiga passado de crimes por trás de mansão abandonada em São Paulo

Série em áudio da Folha narra história de brasileira que escapou do FBI e de um julgamento nos EUA

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São Paulo

Uma casa abandonada em um dos bairros mais ricos de São Paulo esconde um segredo. A moradora da mansão, uma mulher que esconde o rosto com pomada branca, escapou da lista de procurados do FBI por acusações de crimes que cometeu nos Estados Unidos entre a década de 1970 e a virada dos anos 2000.

A Folha estreia nesta quarta-feira (8) o podcast A Mulher da Casa Abandonada, que investiga a história dessa brasileira que há décadas se apresenta como Mari. A mulher é conhecida em Higienópolis, bairro em que sua família mora há cem anos, porque mora sozinha em um imóvel em pandarecos e só sai à noite, maltrapilha.

Mas seis meses de investigação mostram que ela não se chama Mari. Além disso, é uma milionária que conseguiu fugir da Justiça de dois países e que há 24 anos se refugiou na mesma mansão em que cresceu, mas que sem manutenção se degradou com o tempo.

O primeiro episódio do podcast já está disponível de graça nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer. A transcrição do roteiro está disponível no fim deste texto. Todas as quartas-feiras, às 7h , um novo episódio vai ao ar, até 20 de julho.

A Mulher da Casa Abandonada é apresentado e escrito por Chico Felitti, autor do livro "Ricardo & Vânia", que narra a história de vida de um artista de rua conhecido como Fofão da Augusta, e que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. Felitti também criou e apresenta "Além do Meme", série documental em áudio exclusiva do Spotify —eleita o Podcast do Ano pelo Prêmio Splash UOL em 2020.

"É uma história que dá várias cambalhotas. Comecei achando que seria um perfil delicado de uma pessoa marginalizada pela sociedade, uma mulher vítima de misoginia, mas acabei me deparando com uma história de crime e de crueldade como eu nunca havia investigado", diz Felitti.

A série tem participação da atriz e dramaturga Renata Carvalho, que interpreta em português as entrevistas feitas em inglês, e de Magê Flores, que apresenta o Café da Manhã, podcast diário da Folha, e também coordena a produção de A Mulher da Casa Abandonada. A edição de som do podcast é de Luan Alencar, e a produção é de Beatriz Trevisan e Otávio Bonfá.

O podcast narrativo tem sete capítulos, que acompanham a investigação da história de Mari. No primeiro, publicado nesta quarta (8), a mulher da casa abandonada está protestando contra a derrubada de uma árvore da praça Vilaboim na antevéspera de Natal, por mais que a prefeitura tenha um laudo atestando que a planta está morta.

Árvore tombando em calçada numa rua inclinada
Uma árvore que vai ao chão no bairro Higienópolis, em São Paulo, é o ponto de partida do podcast A Mulher da Casa Abandonada - Chico Felitti

O segundo episódio, que vai ao ar no dia 15, é um perfil dessa mulher construído a partir do relato de dezenas de vizinhos.

Nos episódios seguintes, a história leva o ouvinte à periferia de Washington, a uma empresa que faz satélites para a Nasa no estado americano da Virgínia e ao Triângulo Mineiro. Cada viagem é um pedaço do mosaico que compõe a história, contada pela primeira vez nessa série em áudio.

A Mulher da Casa Abandonada passa a integrar o catálogo de programas em áudio coordenados pela editoria de Podcasts da Folha, que reúne produtos como o Café da Manhã, podcast diário de notícias em parceria com Spotify; Expresso Ilustrada, sobre cultura; Ilustríssima Conversa, de entrevistas com autores de não ficção; e Boletim Folha, com o resumo do noticiário em duas edições diárias. A lista tem hoje mais de 20 programas.

Os episódios de A Mulher da Casa Abandonada

A Mulher - 8.jun
Depois de uma mulher misteriosa perder a guerra contra a derrubada de uma árvore em São Paulo, vem à tona a possibilidade de ela ter um passado de crimes.

A Casa - 15.jun
A vizinhança compartilha histórias sobre Mari, que se mudou para os EUA no fim da década de 1970 e voltou 20 anos depois, fugindo do FBI e de um julgamento no país.

Uma Rua em Silêncio - 22.jun
Chico Felitti vai ao palco dos crimes de que a mulher foi acusada nos EUA. Há um manto de silêncio cobrindo os vizinhos, até que uma pessoa decide falar.

Uma Mulher e um Homem Livres - 29.jun
A reportagem descobre o que aconteceu com outros protagonistas dessa história, onde eles estão hoje e como vivem com as consequências.

Outras Tantas Mulheres - 6.jul
A equipe do podcast conta histórias similares que aconteceram no passado recente em cidades brasileiras e por que casos como esse se repetem até 2022.

Um Fim que Não É Bem Um Fim - 13.jul
Vizinhos se dispõem a ajudar a encontrar a mulher da casa abandonada, enquanto um especialista analisa se ela ainda pode responder pelos crimes de que foi acusada.

A Mulher da Casa Abandonada - 20.jul
Pela primeira vez em duas décadas, a mulher encara o passado e decide se defender das acusações.

A capa do podcast tem o desenho de um casarão, em branco e preto. A imagem escorre até o nome do programa: A Mulher da Casa Abandonada
O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira que foi procurada pelo FBI - Editoria de Arte

Transcrição do primeiro episódio

A Mulher

É a manhã de quinta-feira em Higienópolis. O bairro é um dos mais ricos e tradicionais da cidade. Um amigo escritor definiu Higienópolis como um pedaço de Suécia transplantado para o centro de São Paulo. São quarteirões tingidos de verde por árvores que são exceção em uma cidade cinza. Uma sensação de segurança paira no ar. Higienópolis é um dos poucos bairros em que um assalto ainda vira notícia de jornal.

