Novo podcast da Folha, Sufrágio discute caminhos e desafios para mulheres na política

A dias de o país ir às urnas, série ouve eleitoras e eleitas para contar história das brasileiras no poder

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Este projeto tem apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting

Brasília

O Brasil é um país com 82 milhões de eleitoras, mas que tem menos de cem mulheres no Congresso Nacional. Em 2018, elegeu só uma governadora. Em sua história, apenas uma mulher chegou à Presidência –e é improvável que isso mude em 2022.

O que explica essa desigualdade de gênero na política, e como mudar o monopólio masculino no poder? É isso que o Sufrágio, podcast da Folha que estreia nesta quinta-feira (25), vai debater.

No ano em que o direito ao voto feminino completa 90 anos no Brasil, o projeto conta a história das brasileiras na política institucional e os desafios que eleitas, eleitoras e candidatas enfrentam até hoje. Para isso, a repórter Angela Boldrini ouviu mulheres em cinco estados do país e no Distrito Federal.

Ouça (a transcrição está disponível ao final da reportagem):

Os sete episódios da série serão publicados semanalmente, às quintas-feiras, nos principais agregadores de podcast e no site da Folha.

Neles, políticas como a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), a senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata à Presidência, a vereadora Erika Hilton (PSOL-SP), a deputada federal Bia Kicis (PL-DF) e a deputada estadual Isa Penna (PC do B-SP) discutem temas como violência política, atuação da bancada feminina e financiamento eleitoral.

Ao todo, foram entrevistadas candidatas e eleitas de 11 partidos, posicionados em diversos pontos do espectro político. Também falam ao podcast pesquisadoras, eleitoras e ativistas.

O primeiro episódio conta a história de Celina Guimarães Viana, a primeira eleitora do Brasil, ouvindo Gina Viana, Carla Viana Coscarell e Fernanda Borges, netas e bisneta da professora potiguar que tirou o título de eleitor em 1927.

As pesquisadoras Mônica Karawejczyk e Teresa Cristina Novaes Marques explicam as origens do movimento sufragista no Brasil, no início do século 20, e a juíza eleitoral Adriana Magalhães, do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Rio Grande do Norte, conta como o estado se tornou o primeiro do país a dar às mulheres direitos políticos.

Angela é repórter de podcasts da Folha. Em Brasília desde 2017, passou pela editoria de Diversidade e também foi responsável pela cobertura da Câmara dos Deputados. A produção do podcast é de Jéssica Maes, e a edição de som de Laila Mouallem. A coordenação do projeto é de Magê Flores, e a identidade visual de Catarina Pignato.

O Sufrágio passa a integrar o catálogo de programas em áudio coordenados pela editoria de Podcasts do jornal, que reúne produtos como o Café da Manhã, podcast diário de notícias em parceria com Spotify; Expresso Ilustrada, sobre cultura; Ilustríssima Conversa, de entrevistas com autores de não ficção; e Boletim Folha, com o resumo do noticiário em duas edições diárias.

Leia transcrição do episódio:

Angela Boldrini: Quem foi a primeira mulher da sua família que teve o direito de votar? Será que foi a sua vó? Ou será que foi a mãe dela?

Na minha família, eu não sei quem foi e ando encanada com isso.

A minha mãe diz que foi a tia Cylde, que era a irmã solteirona e comunista da minha avó Marli.

Do lado do meu pai, eu sei que a minha avó Ana votava. Isso eu posso dizer com certeza por dois motivos. O primeiro é que eu ia com ela votar nas eleições quando era criança e sempre pedia pra apertar os botões da urna.

O outro motivo é que a minha vó Ana nasceu no dia 14 de fevereiro de 1932. Dez dias depois, foi publicado o decreto que finalmente deu às mulheres brasileiras o direito de votar. Em 2022, junto com a minha vó, esse decreto fez 90 anos. Mas e a minha bisavó, que tinha mais de 30 anos quando foi autorizada a votar? Será que ela votou?

Hoje, participar das eleições é obrigatório para homens e mulheres. Neste ano devem ir às urnas mais de 80 milhões de eleitoras. Nós somos a maioria do eleitorado e é muito doido pensar que não faz tanto tempo que a gente não podia nem sonhar em escolher os nossos representantes.

Mas, do outro lado da urna, a gente não chega nem perto dos homens.

Globonews: Na Câmara, foram eleitos 513 deputados: 436 homens e apenas 77 mulheres. No Senado, foram 54 eleitos, sendo 47 homens e apenas 7 mulheres.

