Podcast: Sufrágio debate peso do sobrenome para eleição de mulheres no Brasil

Terceiro episódio da série analisa os caminhos para a ascensão de candidatas

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Este projeto tem apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting

Brasília

No universo de ternos e gravatas que é a política brasileira, quem são as mulheres que conseguem ser eleitas? O terceiro episódio do podcast Sufrágio, publicado nesta quinta-feira (8), analisa os caminhos possíveis para as candidatas entrarem no páreo de uma disputa dominada pelos homens.

O podcast conta a história da primeira mulher prefeita do Brasil, Alzira Soriano, discute o peso dos sobrenomes na trajetória das políticas e debate a subrepresentação de mulheres negras entre as eleitas.

Ouça:

A transcrição acessível do episódio pode ser lida ao final deste texto.

O episódio entrevista mulheres eleitas e candidatas em três estados do Brasil. Participam a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), a vereadora e candidata a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) e as candidatas ao governo de Pernambuco Marília Arraes (SD) e Raquel Lyra (PSDB).

Para entender os caminhos que as mulheres percorrem até a disputa eleitoral, o podcast conversa com a juíza eleitoral Adriana Magalhães, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte, e com a coordenadora do Observatório da Mulher na Política, Ana Cláudia Oliveira.

O Sufrágio conta a história das brasileiras na política e discute os desafios que elas têm pela frente. Os episódios são publicados sempre às quintas-feiras, nas principais plataformas de podcast.

A apresentação, roteiro, pesquisa e reportagem são da jornalista Angela Boldrini. A produção é de Jéssica Maes e a edição de som de Laila Mouallem. A coordenação do projeto é de Magê Flores e a identidade visual de Catarina Pignato.

Um cartaz de fundo roxo mostra o desenho de uma mulher de vestido verde de mangas compridas, usando um chapéu e segurando um estandarte roxo escuro que balança ao vento
Sufrágio: Episódio 3 - Capitania Hereditária - Catarina Pignato

Leia a transcrição do episódio:

[Sons de passos]

[Angela] Licença. Olá, tudo bem? Prazer, Angela, da Folha. Tudo bem?

[sons de conversa ao fundo]

[Angela] Oi, governadora, tudo bem? Prazer

[Fátima Bezerra] Oi, Angela! Prazer.

Em maio deste ano eu fui até o gabinete da governadora Fátima Bezerra, do PT, para uma conversa. Desde o começo da pesquisa para esse podcast, eu queria visitar o Rio Grande do Norte, que é o estado que ela governa.

Se você já ouviu os dois primeiros episódios desta série, sabe o porquê: foi lá que teve início o direito ao voto feminino no Brasil, em 1927.

Quando eu embarquei para Natal, a Fátima tinha acabado de voltar do interior.

[Fátima] Eu estive lá sábado, lá na cidadezinha de Lajes, lá onde exatamente ela nasceu…

Lajes é uma cidade de 11 mil habitantes a cem quilômetros da capital. Ela tinha ido lá para participar de um evento.

Era uma festa festa. Teve show….

[som de música alta]

E teve teatro também.

[Fátima] Foi muito legal. Tinha um dia uma peça lá e até um grupo lá da cidade se apresentou, fez uma peça lá sobre a vida de Alzira e eu fiquei muito, muito feliz.

A Alzira a que a Fátima se refere é a Alzira Soriano. Ela é o motivo da festa — todos os anos Lajes tira uma semana inteira para homenagear essa mulher. É que enquanto as brasileiras de outros estados ainda estavam esperando para votar, a Alzira dava um passo além: ela era eleita.

Em 1929, a Alzira se tornou a primeira prefeita do estado, do país — e da América Latina. No discurso de posse, ela falou sobre a posição da mulher na política. Aqui, na voz da Andréia Araújo da Nóbrega.

[Andréia] Neste ambiente de liberdade e trabalho, de patriotismo e de tolerância, tornou-se realidade o nosso sonho de igualdade política. A prova eloquente de reconstrução político-social caracteriza-se pela minha eleição ao posto de prefeita deste município

Eu queria ir para o Rio Grande do Norte não só para conhecer o lugar onde as mulheres votaram pela primeira vez. Mas também para entender por que esse é um estado que costuma eleger mulheres.