Eu estou andando por ruas com nomes de estados. Passo pela rua Rio de Janeiro, na frente do prédio em que Jô Soares e Adriane Galisteu eram vizinhos, até alguns anos atrás.

[trecho de programa com Jô Soares e Adriane Galisteu]
A Adriane tem uma coisa, é uma vizinha espetacular. Você não escuta nada, ela também pode acontecer o que for de barulho, que ela não reclama.
É, eu não reclamo
Aliás, eu vou contar aquela história do microfone
Ah, que é muito boa.


Cruzo, na rua Maranhão, com o condomínio de apartamentos onde morava o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

[sons de bem-te-vi]

Passo na frente da Faap, uma faculdade que tem prédios imitando templos gregos e que cobra R$ 3.500 de mensalidade no curso de Administração.

É uma manhã de sol e céu azul. No dia 23 de dezembro de 2021, a dois dias do Natal, a riqueza paulistana está em paz. As ruas estão vazias. A cidade já está com clima de férias. Quem pode sair de São Paulo, saiu. Ficaram poucas pessoas no bairro. Funcionários de prédios varrem as calçadas e conversam.

[sons de risada bem próxima, vassoura na calçada e conversa]

Até que eu vou me aproximando da praça Vilaboim, uma ilha de árvores e de bancos cercada por restaurantes, e noto que alguma coisa arranha a paz da elite.

[som de serra ligando]

Um caminhão da prefeitura de São Paulo está parado na esquina das ruas Piauí e Aracaju. Da parte de trás dele sai uma escada Magirus, dessas que bombeiros usam nos filmes para resgatar gatinhos em cima de árvores. Mas o que está acontecendo ali não é um resgate. É a remoção de uma árvore. Seis funcionários, que estão vestindo macacão cor de laranja e capacetes, se ocupam de decepar os galhos com duas serras elétricas. Eu me aproximo. E faço em voz alta a pergunta mais óbvia.

Eles vão derrubar a árvore?

Na calçada oposta à árvore, tem duas mulheres, paradas, olhando a cena. Uma é alta e magra, está com um vestido estampado e elegante, e um colar de âmbar. Uma moradora de bairro rico na manhã da antevéspera de Natal. A outra, ao lado dela, é uma mulher baixa e gorducha, com uma camiseta tie dye azul marinho, calça preta e tênis esporte. Uma faixa preta cobre o cabelo também preto, como se ela estivesse fazendo jogging. Mas ela não está fazendo jogging, porque tem um caderno com a Pequena Sereia numa mão, e uma caneta na outra.

As duas têm por volta dos cinquenta anos, mas é só nisso que se parecem. De resto, não poderiam ser mais diferentes. Mas estão lá, lado a lado, conversando.

[Mari] É!!! Isso é um crime!!! Eu to tentando parar, você tem uma ideia pra ajudar?
[Vizinha] Falaram que tá oco vão cortar 70% me falaram
[Mari] É mentira!!
[Vizinha] Mentira?
[Mari] Vou dizer pra você, essa lei 10365, de 87, ela diz que nós aqui temos todo o interesse em defender e fazer tudo sobre a árvore, tá?
[Vizinha] Tá
[Mari] Aqui diz que qualquer coisa de supressão total ou parcial só será admitida com no mínimo um engenheiro agrônomo da secretaria geral da subprefeitura
[Vizinha] Isso


A mulher que fala sobre leis é a mais baixa. Eu noto que as roupas dela estão sujas. Ou além de sujas: estão imundas. O cheiro dela me recepciona, junto com as vozes das duas e o rugido da serra elétrica.

[Vizinha] Isso, e não tem o… ?
[Mari] Não, quem fez o laudo foi um órgão da SERG, SERG é essa companhia aí
[Vizinha] Sei
[Mari] Que tem todo interesse monetário em receber o dinheiro, entendeu?

Eu faço cara de dúvida, porque o discurso da mulher baixa parece improvável. É uma teoria da conspiração de que empresas, em conluio com o Estado, ganham dinheiro cortando árvores saudáveis de bairros ricos. De que é esse o novo esquema de corrupção em um dos países mais corruptos do mundo. A mulher alta também parece confusa. E, enquanto a mulher baixa de roupas encardidas fala como se não precisasse respirar, a outra me chama para perto e sussurra.

[Vizinha] Doidinha

Doidinha, ela disse, enquanto olha para a outra.

VINHETA DE ABERTURA

Eu sou Chico Felitti e esse é A Mulher da Casa Abandonada, um podcast investigativo da Folha que revela a inacreditável história de uma brasileira que vive há décadas numa mansão decadente em um dos bairros mais caros do país. Que se esconde nas sombras da decadência, porque é procurada nos Estados Unidos por um dos crimes mais hediondos que uma pessoa pode cometer.

Primeiro episódio: A Mulher.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

De volta para a praça Vilaboim na antevéspera de Natal. A mulher baixa parece inconformada. A mulher alta só olha para ela e ouve. Às vezes, balança a cabeça. A que fala sem parar conta que já derrubaram uma árvore da praça semanas antes, e que ela tentou impedir. Mas não conseguiu.