Jovem Pan: Dados do Tribunal Superior Eleitoral apontam que apenas 12% dos prefeitos eleitos no primeiro turno das eleições deste ano são mulheres.

Rádio Câmara: O estado que mais elegeu deputadas foi São Paulo: 18 do total de 94 vagas. Por outro lado, nenhuma das 24 cadeiras da Assembleia Estadual do Mato Grosso do Sul irá para uma mulher.

Em 2018, o Brasil elegeu só uma governadora. Neste ano, menos de 15% dos candidatos aos governos estaduais são mulheres. No Congresso, a bancada feminina cresceu na eleição passada, mas agora existe o medo de que ela possa diminuir. E só uma mulher vestiu a faixa presidencial até hoje. No discurso de posse, em 2011, ela disse isso aqui:

Dilma Rousseff: Venho para abrir portas para que muitas outras mulheres também possam, no futuro, ser presidentas.

Onze anos depois, nenhuma outra mulher chegou lá. E é improvável que isso aconteça em 2022.

Eu estou há meses pesquisando, entrevistando candidatas, eleitas e especialistas, e viajando pelo Brasil atrás de uma explicação. Para entender os motivos da desigualdade entre homens e mulheres na política e decidir para onde a gente quer ir —e como— o primeiro passo é conhecer de onde a gente veio.

Eu sou Angela Boldrini, e este é o Sufrágio, um podcast da Folha que tem apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting. Episódio um: a primeira eleitora.

[sinal de anúncio de aeroporto] Clientes Latam do voo 3716 com destino a Belo Horizonte, embarque imediato no portão de número dezoito.

Ao longo deste ano, eu viajei para cinco estados diferentes, para conversar com mulheres que fazem parte dessa história política. Na primeira dessas viagens, eu decidi que o que eu queria era ir atrás de uma família que sabe quem foi a primeira eleitora da casa.

[Angela] Oi, Gina! Tudo bem? Prazer, Angela. Tudo bem. Oii, tudo bem com vocês? Que lindos.

[Gina] Fez boa viagem?

[Angela] Sim, tudo certinho. Que simpáticos!

Quem me recebeu na porta foi a Gina Viana e três dos quatro cachorros dela. A Gina tem um excelente motivo pra saber quem foi a primeira a votar na família dela. É que a vó dela é a primeira eleitora do Brasil.

Eu entrei e a gente subiu pro segundo andar da casa pra gravar numa salinha de estar, bem no pé da escada, mas longe da animação dos cachorros.

[Carla] Gente, eu estou desfazendo aqui o novelo de lã. Os velhos tempos de novelos…

Essa é a Carla, a irmã da Gina. Nessa hora, eu tava arrumando o volume do gravador e a Gina tava contando sobre uma outra entrevista que ela tinha dado recentemente. E aí a Carla pegou o ninho de rato que tava o fio do microfone e começou a desemaranhar.

A Gina e a Carla são exatamente como esses trechinhos de conversa fazem parecer. A Gina é super extrovertida e vai emendando uma história na outra, bem animada. E a Carla tem uma voz suave e uma cadência de professora —coisa que ela é mesmo, na Universidade Federal de Minas Gerais.

Eu estava ali pra conversar sobre a avó delas, que foi a primeira mulher brasileira a ser legalmente autorizada a tirar o título de eleitor. Ela requisitou o direito de votar na comarca de Mossoró, em 25 de novembro de 1927.

[Andréia] Celina Guimarães Viana, filha legítima de José Eustáquio de Amorim Guimarães e Elisa Aguiar de Amorim Guimarães, brasileira, casada com o bacharel Elizeu de Oliveira Vianna, com 29 anos de idade…

Esse é o pedido original da Celina, que eu consegui com a prefeitura de Mossoró, no interior do Rio Grande do Norte. Quem está lendo é a Andréia Araújo da Nóbrega. As pontas do papel estão meio carcomidas, e por isso é meio difícil entender alguns pedaços do que está escrito.

[Andréia] …achando-se habilitada, comprova com os documentos juntos para se alistar como eleitora, requer a Vossa Excelência que se digne mandar inclui-la no rol de eleitores deste município.

O papel está todo amarelo e desbotado. Parece uma folha velha de caderno, e não um dos documentos mais importantes da história das mulheres brasileiras.

A Gina e a Carla nunca tinham visto esse papel. As pesquisadoras com quem eu conversei pra esse episódio também não.

A Celina era potiguar, mas as netas dela são mineiras. É que durante o governo Vargas o casal Celina e Elizeu mudou de estado, e hoje em dia todo mundo fala pãozinho de queijo, trem e uai.