Quando a gente fala de igualdade de gênero na política, a gente tá bem atrás dos nossos vizinhos. Na Argentina, as mulheres são mais de 40% do parlamento. No Brasil, a gente tem só 15% das cadeiras do Congresso. No Uruguai, quase um quarto das prefeituras são ocupadas por mulheres —por aqui, só 12% dos municípios têm prefeitas.

Em 2018, a gente só elegeu uma mulher para comandar um governo estadual. A Fátima.

[Fátima] Na hora em que eu estava lá, participando dessas homenagens a Alzira, eu me dei conta de uma coisa.

A governadora diz que parou para pensar que faz quase cem anos que a Alzira foi eleita.

[Fátima] E de repente cá estou eu, a única mulher governadora do Brasil. O que explica isso? Por que é que a luta pela emancipação política das mulheres é tão lenta?

É, essa é uma pergunta importante, que é o motivo desse podcast existir. Ela também guia o episódio de hoje, que vai contar quais são os caminhos que as mulheres encontraram para entrar na política. Eu sou Angela Boldrini, e este é o Sufrágio, um podcast da Folha que tem apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting.

Episódio três: Capitania hereditária.

A primeira prefeita do Brasil nasceu no finalzinho do século 19 no que hoje é a cidade de Jardim de Angicos — na época, um distrito do município de Lajes.

Até os 22 anos, a Alzira vivia a vida que se esperava de uma mulher da época dela. Filha de um comerciante e fazendeiro rico da região, ela casou aos 18 anos. Enquanto esteve casada, a Alzira basicamente se dedicou a ser mãe — em menos de cinco anos, ela teve quatro filhas.

A mais nova não chegou a conhecer o pai, porque o marido da Alzira morreu de gripe espanhola quando ela estava grávida, em 1919. Depois disso, ela volta para a fazenda da família e passa a administrar o lugar.

O pai da Alzira era um líder político da região — um dos famosos coronéis. Ele era literalmente conhecido como Coronel Miguel. Por isso, a Alzira passa também a frequentar as reuniões políticas e as campanhas eleitorais da cidade.

Em 1928, chega uma visita ilustre ao estado. Uma líder sufragista que foi para o Rio Grande do Norte convencer as mulheres a votar. Ela mesma, a Bertha Lutz.

No episódio passado a gente falou dessa viagem, mas de propósito eu deixei de mencionar uma coisa. Além do alistamento eleitoral das potiguares, a Bertha tinha outro objetivo com a visita. Ela estava em busca de uma candidata.

Ela conversou com o governador do estado, o Juvenal Lamartine — aquele que era o principal aliado das sufragistas. Eles estavam pensando em quem poderia topar essa maluquice e ele lembrou uma conversa com um colega de partido. O sujeito estava lamentando que a filha fosse mulher porque ela tinha muita vocação para a política. Esse colega era o Coronel Miguel, pai da Alzira.

Ok, então eles tinham encontrado a candidata ideal. Agora, faltava saber se ela topava. O Juvenal e a Bertha baixaram lá em Lajes e disseram na lata que queriam que a Alzira concorresse à prefeitura. Ela, e o pai dela, toparam.

[Adriana] Tem fotos icônicas, você deve ter visto aquela foto dela da posse dela, que ela está com aquele chapéu, uma mesa enorme e vários homens do secretariado dela.

Essa é a juíza eleitoral Adriana Magalhães, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte. A gente já ouviu ela no primeiro episódio desta série. A Adriana está escrevendo um livro sobre a história das mulheres potiguares na política.

Aos 32 anos, a Alzira foi eleita com 60% dos votos. Dizem que o outro candidato ficou tão humilhado por ter perdido para uma mulher que foi embora do estado.

A foto que a Adriana citou mostra a Alzira de pé na ponta de uma mesa, olhando para a câmera. O vestido e o chapéu que ela está usando são claros. Numa foto em preto e branco, isso deixa mais forte o contraste entre a prefeita e os homens de terno em volta dela.

[Adriana] Veja bem, uma mulher que assumiu como prefeita, mas o secretariado dela não tinha nenhuma outra mulher. Tinha vários homens. Está ela postada ao centro, cercada de vários homens.

Bom, a política local não ia mudar da noite para o dia, né? E muita gente nem aceitava ter uma mulher na prefeitura. Mas a Alzira era braba.

A Adriana contou de um dia em que a prefeita foi ofendida por um adversário político.