[Mari] Em qualquer situação tem que ser agrônomo responsável da prefeitura
[Vizinha] Que foi o que aconteceu com essa árvore, que teria que cortar
(tosse intensa)
[Mari] Então, eles pegaram
[Vizinha] Desculpa
[Mari] Desculpa, é que to sem o casaco na aflição, é que a máscara fica grudando aqui


A máscara gruda no rosto da mulher porque ele está inteiro besuntado. Coberto por alguma substância grossa que pode ser um tubo inteiro de base. Ou de pomada para assadura, não dá para saber. E a máscara cirúrgica está empapada, grudada à pele, transparente por causa da papa oleosa.

Mas isso não impede que ela continue falando.

[Mari] Olha o que eu preciso
[Vizinha] Um engenheiro agrônomo
[Mari] Que o secretário do verde e do meio ambiente ele foi levado a erro, ele foi enganado


Essa mulher, que ainda não se apresentou, tem uma teoria. Para ela, os funcionários da prefeitura estão trabalhando na manhã da antevéspera de Natal para aproveitar que a cidade está vazia, porque não querem ser notados. Ela defende que eles agem na surdina, derrubando árvores saudáveis só para ganhar por isso. Que a derrubada da árvore de Higienópolis na véspera da véspera de Natal é, na verdade, um grande parte de um esquema de desvio de recursos públicos, que envolve laudos falsificados e empresas mal-intencionadas.

[Mari] Coisa que sai no Diário Oficial, ele diz que o laudo, que foi feito, com base nesse laudo que ele resolveu mandar fazer isso, mas é um laudo de uma companhia terceirizada, só que ele não diz qual é, então a gente pensa que é uma companhia especializada, mas não é
[Vizinha] Você sabe qual é o nome? Você chegou a descobrir o nome da companhia?
[Mari] Claro, é SERG Paulista
[Vizinha] SERG?
[Mari] É, SE
[Vizinha] Deixa eu ver aqui


Ela abre o caderno da Pequena Sereia, e começa a folhear.

[Mari] Eu to tentando parar essa! Mas pra, como você viu que eu sei a lei, eu até tive que copiar aqui, nesse caso de acontecer isso, eu demorei ontem o dia inteiro copiando pra poder mostrar, porque não está impresso o que eu tenho, entendeu?

Eu espio, e o caderninho tem páginas e páginas com a legislação ambiental. Leis e regras municipais copiadas à mão com uma caligrafia caprichada.

[Mari] Olha, todos, ele tem interesse monetário. Qualquer supressão tem que ter tem que ter croquis, tem que ter um engenheiro agrônomo, vários
[Chico] Nossa a senhora entende, a senhora conhece mesmo
[Mari] Oi?
[Chico] A senhora estudou, conhece mesmo
[Mari] Claro!!!! Por isso eu demorei. Esse negócio. Eu to escrevendo uma carta pro Secretário Verde Meio Ambiente, mas não pode escrever só pedindo


Ela tenta argumentar que a poda da árvore fere leis e regulamentos. Que precisa falar com o secretário do verde e do meio ambiente. Mas a serra dificulta a discussão. Enquanto ela fala, a árvore vem abaixo, como se estivesse sendo esquartejada em praça pública.

[som de árvore cortada caindo]

[Mari] Olha, eles já cortaram
[Chico] Ai meu deus vai cair

Ela pede que eu documente a remoção da árvore. Que tire fotos para ela poder usar num dossiê que quer fazer e entregar para a imprensa, ou para políticos influentes.

[Mari] Olha, da SERG paulista, tira uma boa foto... deixa eu tirar o dedão daí
...
[Mari] Tá boa?
[Vizinha] Não sei vamos ver


Eu faço fotos com meu celular. Imagens da árvore indo ao chão, pedaço por pedaço. Essas fotos você pode ver no site e nas redes sociais da Folha.

Enquanto isso, a mulher parece desesperada. Diz que mais cedo já ligou para a polícia. Mas que a polícia é responsável por defender pessoas, não árvores.

[Mari] Você tem alguma ideia do que a gente pode fazer?
[Chico] Nenhuma
[Mari] Porque eu chamei a policia 190 e eu tava ainda de pijama, tudo, tinha que vestir, e ai quando cheg...
[Chico] E eles vieram?
[Mari] Vieram, mas aí eles enganam, por que é que eles enganam? Porque eles mostram o laudo, só que a policial, que não tá acostumada, nem eu! A primeira árvore eu fui enganada também, eles falaram que tinham um laudo, eu acompanhei até o fim, eu tenho fotos até o fim!


Depois de quase 15 minutos falando, as duas mulheres finalmente se apresentam.

[Vizinha] Agora a raiz parece bem boa. Vamos avaliar
[Mari] Como é que você chama?
... [bipado]
Você?
Mari


A mulher baixa, com o rosto besuntado e as roupas imundas, se apresenta como Mari. A vizinha alta também diz o nome, que foi bipado a pedido dela, que não quer ser identificada. Mas as duas não têm tempo para fazer social. E o assunto volta a ser a árvore.

[Vizinha] Eles foram lá em cima cortar o tronco mas não vão cortar hoje
[Mari] Quem disse????
[Vizinha] O engenheiro, o agrônomo
[Mari] Aí eles vão cortar amanhã?
[Vizinha] Talvez
[Mari] Cês vêm amanhã na véspera de natal por acaso pra fazer essa maldade?


Mari atravessa a rua e se aproxima dos funcionários da prefeitura. Quer saber se eles vão mesmo terminar de remover a árvore morta na véspera de Natal.

[Funcionário] Eu queria estar trabalhando amanhã também não (risos), a senhora acha que eu queria estar acordando amanhã seis horas da manhã pra
[Mari] Vai ou não vai vir amanhã
[Funcionário] Com certeza
[Mari] Você vem amanhã pra fazer maldade no dia de Natal
[Funcionário] Não, só pra finalizar o serviço


Mari sobe o tom com os funcionários públicos. Acusa os homens de estar cometendo um crime.