[Angela] Eu vou pedir se na hora de responder vocês puderem não atropelar uma outra porque está tudo no mesmo canal de som. Depois a gente não consegue separar as respostas.

[Gina] Não, a Carla vai falar mais do que eu.

[Carla] Não, ela que fala.

[Gina] Não, fala aí, Carla, eu já falei muito.

[Carla] A gente vai falando, cada hora... A gente levanta o dedinho.

[Gina] Vou passar o bastão da palavra para você igual menino pequeno.

As duas conviveram pouco com a vó Celina, que morreu quando elas ainda eram crianças.

[Carla] Ela gostava de jogar baralho, ficava jogando paciência... Era isso. A lembrança que eu tenho dela é isso. Estou passando dentro de casa, cruzando assim ela passava a mão na cabeça da gente, fazia ou falava alguma coisinha. Eram essas pequenas lembranças assim.

Nessa época, nenhuma das duas tinha a menor ideia da importância histórica da avó.

[Gina] Nunca ninguém contou a história da Celina, da Celina. E igual a Carla falou, ela era uma avó que a gente ia no quarto dela para ela fazer uma gracinha para a gente, dar uma moedinha, dar uma balinha, ela sempre tinha umas balinhas, sabe? E nada mais do que isso.

Ao contrário de outras figuras do movimento feminista da época, a Celina nunca disputou um cargo eletivo e não entrou pra vida pública. A família era bem reservada sobre a participação política dela.

Até que um dia uma equipe de TV apareceu na casa onde elas moravam.

[Gina] A gente ficou alvoroçada porque se prepararam para recebê-lo, recebê los. Aí era aquele tanto de fio, aquele negócio grande, luz. E eu não participei que eu fiquei até com medo, mas a Carla participou tem foto dela tudo. Mesmo naquela época a gente não tinha dimensão, não tinha um conhecimento da história, o papai nunca contou, ninguém nunca contou nada. Aí quando nós fomos… bem, bem mais velhas acho que foi no tempo de escola que aí veio: Celina, primeira eleitora do Brasil. Falei, cheguei em casa falei: "mãe! Vovó Celina foi a primeira eleitora?" Foi.

A Gina disse que mesmo assim, só muito tempo depois ela voltou a pensar nisso, e percebeu o que tinha sido o passo da avó. Não só pra Celina, mas pras mulheres que vieram depois dela —tipo a própria Gina.

[Gina] Aí eu falei: "nossa, mas ela foi bacana demais". E alguém me falou, falou: "Gina, sua vó é a primeira eleitora, que bacana!" E aquilo me fez procurar a história do que, quem que era. Foi legal demais. Aí eu fiquei orgulhosa.

Foi bem nessa hora que a Fernanda, a filha da Gina, chegou na conversa.

[Gina] Você quer Fernanda? Senta pra você contar a sua versão. Ah, pelada!

[Fernanda] Não, to de short, já to pronta pra ir malhar.

[Gina] Essa é a minha filha, essa é a Angela

[Fernanda] Prazer, Fernanda.

A Fernanda, que tem vinte e poucos anos, não chegou a conhecer a bisavó. Mas, um dia na escola dela, os coleguinhas dela começaram a falar sobre parentes famosos que eles tinham.

[Fernanda] E aí eu cheguei "mãe, a gente tem alguma coisa na família?" Ela falou assim: "Tem isso". Aí eu falei assim: "é mesmo? ". Aí eu lembro que eu falei no meu colégio e todo mundo ficou tipo assim de horror, falou assim "é mesmo?". Aí eu falei assim, é! E aí eu comecei pega viagem, pesquisar sobre, e aí depois de um tempo assim que eu comecei a dar importância principalmente pra política para começar a entender e ver de que lado estava, vamos dizer assim, que eu fui vendo "caramba, olha a diferença que ela fez".

Eu disse no começo desse episódio que faz 90 anos que as mulheres podem votar no Brasil e aí depois eu disse que a Celina pediu pra votar em 1927. Se você for uma ouvinte de exatas já deve ter percebido que tem uma coisa estranha aí, porque faz 95 anos que a Celina pediu pra votar.

Pra entender como essa conta fecha, a gente tem que voltar um pouco no tempo e dar um pulinho no Reino Unido. Mais especificamente, na cidade inglesa de Surrey, em 4 de junho de 1913.

Pesquisando sobre a história do voto feminino, eu encontrei o vídeo de uma corrida de cavalo. Ele é mudo, e o título vem escrito em inglês na tela: "O Derby de 1913: a corrida do começo ao fim e os incidentes do dia".