[Adriana] ela já eleita, disse que ela andando ela foi interpelada por um homem da cidade dizendo que lugar de mulher deveria ser em casa, cuidando dos filhos, porque eles diziam que só mulheres de vida, de vida fácil é que iriam estar nos espaços, nos espaços públicos, nas arenas públicas, discursando em palanques e falando que as mulheres de vida fácil é que eram dadas a esse tipo de coisa, ao que ela respondeu com um belo soco na cara do interlocutor.

A Alzira quebrou os óculos do sujeito.

[Adriana] E isso ficou conhecido em toda a cidade porque disseram então que, além de boa política, ela tinha boa pontaria e era muito destemida. Entendeu?

O governo da Alzira costuma ser retratado como um período de boa gestão. Ela teria organizado o caixa da prefeitura e arrumado coisas como a iluminação e a limpeza da cidade. Um jornal da época até falou que ela cuidava disso por causa da vocação de dona de casa. Como se resolver essas questões não fosse o trabalho do prefeito.

Só que a primeira prefeita do Brasil não chegou a terminar o mandato. O golpe de estado que colocou o Getúlio Vargas na presidência do país derrubou um monte de políticos. A Alzira, que tinha apoiado o candidato paulista Júlio Prestes contra a chapa do Vargas na eleição de 1930, deixou o comando de Lajes. Ela só foi voltar para a vida pública em 1947, como vereadora.

A primeira eleição em que as brasileiras puderam votar e se candidatar aconteceu em 1933, para escolher os deputados que iam escrever a nova Constituição. Dezenove mulheres se candidataram e uma foi eleita. A médica Carlota Pereira de Queirós foi a nossa primeira deputada federal.

Ela vinha de uma família super tradicional do interior de São Paulo. Ser paulista, inclusive, era tipo a principal bandeira da Carlota enquanto política. Isso porque ela se lançou na vida pública durante a Revolução de 1932, quando São Paulo se revoltou contra o governo Vargas.

A Carlota, que era médica, se juntou a outras centenas de mulheres para cuidar dos feridos. As tropas paulistas foram derrotadas, e em 1933 ela se candidatou como uma opositora ao governo. E recebeu mais de 170 mil votos.

A Bertha Lutz também se candidatou nessa primeira eleição. Ela recebeu 38 mil votos, e acabou virando suplente — que é tipo um reserva, que entra em campo quando algum deputado eleito não pode exercer o mandato por algum motivo.

Em 1936, um deputado morreu e a Bertha foi chamada para o lugar dele. Ela virou a segunda deputada federal do país. Só que o mandato dela acabou sendo bem curto. Em 10 de novembro de 1937, o presidente Getúlio Vargas fez um "pronunciamento ao povo brasileiro".

[Getúlio Vargas, em áudio da época] As exigências do momento histórico e as solicitações do interesse coletivo reclamam, por vezes, imperiosamente, a adoção de medidas que afetam os pressupostos e convenções do regime, os próprios quadros institucionais, os processos e métodos de governo.

Começava o Estado Novo. Ou seja, tchau democracia, tchau Congresso… tchau deputadas. É irônico que um golpe do mesmo governo que instituiu o direito de votar e de ser votada tenha privado de novo as mulheres da vida política.

A Alzira, a Carlota e a Bertha têm uma coisa em comum. Aliás, duas. A primeira é que nenhuma das três tinha marido quando se candidatou.

A Alzira era viúva e a Carlota e a Bertha nunca casaram. Naquela época, casar significava entregar a vida toda na mão do marido. Por causa das leis brasileiras, as mulheres casadas tinham que pedir autorização para tudo. Talvez por isso boa parte das sufragistas e políticas dessa época nunca tenham entrado num casamento.

A segunda coisa que une as três é que todas vieram de famílias ricas e poderosas. E isso é um componente importante da trajetória delas. No caso Alzira, foi acompanhando o pai coronel que ela entrou na política. E para a Bertha e para a Carlota, foi isso que permitiu que elas estudassem até a faculdade e depois andassem pelos círculos influentes da sociedade.

Não dá para resumir nenhuma dessas mulheres só a filhas de homens importantes. A Alzira era uma boa administradora —e sabia calar a boca de homem desaforado. A Bertha além de ser a principal líder sufragista brasileira também foi uma baita bióloga, que descobriu uma espécie nova de sapo. E a Carlota era uma médica premiada.

Mas também não dá para ignorar o papel que a classe social tem quando a gente fala de política. E nem o peso de um sobrenome. Aliás, durante a apuração desse podcast, a influência que algumas famílias têm foi assunto várias vezes.