[Mari] Tem dó né, tenha piedade da própria (tosse) árvore... como você fez engenharia agrônoma você deve gostar da natureza então é sua obrigação proteger! Quem tá fazendo isso, a SERG paulista, não é vocês, vocês estão trabalhando para eles, eu compreendo isso, mas a SERG paulista tá fazendo isso por dinheiro, pra ganhar uma nota preta, você tá entendendo? (tosse) pegaram, eles, não são vocês, vocês recebem o salário de sempre, mas eles recebem um dinheirão por uma remoção muito mais do que por uma poda, tá?

A conversa azeda de vez quando Mari começa a ofender os funcionários públicos.

[Mari] Ó, e o laudo ainda por cima tá errado! Você é esperto, lê lá no (tosse) negócio do laudo, o seguinte (tosse intensa) quando uma madeira está oca, quando você bate nela, faz mais barulho, não faz? (tosse) Presta atenção (respirada) Diogo, Diogo né? Presta atenção, Diogo (tosse) quando você bate numa madeira oca... Tá tossindo? Bota uma máscara, é lei tá cara, bota a mascara, é lei! Viu, é lei!
[Funcionário] Vai encher o saco de quem tá trabalhando
[Vizinha] Não não não não
[Funcionário] Ah dá licença
[Vizinha] Seja educado
[Funcionário] A gente não ta roubando aqui não
[Vizinha] Seja educado você não pode fazer isso
[Mari] É lei, é lei
[Funcionário] Razão de que?
[Mari] É lei em são Paulo, uso de máscara
[Funcionário] É pra ver se ela vai embora mesmo


Os funcionários desistem de dar atenção à mulher. Viram as costas e retomam o trabalho.

[Funcionários gritam entre si]

[som da serra acelerando e cortando]

Mari atravessa a rua, enquanto rumina pra ela mesma e pra quem quiser ouvir.

[Mari] Eu to tão nervosa. Isso é uma injustiça, uma maldade, já fizeram ali e tão fazendo aqui de novo

Ela pede a minha ajuda pra descobrir como denunciar esse ato, que ela considera ilegal, para o Ministério Público. Eu saco meu celular e descubro um site do Ministério Público para denúncias de cidadãos.

Eu pergunto se ela quer que eu mande o link por Whatsapp. Mas ela não tem Whatsapp.

[Mari] Nãaao, eu anoto, eu nem sei se isso aqui recebe, eu sou péssima com essas coisas de tecnologia

Então, ela pede que eu soletre o site do Ministério Público, para ela anotar no caderno de Pequena Sereia.

[Mari] Como é que é? Fala
[Chico] www.
[Mari] Ahm
[Chico] .Mpsp
[Mari] Pequenininho?
[Chico] Isso tudo caixa baixa, tudo minúsculo
[Mari] Tá
[Chico] .mp
[Mari] Ahn
[Chico] Pera aí que é gigantesco, vou até colocar... não tem como mandar mesmo? É de verdade muito grande


Enquanto Mari termina de anotar, a outra mulher me chama. Conta que Mari mora ali do lado. É vizinha dela. Mas que não mora num prédio. Mora em uma casa.

[Vizinha] Mora no casarão ali

O casarão ali é uma mansão abandonada a passos de onde a gente está. Um imóvel que está caindo aos pedaços. Literalmente. É uma casa centenária de três andares e tijolo aparente que já viu dias melhores. Cercada por mato, com as paredes manchadas e sujas, e sem um pedaço do teto.

[Vizinha] É ela, sozinha, doida doida doida

As janelas verde-musgo estão sempre fechadas. O portão de ferro é trancado por uma corrente que dá quatro voltas antes de ser arrematada por um cadeado. A casa, vista de fora, parece abandonada. Mas a vizinha diz que Mari mora ali.

[Vizinha] Era dos pais dela
[Chico] Ahn
[Vizinha] Ela mora sozinha, as irmãs querem tirar ela de lá, ela não sai de jeito nenhum


Eu vou descobrir no futuro que a situação da casa é tão precária que vizinhos já entraram na Justiça para conseguir autorização para limpar o terreno. Para retirar o lixo que se acumula dentro e fora da casa de milhões de reais.

[Vizinha] Eu to até achando, falar com ela depois quando ela chegar, ver se ela não quer que a gente faça uma vaquinha pra arrumar pelo menos o telhado, eu falo, porque é uma judiação, essa casa
[Chico] E ela mora lá dentro?
[Vizinha] Mora!
[Chico] Mas ta sempre trancado
[Vizinha] Tá sempre trancado, sem água, sem luz, sem, eu não sei o que essa mulher faz... por isso que tentaram interdita-la, mas ainda não conseguiram e ela herdou do pai


A vizinha alta para de me contar o que sabe quando Mari volta. E ela vem na nossa direção com um pedido. Que a gente vigie os funcionários da prefeitura enquanto ela vai até a casa dela.

[serra ainda ligada]
[Mari] Vocês podem ficar aqui um pouquinho.
[Chico] Está bom.
[Mari] Pra trocar a máscara
[Chico] A senhora não quer, eu compro uma máscara aqui?
[Mari] Hã?
[Chico] A senhora não quer
[Mari] Então compra, assim não saio daqui, obrigada


Mari quer voltar para casa e trocar a máscara empapada pelo óleo do rosto. Eu pergunto se ela não prefere uma máscara nova. Eu posso comprar na farmácia da praça Vilaboim, que fica a vinte passos de onde a gente está. Ela topa. Eu vou até a farmácia.