Pra quem não sabe (eu não sabia), derby é um tipo de corrida de cavalo. Nesse dia, o cavalo do rei George 5o estava competindo. E ele esá passando muito rápido numa curva quando de repente… acontece o tal "incidente do dia".

Nas imagens em preto e branco não dá pra ver exatamente como, mas o cavalo cai e duas pessoas rolam no chão. Uma delas é o jóquei, e a outra uma mulher de vestido branco.

Esse deve ter sido um dos primeiros protestos políticos filmados da história. A mulher de branco era uma sufragista —que é o nome pelo qual ficaram conhecidas as ativistas que lutavam pelo direito do "sufrágio feminino". Ou seja, do voto. Dizem que essa sufragista queria pendurar uma bandeira do movimento no cavalo do rei, mas o plano deu errado e ela acabou morrendo por causa dos ferimentos.

Talvez você já tenha visto imagens do enterro dela, porque essa é uma das cenas mais conhecidas da luta sufragista. As ruas de Londres foram tomadas por mulheres vestindo a mesma roupa que a ativista tava usando quando invadiu a corrida. O vestido branco transpassado por uma fita roxa no peito era a marca desse movimento.

E essa aqui era a líder delas.

[Emmeline] We women, in trying to make our case clear, always have to make as part of our argument and urge upon men in our audience the fact - a very simple fact - that women are human beings

Esse discurso é da Emmeline Pankhurst. A voz não é dela, porque enfim ela falou isso aí em 1913 e, se alguém gravou, o que é altamente improvável, o áudio não tá disponível em lugar nenhum da internet. Acredita, eu procurei. Quem tá falando é uma atriz, em uma leitura dramática feita pelo Norman Rockwell Museum em 2018.

A Emmeline era a fundadora de uma união que reunia mulheres que tinham perdido a paciência com o Parlamento britânico. Ela fez esse discurso alguns meses depois da morte da colega no derby, e o que ela diz é que a luta delas é uma guerra civil. E que toda vez que elas têm que argumentar com homens que o voto é um direito, elas precisam ficar lembrando que as mulheres também são seres humanos.

[Emmeline] But you cannot make omelettes without breaking eggs; you cannot have civil war without damage to something.

Quando fez o discurso, a Emmeline já tinha sido presa algumas vezes. Ela já tava bem de saco cheio de ser ignorada pelos políticos quando pedia o direito de votar. E isso era um problema meio do tipo ovo ou galinha. As mulheres querem votar, mas os políticos ignoram. Só que como elas não podem votar, não dá pras sufragistas elegerem outros políticos que vão ouvir os pedidos delas.

E aí, como é que faz? Já que a negociação não tava dado resultado, agora elas iam meter o louco.

[Mônica] Na Inglaterra teve aquela Suffragettes, que são as mais vamos dizer assim que pediram, de uma forma assim, mais agressiva que elas, realmente elas invadiram o espaço público no começo da década de 1910, elas quebravam vidraças, elas destruíam, destruíram artes. Elas chegaram inclusive a botar fogo na casa de um ministro.

Essa é a Mônica. Ela é historiadora e o sobrenome dela eu vou deixar ela mesma dizer, que é melhor.

[Mônica] Essa aí é a icógnita do ano. É Mônica Karawejczyk. Não te preocupa que ninguém acerta.

A Mônica, que tem esse sobrenome belarrusso trava-língua, pesquisa a história do voto feminino há mais de quinze anos.

[Mônica] Elas cortavam a comunicação do período que elas botavam bombas incendiárias no correio, nas caixas de correio, porque a caixa de correio do período, as cartas, era o WhatsApp do meu período, né? Então, imagina, né? Então cortavam fios de telégrafo. Elas realmente colocaram nesse espaço público de uma forma muito contundente.

Você talvez tenha estranhado por que ela falou em "sufragete" e não sufragista. Esse é um apelido pejorativo criado pra algumas mulheres consideradas radicais, como o grupo da Emmeline. A ideia era diferenciar um "mau feminismo" de um "bom feminismo" ---que seriam as sufragistas "de verdade". Tipo: ser feminista até pode, mas tem que pedir as coisas com jeitinho, né?

Num estilo falem bem ou falem mal, mas falem de mim, as táticas das suffragettes inglesas colocaram o voto feminino na boca do povo. E isso chegou também no Brasil.

Assim, não é que até essa época fosse tudo mato no movimento sufragista daqui. Ele já existia desde meados do século 19, mas não era organizado e nem tinha muita força. Algumas brasileiras já tinham pedido o alistamento eleitoral —que é tipo tirar o título de eleitor, só que tem que passar pra um juiz autorizar.