Bom, quando eu conversei com a governadora [Fátima], eu perguntei como tinha sido a trajetória dela na política.

[Fátima] 2002 nós quebramos paradigma porque eu fui a primeira deputada federal eleita com um perfil, uma origem social diferente, porque até então a Câmara dos Deputados, o perfil dela aqui, no caso do Rio Grande do Norte, era formado por políticos vinculados diretamente ao poder econômico ou políticos oriundos das famílias tradicionais ou das oligarquias. E eu sou a primeira a quebrar esse paradigma. Primeira.

A Fátima tá falando do estado dela —outros lugares do Brasil já tinham elegido deputadas fora das elites. Mas as oligarquias não são um fenômeno exclusivo do Rio Grande do Norte. Não dá para negar que uma parte importante da nossa política é mesmo composta por uma meia dúzia de famílias que vão se mantendo na carreira geração após geração.

TV Globo A vitória de ACM Neto marca a volta à prefeitura de Salvador do grupo político criado por seu avô, o senador Antônio Carlos Magalhães

UOL O senador Renan Calheiros e o filho dele, o governador de Alagoas, o Renan Filho

TV Globo Pedro Cunha Lima vem de uma família tradicional na política, filho do ex-senador Cassio Cunha Lima e neto do ex-governador Ronaldo Cunha Lima

GloboNews Os três filhos do presidente: o vereador Carlos Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro

E eu comecei a reparar que pessoas diferentes com quem eu estava conversando, usavam uma mesma expressão para descrever esse fenômeno da política brasileira: capitania hereditária. Ninguém estava falando daqueles pedaços de terra que o rei português deu para uns nobres lá no século 16. Era sobre hoje mesmo.

Isso me fez querer entender melhor não só quantas são, mas quem são as mulheres que entram na política institucional —e como o lugar de onde elas vêm molda o tipo de desafios que elas vão enfrentar.

[Ana Cláudia] Meu nome é Ana Cláudia Souza Oliveira. Eu trabalho aqui na Câmara desde 2013.

Para entender o perfil da mulher eleita, eu fui procurar a Ana Cláudia no subsolo do Congresso. É num cantinho escondido que funciona a Secretaria da Mulher. Ela foi criada em 2013 para oficializar e auxiliar a chamada "bancada feminina".

A Ana Cláudia é servidora lá e também coordena o Observatório da Mulher na Política.

Numa eleição, o que a gente faz lá na urna é decidir quem vai ser o nosso representante, certo? O que faz um candidato parecer mais capaz do que outro para o papel é o que se chama de "capital político". E isso tem que vir de algum lugar.

[Ana Cláudia] Capital político é uma coisa que se constrói de várias formas. Uma delas é familiar. Uma delas é... A origem é familiar. E muitos homens têm isso também. São filhos de fulano, netos de beltrano e irmãos de não sei quem, e aí um vai levando o outro.

Os estudos sobre as mulheres eleitas para a Câmara ao longo de várias legislaturas mostram que tem basicamente três caminhos para elas chegarem lá. A família, o movimento social e ser famosa por algum outro motivo —tipo ser atleta, artista ou até influencer.

A Ana Cláudia diz que a bancada feminina atual é diferente das que a gente tinha visto até 2018. Vários fatores têm a ver com isso, como o assassinato da vereadora Marielle Franco e o apoio do presidente Jair Bolsonaro a algumas candidatas.

[Ana Cláudia] Mas antes disso era muito comum e tinha até estudos que apontavam isso, que a maioria das mulheres eleitas eram esposas de alguém, filhas de alguém, irmã...

Uma reportagem da Folha publicada em outubro de 2006 anunciou um recorde de mulheres eleitas naquele ano: 46 deputadas chegaram à Câmara. No pé da página, um outro texto traz o perfil das eleitas.

Dobradinha familiar com homens é trunfo - A bancada feminina, tanto a parte veterana como a novata, tem sobrenomes há muito tempo conhecidos na política. Metade das mulheres eleitas para a Câmara são companheiras ou ex-companheiras, filhas e viúvas de políticos. Isso passa por todos os partidos.

O total de deputados homens com parentes políticos nessa eleição é um tanto menor: são 35% dos eleitos. A Ana Cláudia diz que, ao longo da história, é compreensível que as mulheres dependessem mais do sobrenome.