Chico pergunta onde ficam as mascaras
Atendente indica
Chico agradece
Chico diz que veio ali comprar a máscara (para Mari)

Mari chega segundos depois de mim. Já dando ordens.

[Mari] É, eu sei, é porque eu ia pedir.... ai.... se ela, ela é fechadinha, a máscara vem fechada?
atendente indica de longe onde tem a máscara
[Mari] Aqui?
[Chico] Isso, essas aqui ó
[Mari] Qual delas que... eu costumo usar essa, essa aqui (barulho plástico) serve né? Máscara cirúrgica


Ela pede que a funcionária não encoste na máscara.

[Mari] É porque não... contaminar... tem lixo por gentileza?
[Atendente] Tem
[Mari] Onde tá?
[Atendente] Deixa eu só abrir por favor


O jeito que ela trata as funcionárias da farmácia lembra o jeito que ela tratou os funcionários da prefeitura. Que lembra o jeito que uma certa elite brasileira trata quem está trabalhando para ela há pelo menos 500 anos.

[Atendente] Aqui não pode
[Mari] Pois é meu amor
[Atendente] Espera só um pouquinho eu pegar o saquinho
[Mari] Cadê o lixo? vamos direto pro lixo (risos)
[Atendente] Deixa só eu pegar um saco tá


Cria-se um clima tenso na farmácia. E eu no meio, tentando apaziguar.

[Mari] Cadê a tesoura? Cadê a tesoura? Todo cuidado é pouco... eu sou de alto risco, tenho que tomar o maior cuidado, e tomo, e nunca peguei nada, graças a Deus

Depois que abre a embalagem das máscaras, Mari deixa a tesoura no balcão e joga o plástico no chão.

[Mari] Menininha, você me arruma um sacola pra pôr isso por favor?

Ela não quer esperar que eu pague para usar a máscara. Coloca no rosto e sai andando.

[Mari] Por gentileza, arruma uma sacola pra mim.
[Atendente] Espera só um pouquinho, deixa eu passar aqui, é pagamento em cartão?
[Chico] Pode ser dinheiro ou cartão. Tanto faz
[Atendente] Tá aqui nesse caixa
[Chico] O que for melhor
[Mari] Aqui. Você quer passar? Pode ser?
[Atendente] Pode, peraí.


Ela sai da farmácia, enquanto eu pago pelas máscaras. Quando a gente volta para a praça, a árvore parece um corpo desmembrado.

[Mari] Ai muito obrigada Francisco, cê me ajudou tanto com isso aqui
[Chico] Imagina.
[Mari] Que ficar com a máscara úmida desse jeito grudando, É um horror.
[Chico] Nesse calor é horrível mesmo
[Mari] Não é que ela umedeceu. Deixa eu olhar lá se a polícia já apareceu.


Perto do meio-dia, a maioria dos galhos já virou tocos. Restou só um pedaço do tronco.

[Chico] A arvore inteira, pelo jeito.
[Vizinha] É, ele falou comigo.
[Mari] Ah, eles vão remover a árvore. É pra isso que eles estão aí. E a árvore está totalmente saudável. Já aconteceu com essa.


Mari reconhece que foi derrotada. Mas só nesta batalha, não na guerra contra a derrubada das árvores do bairro. Ela diz que vai juntar as fotos que fizemos em um documento. E que vai levar esse documento para homens de poder.

[Mari] Eu já estou querendo ó. Eu estou escrevendo uma carta pro secretário do verde e do meio ambiente que atendeu a ordem que era pra ele parar. Só que pra fazer uma coisa direito e decente

Ela diz que quer muito fazer uma denúncia. Mas tem algo no caminho. Ela tem medo de que possa correr perigo, caso denuncie a máfia da poda de árvores que acredita ter descoberto.

[Mari] O meu problema é o seguinte, o meu medo, esses homens todos sabem onde eu moro, já viram entrando aí na minha casa. Então, eu tenho medo deles fazerem alguma maldade.
[Vizinha] Ah, não, não.
[Mari] Ah, não, não, não. Eles não estão fazendo maldade com a árvore? Fazem com a pessoa também, tranquilamente.
[Vizinha] A árvore é por causa do dinheiro.
[Chico] É, não, mas aí o Ministério Público não passa, não é o tipo de informação que chega nele.
[Mari] Não sei.


Ela continua falando. Tratando a secretaria do verde e do meio ambiente como uma máfia que pode colocar a vida dela em risco. Faz mais de uma hora que eu estou com ela. Eu preciso ir embora, porque já estou atrasado para um compromisso. Mas eu quero falar de novo com essa pessoa.

[Chico] Mari, eu preciso ir.
[Mari] Muito prazer Francisco
[Chico] Tchau. Como eu faço pra falar com você depois e saber o que aconteceu?
[Mari] Você tem, você me deu o telefone?
[Chico] Não, não dei. Você pegou só meu endereço.
[Mari] Tá, então vamos pegar o telefone. Não, eu, o que que aconteceu, o que aconteceu vai demorar. Porque eu larguei tudo que eu tinha que fazer pra tratar desse assunto pra salvar essa árvore. Tem que salvar hoje, amanhã eles terminam, ele falou.
[Vizinha] Eu sei, eu sei, tem que mandar interromper hoje.
[Vizinha] Vou tentar. Vou tentar.
[Mari] É Francisco?
[Chico] Isso, onze.


E eu passo meu número de telefone para ela. Me despeço das duas mulheres. E vou embora.