É que a Constituição de 1891 dizia o seguinte sobre quem podia votar: "são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei".

Alguns critérios excluíam grupos do conceito de "cidadão". Um deles era que pra votar, a pessoa tinha que ser alfabetizada —e boa parte da população não era.

Só que o veto aos analfabetos estava escrito na Constituição. O das mulheres não.

[Mônica] A Constituição de 1890 não restringiu para as mulheres aqui, não proibiu especificamente que as mulheres não poderiam votar na letra da lei só estava escrito que então quem poderia se alistar e votar eram cidadãos maiores de 21 anos. E é grande a grande argumentação que ficou em prol disso era se nesse termo os cidadãos brasileiros. Um dos eixos que começaram a girar então esses argumentos em prol do voto feminino no Brasil era essas mulheres seriam consideradas ou não cidadãos brasileiros.

E aí, nessa época, quem decidia se as mulheres eram consideradas "cidadãos" ou não era cada juiz, de cada comarca. Lembra daquele discurso da Emmeline, sobre ter que ficar lembrando os homens de que, alô, mulheres são gente? Pois é.

Mas ter uma ou duas mulheres que conseguissem votar pela via judicial não era suficiente. Desse jeito, o direito ao voto nunca ia chegar a uma quantidade grande de brasileiras, porque era um método complicado e que dependia da boa vontade dos juízes —que eram todos homens.

Então, no começo do século 20, algumas ativistas começaram a criar associações pra pressionar por uma mudança na lei. Foi mais ou menos nessa época que o bafafá das inglesas chegou na imprensa daqui. Bem quando uma mulher começava a se projetar como líder dessa primeira onda sufragista brasileira.

[Mônica] Bom, a Leolinda Daltro era uma professora baiana que se mudou no final do Império então para o Rio de Janeiro. A primeira grande batalha dela foi pela educação e depois ela é muito mais conhecida como indigenista também.

A Leolinda tinha uma proposta de educação laica pros indígenas, o que contrastava bastante com o que se fazia naquela época.

[Mônica] e foi por não conseguir então se colocar... não conseguir se colocar nesse espaço público com essas questões indígenas que ela estava muito presente para ela, que ela então começou a perceber então que enquanto as mulheres não tivessem direito a ter voz nesse espaço público e inclusive tendo essa questão da educação, trabalho, as pautas das mulheres nunca seriam e nunca iriam para frente.

Foi por causa disso que a Leolinda entrou de cabeça na luta pelo voto feminino. Pra ela, o voto não era um fim, era um meio. Um meio de conseguir se colocar no espaço público e ter alguma ingerência sobre como as coisas iam ser feitas.

Depois de quase uma década insistindo, em 1917 ela conseguiu fazer um deputado encampar a ideia e apresentar um projeto na Câmara. Mas ele não passou nem da primeira votação, porque foi considerado inconstitucional.

Do outro lado do Atlântico, no mesmo ano as coisas começavam a mudar.

Em 1918, as sufragistas conseguiram a primeira vitória: por 385 votos a 55, a Câmara dos Comuns aprovou uma lei que estendia pras algumas mulheres o direito ao voto.

E uma jovem brasileira acompanhava atentamente a movimentação. Quem vai ler é a Laila Mouallem.

[Laila] Sempre me interessei muito, porque quando estive na Inglaterra, antes da Guerra, vi a campanha feminista e achei muito interessante. Minha mãe não participava, mas eu disse que queria ir também. Ela disse: "Você não pode ir. Elas têm razão, mas você não pode ir porque não é inglesa e a campanha está muito braba, de vez em quando elas são presas. E você, como vai ficar?

Essa história é da Bertha Lutz e quem contou foi ela mesma numa entrevista pra Branca Moreira Alves nos anos 70. E a gente ainda vai conversar com a Branca aqui no podcast. Mas o que você precisa saber agora é que a Bertha Lutz foi uma das sufragistas mais importantes do Brasil, e com certeza a mais famosa.

A Bertha era filha de um médico brasileiro com uma enfermeira inglesa. Na adolescência, ela foi estudar no país da mãe, então ela viu bem de perto a Emmelinne e as amigas dela tacando fogo nas coisas, no olho do furacão da luta sufragista.

Quando a Bertha voltou pro Brasil, logo depois da vitória das inglesas, ela ficou escandalizada com a posição de cidadãs de segunda classe das brasileiras. Rapidinho ela se juntou a mulheres como a Leolinda Daltro no lobby sufragista. Pra conseguir o direito ao voto, elas precisavam mudar a Constituição.