[Ana Cláudia] É porque a gente tem que pensar que num ambiente para o qual as mulheres não foram feitas, porque a política não foi feita para mulheres, esse espaço não foi feito para as mulheres. Até pouco tempo não tinha banheiro no plenário do Senado Federal. Até alguns anos atrás. Por muito tempo esse espaço não era feito para as mulheres. Que mulheres então que iam se jogar ali na cova dos leões para enfrentar isso daqui? Ou mulheres que estavam muito já arraigadas ali dentro de movimentos sociais, sindicatos e que toparam acumular mais essa tarefa ou você vem pela sua família, assim. São os dois caminhos apresentados para as mulheres.

Ao mesmo tempo, a visão de que mulheres vão para a política só por causa dos pais ou maridos também existe em parte porque isso também acontece. Elas acabam sendo escaladas para manter o espaço familiar. Manter a cadeira quente. Aqui, a governadora Fátima Bezerra.

[Fátima] O que eu que estava colocando, Angela, é que é importante, está entendendo, é que elas venham para a política com cada vez mais essa vontade de vir, porque quer participar e não, está entendendo, por vias transversas, porque às vezes as mulheres entraram na política porque o marido não podia ser candidato, porque o irmão não podia ser candidato e isso é muito ruim. Eu vi experiências dessa forma. De repente você notava que não era a vocação da mulher. Mas às vezes ela foi para a política, repito, por quê? Porque, naquele momento tinha que tapar um buraco. Mas eu quero dizer para você que eu acho que esse fenômeno ele está, digamos assim, diminuindo mais, não acha não?

Em 2018, o Congresso teve uma renovação recorde —e um aumento também recorde no número de eleitas. A bancada feminina pulou de 51 deputadas para 77. Aqui, a Ana Cláudia.

[Ana Cláudia] A minha sensação é de que da legislatura anterior para cá, esse perfil deu uma diminuída. Agora eu já percebo mulheres que não têm nenhuma conexão política. Vieram porque eram líderes em associações ou eram líderes, ou mesmo estavam na TV ou nas redes sociais. Enfim, influentes, ou eram de movimentos sociais. Percebo muito menos, pelo menos as mais que a gente sabe o histórico delas que a gente conhece, que estão mais na mídia.

Mas o capital político familiar não sumiu. A mulher do candidato do União Brasil ao governo do Ceará, o Capitão Wagner, quer uma vaga na Câmara pelo mesmo partido. Hoje, quem é deputado é o marido. E o nome de urna dela é… Dayany do Capitão.

A mulher do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, Rosângela Moro, do União Brasil, vai estar na disputa também. O nome dela surgiu depois que a Justiça eleitoral proibiu o marido de disputar um cargo em São Paulo.

[Sergio Moro] E ela tá pronta também não só para me representar e os valores e princípios que eu acredito, mas os dela próprios.

Não é só quando a gente fala de eleição para o Congresso que a origem dos candidatos tem peso. As disputas de governo do estado costumam ser um desfile de sobrenomes conhecidos —para homens e para mulheres.

A eleição para o comando estadual de Pernambuco este ano, não foge a essa regra. Os cinco principais candidatos vêm de famílias políticas.

[Marília Arraes] Aqui em Pernambuco, por exemplo, na história do estado, somente quatro mulheres foram deputados federais

Essa é a deputada federal Marília Arraes, do Solidariedade. Ela lidera a disputa para o governo estadual.

[Marília] E nunca teve uma governadora, nunca teve nem uma presidente da Assembleia, presidente da Câmara do Recife, senadora.

Na terceira viagem para essa série eu fui acompanhar uma situação inédita no estado e muito rara no Brasil: ter duas mulheres disputando uma corrida estadual com chances reais de chegar na cadeira. Elas são a Marília e a ex-prefeita de Caruaru Raquel Lyra, do PSDB.

Só seis estados brasileiros elegeram governadoras —e menos ainda reelegeram. O campeão dessa lista acho que dá para adivinhar: o Rio Grande do Norte. Antes da Fátima, que agora tenta a reeleição, o estado teve outras duas mulheres no comando.

Em Pernambuco a situação é bem diferente. Em 2018, a candidata mais votada teve menos de 5% dos votos — e em 2014 e 2010, por exemplo, nem teve mulher no páreo. A minha primeira parada foi o escritório do Solidariedade no Recife, o quartel-general da candidatura da Marília.