[Mari] Prazer
[Chico] Mari né?
[Mari] Obrigado pela máscara
[Chico] Prazer, nos falamos
[Mari] Brigadão

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Tá. É bem provável que você já esteja se perguntando por que eu estava com o gravador ligado na manhã da antevéspera de Natal. Documentando os sons da derrubada de uma árvore em um dos bairros mais ricos de São Paulo, enquanto uma moradora excêntrica tentava impedir funcionários públicos de trabalhar. E tem um motivo.

Porque eu já quero conversar com essa mulher há meses. E minha curiosidade nasceu por causa da casa onde essa mulher mora. Uma mansão. Uma casa de tijolos aparentes que atravessa um quarteirão inteiro. De frente, dá para uma rua. Os fundos da casa desembocam em outra rua. Além do imóvel, que tem mais de 20 cômodos, a casa abandonada ainda tem um quintal do tamanho de um campo de futebol, com abacateiros carregados.

É um dos últimos terrenos sem um prédio em um bairro de São Paulo dominado por edifícios. Onde um apartamento de dois quartos custa dois milhões de reais. Contaminado pelo espírito incorporador de imóveis que paira sobre São Paulo, eu via a casa abandonada e só pensava em uma coisa: "Como é que ainda não levantaram um prédio aqui? Quanto será que custa esse terreno? Dez milhões? Vinte milhões?"

E tinha também toda a atração simbólica de uma mansão caindo aos pedaços. Uma casa abandonada é o maior clichê que existe. É a alegoria mais óbvia do filme de terror. O assassino de Psicose mora numa casa abandonada. A bruxa de Blair mora numa casa abandonada. Até a Família Addams mora numa casa abandonada.

No momento em que eu me mudei para Higienópolis, inclusive, eu estava lendo sobre uma… casa abandonada. O livro chama "As Coisas Que Perdemos no Fogo", da argentina Mariana Enriquez, e tem um conto que se chama A Casa de Adela. E, nele, três crianças ficam obcecadas por uma casa abandonada do bairro. Eu convidei a dramaturga e atriz Renata Carvalho para ler um trechinho. Aí vai:

"Adela e Pablo não falavam de outra coisa. Tudo era a casa. Perguntavam no bairro sobre a casa. Perguntavam na banca de jornal e no clube. A Don Justo, que esperava o entardecer sentado na porta de sua casa, aos galegos da feira e à verdureira. Ninguém lhes dizia nada importante. Mas vários coincidiram no fato de que a estranheza das janelas tapadas e do jardim ressecado lhes dava calafrios, tristeza e às vezes medo, especialmente à noite."

Obrigado, Renata. Eu não vou estragar o fim do conto se eu disser que as crianças entram na casa. E que algo de sobrenatural acontece.

Mas, voltando para o mundo real. Daí, um belo dia, eu estava andando com a minha cachorra pela rua perto das onze da noite, e tomei um susto. Tinha um rosto rindo das plantas que cercam a casa abandonada. Um rosto brilhante, que parecia uma lua refletindo a luz dos postes. Era a cara de Mari, besuntada de pomada branca, de pé no jardim da casa, olhando quem passava fora. Na época, eu ainda não sabia o nome dela. Nem que alguém vivia na casa abandonada. E aquela aparência atiçou ainda mais a curiosidade. As roupas desgrenhadas. A camada de substância oleosa que sempre cobre o rosto. O tom de voz fino, sempre entre o gentil e o imperativo. E eu decidi que queria descobrir quem era a mulher, porque eu queria contar a história dela.

Foi daí que eu passei a andar com um gravador e a ligá-lo toda vez que cruzava com ela.

2 DE JANEIRO 10 DA MANHÃ CHEGANDO À CASA

E a gente começou a conversar.

[Chico] Oi, boa noite, tudo bem?
[Mari] Tudo bem com você?
[cachorro latindo]
[Chico] Tudo, a senhora lembra de mim?
[cachorro latindo]
[Mari] Espera aí, espera aí.
[Chico] Ah, tá.

A maior parte das vezes, ela está com a cabeça para fora da cerca. E a maior parte das vezes a gente fala sobre cachorros. O meu assunto predileto, e aparentemente o assunto predileto dela também.

[Chico] Ele é bravo?
[Mari] Ela, as duas, são grandonas, bravas, feras [risadinhas].
[Chico] Eita, preciso me preocupar ou aqui está seguro?
[Mari] Não, cê tá seguro! Elas são perfeitamente treinadas de obedientes.
[Chico] Ah, que bom.
[Mari] Você está vendo o que eu falei com ela e ela ficou quietinha?
[Chico]Ficou tranqui… as minhas não obedecem. As minhas já estariam latindo aqui, a gente não conseguiria nem conversar.
[Mari] Que raça de você?
[Chico] Ah, vira-lata as duas.
[Mari] Duas?
[Chico] Duas.

Mari me mostra as duas cachorras. São vira-latas pretas e enormes, com traços de Dobermann e pitadas de Rottweiler. São cães de guarda. Ela apresenta as cachorras.

[Chico] E como ela chama?
[Mari] Ebony, porque ela era preta. Eu tinha uma branca chamada Ivory
[Chic] Ivory

As cachorras chamam Ebony e Ivory. Se não deu para ouvir, é porque ela estava dentro do jardim e eu estava do lado de fora, gravando. Mas quando ela diz os nomes Ebony, que é ébano em inglês, e Ivory, que é marfim, ela fala com um sotaque americano perfeito. A mulher pode morar em uma casa que é um pouco mais do que escombros, mas parece ser culta.

E sabe qual é o arquétipo da mulher culta que mora sozinha em uma casa decadente?