Naquela época, pra uma emenda constitucional ser aprovada, ela precisava passar por três votações em cada uma das Casas do Congresso. Era bem difícil. Por isso, quase todos os projetos apoiados por elas morriam na praia, depois de uma ou duas votações.

Mas elas não desanimavam. E conseguiram mais um apoiador: o senador paraense Justo Chermont, que apresentou um projeto de lei estendendo o voto pras mulheres.

Esse projeto foi votado pela primeira vez em 1921, e a Leolinda e as aliadas dela baixaram lá no Congresso pra pressionar os parlamentares.

[Mônica] Elas foram assistir então os debates das cadeiras do Senado. E saiu isso bastante na imprensa, né? Elas foram lá e gritaram alto, em altos brados "viva o libertador do nosso sexo, viva!" Aplaudiram ele, fizeram a maior algazarra, inclusive no no auditório. Quando eles saíram, por exemplo, eles saíram do Congresso, elas atiraram flores neles.

Só que mesmo com essa festa toda no Congresso, a situação estava longe de ser fácil pra elas. As sufragetes inglesas tinham causado muito. Foi assim que elas venceram a luta por lá, mas isso teve um efeito colateral no Brasil.

Apesar de não usarem as mesmas táticas da Emmeline, a Leolinda e as aliadas dela acabaram mal vistas pela opinião pública. A Mônica chegou a escrever um artigo sobre a Leolinda chamado "A Sufragete dos Trópicos".

[Mônica] Esse tipo de feminismo dela ficou conhecido como o mau feminismo, porque ela se colocava nesse espaço público e ela também reivindicava esses direitos. Ela foi muito execrada no período. Ela foi chamada de mulher homem, mulher diabo, mulher com a voz do trovão, porque ela estava ali no espaço e não deveria estar ali, porque o ambiente público não é um ambiente propício para as mulheres. Ela chegou a receber a pecha de sufragete. Ela foi foi vinculada, então, com aquele feminismo mais militante, mais agressivo. Até por isso que as demandas dela também não foram bem, bem vistas no período.

Pra evitar seguir o mesmo caminho, a Bertha começou a tentar distanciar a imagem do movimento brasileiro das sufragistas britânicas incendiárias. Ela fundou uma organização chamada Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que juntou militantes de vários estados.

E, em vez de botar fogo em casas dos políticos, a Bertha começou a bater de porta em porta nos gabinetes deles.

[Teresa] Quando chega 1926, 1927, eles têm uma primeira conversa porque elas tinham criado a Federação Brasileira e tinham feito todo o caminho político para, enfim, se apresentar como as representantes do feminismo no Brasil.

Essa é a professora do departamento de história da Universidade de Brasília Teresa Cristina Novaes Marques. Eu procurei ela porque a Teresa é uma das maiores especialistas na história da Bertha.

[Teresa] E então elas eram um grupo de interesse. E o que... Como é que funciona o lobby? Você bate na porta dos parlamentares. Isso os papéis dela mostram muito, elas faziam lista, batiam na porta: "deputado, o sr. gostaria de conversar? Poderia nos dispor de alguns minutos e tal?" Elas fazem isso com todo mundo.

Foi fazendo isso que a Bertha conseguiu uma brecha no mundo político. Lá nos primeiros anos de lobby, ela tinha conhecido e se aproximado do Juvenal Lamartine, um político potiguar.

[Teresa] O Juvenal queria ter um mote que o projetasse como uma figura nacional. O que que acontece: a política na Primeira República ela tinha era um conflito, um atrito permanente entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas. Mas é um pouco mais nuanciado do que essa, a coisa do café com leite, porque havia alguns estados que às vezes entravam como terceiro elemento mediador. O Rio Grande do Sul sempre foi um estado importante nessa política e vez outra aparecia uma figura do Norte —chamava se Norte, Nordeste não se dizia— que apresentava como um nome alternativo.

E o Juvenal queria se projetar como esse cara, essa "terceira via", pra usar um termo que está na moda em 2022.

Além disso, ele era um cara razoavelmente progressista, que achava ridículo as mulheres não terem direito ao voto. Então, unindo o útil ao agradável, o Juvenal resolveu que ia fazer do Rio Grande do Norte pioneiro no voto feminino no Brasil. É aí que a gente chega na história da Celina, a primeira eleitora brasileira.

Em maio, eu peguei minha mala de mão, meu gravador —e também o meu tapete de yoga, que eu carrego pra todo canto— e fui pra Natal passar uns dias. Eu queria entender melhor os caminhos que levaram esse estado a ter tanto destaque nesse capítulo da história das mulheres brasileiras.