[Marília] Eu acho que é muito bom no estado em que a gente tem tão pouca representatividade, que a gente tenha mulheres disputando a eleição com condições reais de ganhar, porque sequer houve mulheres disputando o governo com essa condição de ganhar a eleição. Então eu acho que essa é uma grande evolução e que a gente tem que aproveitar para falar sobre o que é que a falta das mulheres nesses espaços de liderança, de decisão, refletem na falta de políticas públicas também que são implementadas.

O prédio parecia um formigueiro, de tanta gente correndo para lá e para cá nos corredores —e a campanha nem tinha começado oficialmente ainda.

O Solidariedade é o terceiro partido da Marília. Ela já passou pelo PT e começou a carreira no PSB. Esse é o partido que o avô dela, Miguel Arraes, presidiu. Até hoje a maior parte dos herdeiros políticos do Arraes tão nele, como o prefeito do Recife João Campos, que é primo da Marília.

[Marília] Eu sou de família de político e sou fora da zona de conforto, não é? Porque eu disputo em oposição a quem está no poder, que é uma parte da minha família. Então, apesar de eu ter o sobrenome de eu ser, ter muito orgulho de ser neta de Arraes, eu estou em oposição a uma parcela da minha família que está no poder.

Em 2020, ela disputou o segundo turno da eleição municipal justamente contra o primo que é filho do ex-governador Eduardo Campos. Eu perguntei para a Marília se ela já tinha sido questionada enquanto política por causa da origem familiar.

[Marilia] No início, sim. Depois não, porque hoje eu tenho muito orgulho de ser neta de Arraes, Eu sigo os princípios que eu aprendi com ele, mas as pessoas têm a consciência do caminho que a gente construiu. Hoje mais não. Mas no início, sim. Mas também já sofri inclusive ataques políticos por conta de minha imagem, quando, quando eu rompi com o PSB aqui picharam mais de 30 muros da cidade: Marília Arraes, gorda. Então assim, faziam, faziam os memes com como se fosse com um desenho com a minha cara de uma pessoa gorda, enfim.

No dia seguinte, eu peguei a estrada bem cedo.

[Waze] Em cem metros você chegará à Rua Francisco Joaquim.

[Angela] Acho que daqui para frente é só ver o número…

Eu tinha marcado de encontrar a Raquel Lyra em Caruaru. Ela foi prefeita dessa cidade do agreste pernambucano de 2016 até abril deste ano, quando saiu do cargo para concorrer ao governo do estado.

Na estrada eu fui pensando sobre essa questão dos sobrenomes e a entrevista com a Marília, que é brigada com uma ala da própria família. Isso me fez lembrar uma coisa.

Quando eu me mudei para Brasília para ser repórter de política da Folha na capital, eu encaixotei todos os meus livros para trazer na mudança. Menos um, que ia viajar comigo. Eu estava lendo a biografia do Tancredo Neves, escrita pelo jornalista Plínio Fraga.

O Tancredo é avô do Aécio Neves, que já foi candidato a presidente, senador, governador, deputado. Ele também é avô da Andrea Neves. Foi um trecho sobre ela que eu lembrei quando estava na estrada em maio.

[Trecho do livro, lido por Angela] Em todos os seus mandatos, Aécio teve como principal influência e conselheira a irmã Andrea Neves. Tancredo via nela real talento político, mas lamentava que as mulheres enfrentassem dificuldades maiores do que os homens na construção da carreira eleitoral. Essa avaliação impediu que estimulasse a neta a disputar cargos públicos.

Não é segredo para ninguém que a Andrea Neves é uma influência grande para o irmão. Eu só não sabia até aquele momento que o Tancredo via nela um talento para vida pública, mas que o gênero era uma barreira. Por ser mulher ela não pôde, ou não foi incentivada a usufruir desse privilégio de já ter nascido com capital político.

Quando eu pensei sobre esse trecho do livro, na hora eu lembrei do pai da Alzira Soriano "se lamentando" que a filha não era um filho.

Não dá para negar que as herdeiras políticas partem de um lugar privilegiado na hora da eleição. Mas dentro do universo das famílias, será que essa diferença entre herdeiros e herdeiras ficou no passado?

[Raquel Lyra] Bem, quando eu era pequenininha, de fato, quando meu pai foi prefeito a primeira vez na minha cidade de Caruaru, eu tinha nove anos e olhavam assim "ah mas João só tem filha mulher e quem será o herdeiro político?