[áudios de vizinhos a chamando de bruxa]

Foi o que eu descobri quando comecei a perguntar para os vizinhos se eles conhecem a Mulher da Casa Abandonada.

Quando eu soube que tinha uma mulher morando ali, numa casa abandonada, eu imaginei que a história fosse de alguém também abandonado. Uma mulher excêntrica. Depois que eu encontrei com Mari, a desconfiança aumentou. Pensei que pudesse ser a história de uma mulher excêntrica e discriminada pelos vizinhos.

É o tipo de história que me interessa. Em 2018, eu escrevi o perfil de uma pessoa excêntrica do centro de São Paulo, um homem chamado Ricardo Correa.

Ricardo era um artista de rua que havia injetado silicone no próprio rosto, até ficar com bochechas enormes que renderam o apelido Fofão da Augusta. O apelido pelo qual ele foi conhecido por décadas, como Mari é conhecida por muitos como a Bruxa. Enfim, eu pensei que tinha uma história pra contar na casa abandonada.

E, em seis meses de investigação, eu descobri que naquela casa decadente morava mesmo uma história. Mas não era a que eu previa. Nem de perto.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

E, como prometeu na antevéspera de Natal, Mari volta. Demora um pouco mais do que tinha previsto, mas volta.

É meia-noite em ponto do dia dois de janeiro de 2022. Eu acho que venci o primeiro dia do ano quando meu telefone toca. Uma ligação a essa hora da noite não costuma ser uma boa notícia. Então, eu saio da cama num sobressalto.

Até eu conseguir pegar o celular na cômoda, a ligação já foi para a caixa postal. Eu vejo o número desconhecido e, por algum motivo, desconfio que seja a Mulher da Casa Abandonada. Então, ligo imediatamente de volta para o número, coloco a ligação no viva-voz e ligo meu gravador do lado do celular.

[Toque do telefone]

Dito e feito. Ela atende.

[Mari] Alô.
[Chico] Alô, dona Mari.
[Mari] Quem tá falando???
[Chico] É o Francisco, A senhora acabou de me ligar
[Mari] Ah é! Como é que você conseguiu fazer isso? (risos) Engraçado, eu estava deixando um recado pra você e você me ligou.


Eu explico que vi a ligação não atendida e, como ela estava para me ligar, imaginei quem pudesse ser.

[Mari] Ah que engraçado. Que engraçado. Ah então eu estava deixando um recado pra você. Aí você ligou e eu achei estranho. Eu eu não reconheci, né? Porque é a primeira vez que eu ligo com seu número, eu não não lembrava que era seu, essa hora eu falei que que tá ligando, eu não entendi. É, bom, que ótimo que você atendeu. Escuta, desculpa o horário, espero que não seja muito tarde.

É meia-noite e cinco. Eu já estava na cama. Mas eu digo que não é muito tarde.

[Mari] Que bom. É porque eu, eu não consegui, nem no dia trinta e um, nem ontem. Hoje eu tinha, eu esperava conseguir te ligar bem mais cedo, claro, só mas eu tinha que fazer uma coisa e eu acordei bem cedinho e não consegui fazer, por causa de toda aquela chuva lá, ainda tomei chuva, tentou dar uma olhada só agora à noite, trocar de roupa e jantar tudo e aí e agora que eu queria te ligar não queria deixar passar né? O dia de hoje mesmo não dava eu queria te ligar e aí não achava esse seu número no caderninho porque aquele dia lá eu anotei e faz vários dias eu não lembrava que é tanta coisa no caderno, (risos) que eu não achava seu número. Enfim, eu não consegui, sabe, te ligar antes pra gente ir lá na, lá pra você me ensinar né o negócio do Diário Oficial, então eu queria me desculpar que eu não consegui ligar antes e só falar um oi pra você e perguntar, eu eu não sei questão de horário pra você durante a semana, você pode ou só no fim de semana? Como é que é?

Eu digo para ela que não tem problema. Que posso ensinar a abrir o Diário Oficial do Município no computador. Ela quer ficar de olho nas publicações oficiais porque, antes de podar ou retirar uma árvore, a secretaria do Verde e do Meio Ambiente precisa fazer um anúncio no Diário Oficial. Ela quer poder prever quais vão ser as próximas plantas do bairro que vai defender.

Então, eu digo que posso passar na casa dela em um dia de semana, durante a tarde ou no começo da manhã. Que é só combinar.

[Mari] Ah então pode ser qualquer dia a gente quer dizer eu te ligo o dia que eu consigo e aí a gente combina um horário mais ou menos de acordo com o que você quiser é isso.
[Chico] Isso.
[Mari] Tá ótimo. Beleza.Então a gente faz desse jeito aí. Eu vou tentar essa semana. Amanhã, sexta-feira eu não consigo. Talvez terça ou quarta. Não sei. Mas está ótimo então. Está combinado.
[Chico] Sem problema. Estou por aqui. Boa semana e bom ano pra você.


Eu desejo a ela um bom ano.

[Mari] Ah! Obrigada! Ah! Feliz ano novo!
[Chico] Feliz ano novo!
[Mari] (risos) fiquei fazendo esse negócio o dia inteiro até esqueci do ano novo. Mas é verdade. Tá? Feliz Ano Novo! Tudo de bom pra você! Que fica (se estiver) trabalhando à tarde é só ligar aí nesse número, né?
[Chico] Isso.
[Mari] Então tá, agora você já sabe, o meu número deve estar aí no seu celular, então tá certinho.

Nossa ligação dura três minutos e cinquenta e nove segundos.