[Adriana] Isso veio através de uma legislação estadual. Em 1926, então, houve um projeto de lei aqui no Rio Grande do Norte, que foi enviado para sanção do governador do Estado na época, governador José Augusto, que falava sobre a capacidade eleitoral passiva, votar e ser votado. Esse projeto de lei já estava pronto, dizendo que no Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados os cidadãos e ele não tratava especificamente dessa matéria.

Essa é a juíza eleitoral Adriana Magalhães, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte. Ela está escrevendo um livro sobre a história das mulheres do estado.

[Adriana] Eis que Juvenal Lamartine, então, interfere nesse processo, enviando um telegrama ao governador do Estado, sugerindo, então, o acréscimo de um entre vírgulas que fez toda diferença. Aqui no Estado do Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, vírgula, sem distinção de sexo. Então essa locução "sem distinção de sexo" foi o que fez toda a diferença.

Quando a lei entrou em vigor, em 1927, a Celina e outras mulheres potiguares correram pras comarcas pra solicitar aos juízes o direito de votar. No mesmo dia que a Celina pediu o registro, outra professora fez a mesma coisa. O nome dela era Julia Alves Barbosa.

Ela era amiga da Bertha, e mais atuante no movimento sufragista do que a Celina. Só que o requerimento dela só foi aceito depois.

[Adriana] E um fato interessante é que houve esse alistamento de Júlia e de Celina Guimarães Viana. Celina, e esse é um fato bem curioso, Celina era casada, a Júlia Alves Barbosa não era casada. O pedido de ambas foi protocolado, o pedido para ser eleitora foi protocolado ao mesmo tempo, porém, pelo fato de Celina ser casada, Celina teve o seu pedido deferido mais rapidamente porque houve anuência do marido com o pedido.

O Elizeu, marido da Celina, era professor e um homem respeitado na cidade. Tem até quem diga que a Celina nem queria muito votar, e que ela só foi a primeira eleitora porque ele incentivou. As netas dela contestam essa versão.

[Carla] Eu acho que é aquela situação que junta a fome com a vontade de comer, né? Você tem duas pessoas, porque a minha avó até ela não era uma mulher fácil tranquila não, sabe? Ela era bem pra frente, como diriam, né?

[Gina] Arretada.

[Carla] Ela tinha vontade própria. Pelo que a minha mãe conta, assim, ela era uma pessoa que sabia o que ela queria queria, que ninguém... Ela não fazia o que as pessoas queriam, ela fazia… quando ela queria alguma coisa ela acabava conseguindo.

A vó Celina podia não ser a feminista mais atuante de todas, mas ela não estava nada quieta em casa não. Ela tinha sido, por exemplo, a responsável por implementar o futebol nas escolas de Mossoró.

[Carla] Os meninos e as meninas lá da escola que eles estavam lá em Mossoró queriam aprender futebol, porque começaram a falar do futebol e as regras do futebol estavam em inglês. E ninguém sabia direito as regras. Como ela lia em inglês, ele também, e acho que ele não estava… vovô não estava com muita vontade de fazer essa parte ele falou "ah, Celina faz isso aí" ensina as regras para eles. Então ela introduziu o futebol na escola lá em Mossoró.

O fato de a Celina ter sido apoiada e talvez até incentivada pelo marido também não serve pra cassar a carteirinha de feminista dela. No Brasil daquela época, as mulheres casadas precisavam de autorização do marido pra quase tudo, por causa do Código Civil de 1916. Estranho seria se a Celina tivesse conseguido votar contra a vontade do marido.

Além dela, um pouco mais de uma dúzia de mulheres tiraram o título naquele ano.

Uma foto da época mostra 15 eleitoras juntas. Metade está sentada, metade de pé atrás das cadeiras, tipo uma foto de turma de colégio. O retrato está em preto e branco, e todas as mulheres têm aquele cabelinho na altura da orelha, bem anos 20. A Celina está num dos cantos dessa foto usando um brincão e um colar imenso de pérolas, parecendo uma melindrosa.

Elas eram só um pouco mais do que o suficiente pra montar um time de futebol, mas criaram um baita rebuliço na República.

Por causa da confusão de ter uma lei estadual que diz uma coisa e uma lei nacional que diz outra, alguns senadores decidiram que era hora de votar um projeto que criasse uma regra igual pra todo o país. E as feministas queriam aproveitar a chance.

De novo, a professora Teresa.