Essa é a Raquel. Ela é filha do ex-governador João Lyra Neto, que por sua vez é filho de um ex-prefeito de Caruaru.

[Raquel] ainda me perguntavam uma coisa mais grave que era assim: teu pai não ficou triste por não ter um homem, não ter um filho homem? Eu disse poxa, ele me mostra que ele me mostra uma pessoa super feliz. Agora você precisa perguntar isso a ele. Parece, as pessoas falam isso sem perceber o que está por trás de uma pergunta dessa natureza.

Antes de ser prefeita, como o pai e o avô, a Raquel foi deputada estadual por dois mandatos. Antes disso ainda, ela foi delegada da Polícia Federal.

[Raquel] Sempre me perguntavam e diziam que quem mandaria no governo não seria eu, seria o meu pai. É sempre: "é João que quer? João quer ou João não quer?" Como se o fato definidor. É óbvio que eu respeito muito e me aconselho muito com ele, mas é como se eu estivesse sempre e sempre tentam ancorar uma candidatura feminina sobre quem é o homem que tutela essa candidatura, não é?

Eu encontrei com a Raquel na sede da empresa de ônibus da família dela. Eu não sabia quando a gente marcou, mas naquele dia era feriado em Caruaru. Não tinha ninguém trabalhando.

[Raquel] Acho que precisa separar as duas coisas, porque muitas vezes se tenta colocar como se fosse uma coisa só. A primeira, é que não se cobra tanto de homens como de mulheres para taxar de que você é exatamente onde está disputando o que pode, porque você é filho de alguém. Para mulheres, isso é muito mais forte. E a segunda, a segunda coisa, é que há pessoas que despertam um interesse pela política, pelo fato de ter pessoas que também fazem política na sua casa. Eu nasci nisso. Meu tio trabalhou muito fortemente pelas Diretas Já. Foi ministro na redemocratização do Brasil. A gente conta na nossa família a vida e os marcos a partir das eleições. Ah foi a eleição de governo de tal, de Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos. Então, os nossos ciclos de vida... Não, casou entre a eleição de 1992 e de 1996, em cada campanha que lembra: Fulaninho nasceu durante a campanha de 2014. Eu tive um filho na eleição de 2010, e um filho na eleição 2012. É assim que a gente conta a vida na família.

Em 2016 a Raquel foi a única mulher no país que venceu um segundo turno na eleição municipal. Eu já era curiosa sobre o espaço feminino nesse universo e falei com ela logo depois do resultado. Eu perguntei por que tão poucas mulheres eram eleitas.

Naquela época, ela me disse que a principal dificuldade para as candidaturas femininas era o espaço nos partidos. Agora, em 2022, eu queria saber se a opinião dela era a mesma.

[Raquel] Se você olhar qualquer reunião da executiva do partido, a Executiva Nacional começa pela executiva nacional do partido. São homens, presidentes de partido? Imensa maioria é de homens. Se não... Se tem presença de mulher, mas é composta com base com pensamento de homens. A gente precisa ter... Para mim, precisaríamos estruturar lei para organização partidária. Depende de legislação para colocar exigência de cota de mulheres para dentro dos partidos. É sempre quem está na ponta da mesa que nunca vai ser ouvido ali, pedindo licença para poder entrar, né não? A gente evoluiu pouco.

A gente evoluiu pouco. E em algumas parcelas da população, a gente evoluiu menos ainda. Lembra aqueles três caminhos que a Ana Cláudia, do Observatório da Mulher na Política, falou que existem para as candidatas? A família, o movimento social e ser famosa antes da política?

A política brasileira, além de masculina é muito branca. Isso significa que as famílias que estão há gerações acumulando capital político são, majoritariamente, brancas também.

No caso das mulheres negras, a principal forma de acesso à política institucional é o ativismo. E elas ainda são a minoria da minoria no parlamento —embora na vida real sejam quase 30% da população brasileira.

Um estudo publicado em 2020 por duas doutorandas da PUC do Rio Grande do Sul mostra essa disparidade. Das 466 mulheres que já foram deputadas federais, 91% são brancas. Pretas e pardas somam juntas menos de 10%.