[Mari] Imagina, obrigada você, boa noite.
[Chico] Boa noite, tchau, tchau.
[Mari] E feliz ano, mais uma vez, um ótimo 2022.
[Chico] Pra nós.
[Mari] (risos) Tchau.
[Chico] Tchau, tchau.


Eu desligo o telefone e vou ouvir o recado de voz que ela deixou no meu celular.

[Gravação] Oi, tudo bem? Aqui é a Sandy. Sim, eu mesma. Quero te convidar pra assistir o meu programa de culinária...

Eu passo pela caçamba de entulho sonora de propagandas até chegar à mensagem de voz.

[Mari] Oi Francisco aqui sou a Mari, é que a gente tinha combinado de (piii) hum (piii) agora eu não sei o que que, se é você que está (pii) ligando ou se (piiii) pera aí (bufada) (piii) (piii) coisa estranha (piii) (piii) (respirada) (piii) (piii)

É nesse momento que ela atendeu o telefone pra falar comigo.

[Gravação] Se quiser ouvir o recado novamente, digite três. Para detalhes do recado, digite quatro. Se quiser apagar esse recado, digite cinco.

Eu aperto a tecla três três vezes. Ouço e repito o recado da mulher excêntrica que mora numa mansão abandonada em um dos bairros mais ricos do Brasil. E, então, eu coloco o celular no modo silencioso e vou dormir.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Mas o encontro no café nunca vem. Mari não me liga mais e, quando eu ligo, ela não atende. É como se estivesse fugindo de mim.

Eu passo na porta da casa abandonada quase todos os dias. Às vezes, mudo a minha rota para passar pela rua dela, só para ver se cruzo com a mulher da casa abandonada. Acontece só duas vezes. Eu chego na frente da casa e ela está no jardim, com o rosto coberto pela pasta oleosa e com um lenço no cabelo. Eu tento falar com Mari.

[Chico] Olá!

Ela olha para mim. Mas não sustenta a olhada. Vira as costas e entra na casa. Fecha a porta sem dizer uma palavra.

[Chico] Dona Mari?
[silêncio]
[Chico] Dona Mari?
[cachorro começa a latir]


[cachorro latindo um pouco longe, barulho de vento e trânsito, cachorro respirando ofegante]

Eu não sei o que aconteceu. Mas desconfio que, em algum momento, Mari tenha descoberto que sou jornalista. E que preferiu tomar distância de mim. Por isso, eu começo o ano indo atrás do que já existe de história sobre essa pessoa. E não demora muito para eu descobrir. Porque a casa abandonada é famosa. Descubro na primeira busca no Google que o casarão é tradicional.

A Casa Abandonada foi construída na década de 1930. O imóvel tem três andares e 24 janelas e é tão famoso que tem até nome próprio: a casa foi batizada com o nome de um médico famoso, pai da mulher que hoje mora nela. Originalmente, tinha vitrais com imagens náuticas, como barcos e mares revoltos. A casa é uma sobrevivente. A única que resta na rua, de pelo menos 20 que caíram para dar lugar aos prédios que estão lá hoje.

Mas não é só a casa que tem história. A Mulher da Casa Abandonada, eu descubro, tem uma história que poderia estar num filme de terror. Um site de arquitetura que lamenta o estado deplorável da casa. Comentários ecoam a lástima que é ter um imóvel importante jogado às traças em uma rua rica de São Paulo.

"Que lástima. É tanta beleza deixada no relento."

E

"Lamento a infiltração nos beirais."

E

"Pena que hoje o casarão está abandonado precisando de reformas urgente. Sabe se está tombado?"

Mas, no meio de comentários de pessoas curiosas para conhecer o imóvel por dentro e de vizinhos fulos com o cheiro que a casa emana, tem um comentário que se destaca. Um comentário anônimo que parece uma mensagem cifrada. Em 2018, uma pessoa não identificada escreveu no site de arquitetura:

"Ela é procurada pelo FBI. Margarida Bonetti."

Eu leio e uma luz amarela se acende na minha mente. Vou para a internet. E encontro a combinação dos termos FBI e Margarida Bonetti no site da Newsweek, uma revista semanal que existe há quase cem anos, e é uma das mais respeitadas do mundo. Clico. Na tela, abre uma reportagem de 21 anos atrás com a manchete "Slavery 's New Face". A nova cara da escravidão. O texto narra a história de Rene e Margarida Bonetti, um casal brasileiro que se mudou pro subúrbio de Washington em 1979. O marido foi convidado a trabalhar em uma empresa que faz satélites para a Nasa. E o casal se mudou para os Estados Unidos na virada dos anos 1980 com uma empregada doméstica. Margarida e o marido pararam de pagar salário dessa funcionária brasileira, que era analfabeta, e mantiveram a mulher em cárcere privado por quase 20 anos. O texto conta que Rene foi preso nos EUA. E que Margarida é procurada por ter submetido uma pessoa a condições análogas à escravidão. Uma pessoa de quem tirou direitos e dignidade. Uma mulher a quem torturou. A quem negou atendimento médico por anos, até que um tumor chegasse ao tamanho de uma bola de futebol, e ela fosse resgatada por vizinhos.

A reportagem tem uma foto. É um retrato de Rene e Margarida. A mulher na foto é Margarida Bonetti. Uma mulher morena e baixa, os olhos amendoados e o rosto redondo. Eu olho para a foto e vejo nela alguém que conheço. Por mais que o rosto tenha mudado com duas décadas e que carregue uma camada de substância oleosa. Margarida Bonetti é Mari. Margarida Bonetti é a mulher da casa abandonada. E a mulher da casa abandonada é foragida da Justiça americana por ter cometido um dos crimes mais impensáveis que existem.

FIM DO EPISÓDIO

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