[Fátima] A pobreza ela também tem cara e ela tem cor. E ela tem a cara maior das mulheres, inclusive as mulheres negras as estatísticas mostram exatamente isso. Levando em consideração ainda toda aquela visão tradicional do papel da mulher. É assim, ainda que a sociedade, enfim, se se organiza, então quanto mais pobreza também, mais vai sobrar para as mulheres. A falta de creche e a falta, por exemplo, de estrutura para cuidar dos nossos idosos, das nossas idosas, entendeu? Então, isso isso afeta mais ainda a vida das mulheres naquilo que se convencionou chamar da dupla, tripla jornada de trabalho. E, naturalmente, isso claro que inibe as mulheres e inibe as mulheres de... De repente, por exemplo, as mulheres terem mais condições de se lançar a outros desafios, inclusive no campo da disputa política. Não é fácil.

Como a maioria das mulheres negras, a Fátima chegou à vida pública pelo caminho dos movimentos sociais. Para ela, a porta de entrada foi a universidade.

[Fátima] como estudante, eu participei daquele congresso de reconstrução da UNE em 1979. Em seguida, eu começo a atuar como professora da rede estadual de ensino da rede municipal e, paralelamente, a minha participação no movimento sindical. E daí termino sendo convocada para participar da luta partidária também.

Quando a gente fala desse tipo de capital político, não está falando só daqueles à esquerda —embora esse seja o caso da [Fátima]. Várias mulheres negras chegam à política através da comunidade de igrejas evangélicas, por exemplo.

Aliás, a bancada feminina na Câmara tem parlamentares de uma ponta a outra do espectro político. Em 2018, se elegeram 9 mulheres do PSL, o então partido do Bolsonaro, e 10 do PT. Essa diversidade ideológica tem gerado atritos dentro do grupo, que costuma votar junto nos assuntos considerados de "interesse das mulheres".

Esse voto combinado é bem comum no Congresso. É que as bancadas são os grupos de parlamentares que defendem um mesmo interesse. Tem as mais famosas, tipo a da bala, da bíblia… mas no Congresso tudo é lobby. Um projeto de lei só vai para frente se tiver quem esteja disposto a brigar para fazer ele andar.

Por isso é importante ter um Parlamento diverso. E tem grupos se organizando para chegar nesse espaço em 2023.

[Erika] Está havendo, está em processo de transição a fotografia do poder no Brasil.

A Erika Hilton é vereadora em São Paulo pelo PSOL, e tá concorrendo a uma vaga na Câmara dos Deputados em 2022.

[Erika] A minha presença aqui na Câmara Municipal ou de outras parlamentares únicas em seus parlamentos, significa que a pauta indígena, a pauta trans, ela estará colocada sobre a mesa.

A candidatura da Erika quer romper mais uma barreira na política: nunca uma mulher trans foi eleita para o Congresso. Neste ano, ela e outras candidatas em todo o país estão tentando formar uma bancada para defender os interesses das pessoas trans em Brasília.

[Erika] Não significa que todas as vezes nós conseguiremos avançar, porque a resistência ela é avassaladora. Mas nós temos a certeza de que haverá enfrentamentos, haverá resistência, haverá um debate e nós avançaremos em um ponto ou em outro. Então, a nossa presença nesses espaços significa ganhos para os nossos grupos, mas também ganhos a toda a sociedade. Porque quando as populações indígenas avançam, quando a população LGBT avança, a sociedade automaticamente passa a avançar também. Essa engrenagem roda e a nossa presença faz com que essas pautas não sejam esquecidas. Com que esses grupos não morram no silenciamento, no anonimato e no esquecimento, que é o que acontecia até a gente ocupar o Parlamento, né?

Na semana que vem, a gente discute por que é importante ter mulheres eleitas e como a presença delas na política impacta a nossa vida.

O Sufrágio é um podcast da Folha realizado com o apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting. Segue o podcast no seu tocador favorito e dá uma nota para gente.

Eu sou Angela Boldrini, e a idealização, pesquisa, reportagem e roteiro são meus. A produção é da Jéssica Maes, e a edição de som é da Laila Mouallem. A coordenação é da Magê Flores, que também editou o roteiro deste episódio. A identidade visual é da Catarina Pignato, e a divulgação é feita pelo Naná DeLuca e pelo Mateus Camillo. A gravação foi feita no estúdio Madruga, em Brasília.

Este episódio usa áudios do Arquivo Nacional, GloboNews, UOL e TV Globo.

A gente agradece a Cyntia Carolina Beserra Brasileiro, Guia Dantas, Ícaro Carvalho, Udymar Pessoa e ao melhor motorista-repórter de Pernambuco, Luciano Amâncio.

O próximo episódio sai na quinta que vem. Até lá!

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