[Teresa] O alistamento das mulheres do Rio Grande do Norte, toda essa farofa que se fez. Elas foram lá e tal, era levantar uma poeira para criar uma pauta de âmbito nacional. E funcionou muito bem. Elas foram lá, tiraram retrato, fizeram cartão postal daquilo e saíram distribuindo como parte da propaganda para poder criar um constrangimento quando o… a matéria subisse à Comissão de Justiça do Senado, os senadores, houvesse uma espécie assim de comoção com os meios que se dispunha na época.

A resposta do Senado não demorou. E foi um balde de água fria. Em dezembro de 1927, os senadores decidiram que não era a hora de levar adiante o tal projeto. Eles consideraram que não era urgente e oportuno debater o voto feminino naquele momento.

Alguns meses depois, em 5 de abril de 1928, aquelas poucas mulheres potiguares reconhecidas como eleitoras pelo estado brasileiro foram às urnas pela primeira vez. Só tinha um candidato, então ele ia ser eleito com ou sem elas. Mas era um gesto simbólico importante.

Só que o Senado tinha que validar os votos da eleição. E, de novo, eles não deram o braço a torcer. A Teresa explica:

[Teresa] Mas aí quando chega a 1928, os resultados dessa eleição aí extraordinária eles têm que passar por uma comissão interna do Senado. E que desconsidera, manda desconsiderar os votos daquelas… acho que eram 15. Não era muita, não. Tá? E sepulta.

A Bertha mandou um telegrama pra Julia Alves Barbosa, a professora que podia ter sido a primeira eleitora se não fosse solteira.

[Laila] Embora o Senado receasse declarar a vitória do feminismo apurando os votos dados aos senador José Augusto, a opinião pública em peso ficou do nosso lado, crescendo prodigiosamente o prestígio deste estado, do movimento feminista e do eminente presidente Juvenal Lamartine.

Só um parêntese: naquela época, os governadores eram chamados de "presidentes" dos estados.

Elas ficaram espumando de ódio. O que dava pra fazer, se todos os parlamentares eram homens e eles não achavam oportuno dar o direito de votar pra metade da população?

Ué. O mesmo que as inglesas tinham feito: causar. Só que em vez de tacar fogo no correio, elas decidiram criar controvérsias jurídicas, o que levava o assunto pra imprensa, onde vinha crescendo a simpatia pelo voto feminino.

Pra isso, elas começaram a usar a lei estadual do Rio Grande do Norte pra se alistar como eleitoras em outros estados. Como aí ficava a critério do juiz, algumas conseguiam, outras não. E ficava lançada a polêmica: as mulheres eram ou não cidadãs brasileiras?

Elas causaram tanto que em 1930, ou seja, dois anos antes de o direito ao voto ser estendido pra fora do Rio Grande do Norte, já tinha eleitoras reconhecidas em 10 estados.

Quando parecia que o movimento estava cada vez mais forte e que uma hora o Congresso ia ter que ceder, vem a notícia —aqui, na voz do Maurício Meireles.

[Maurício] Diário de Notícias - Rio de Janeiro, terça-feira, dia 4 de novembro de 1930. A Junta Provisória empossou ontem o Dr. Getúlio Vargas no cargo de chefe do governo da República.

Chega um novo regime na capital. As forças políticas que assumem o poder derrubam vários eleitos. Entre eles, muitos aliados das sufragistas.

Como, então, o voto feminino acabou instituído por esse mesmo regime, dois anos depois? Por que, finalmente, chegou a vez das mulheres nas pautas dos homens da República?

Isso a gente explica semana que vem, no próximo episódio do Sufrágio.

Mas antes de terminar esse aqui, eu queria voltar rapidinho pras netas da Celina. Eu ainda estava cismada com essa coisa de saber ou não saber quem foi a primeira eleitora da minha família. E eu fiquei pensando se isso importa. Se conhecer essa história realmente importa. E perguntei pra elas.

[Carla] Minha vó foi a primeira a ter conta no banco na cidade de Mossoró. Foi a primeira mulher. Então eu que eu fico pensando assim a gente sempre acha que é uma pessoa muito importante que está muito longe da gente, você tem que estar em outro patamar você tem que ser um ser superior para você fazer alguma mudança. Né? E eu acho que o que mais me toca nessa história da vovó é que eu era uma mulher normal que nem nós assim, uma mulher que simplesmente quis fazer as coisas. Né? Ela quis ter conta no banco, conseguiu ter a conta no banco, ela quis votar ela votou. Eu fico: o que que a gente quer? O que eu vou fazer?

O Sufrágio é um podcast da Folha realizado com o apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting. Eu sou Angela Boldrini, e a idealização, pesquisa, reportagem e roteiro são meus. A produção é da Jéssica Maes e da Laila Mouallem, e a edição de som é da Laila. Você ouviu a voz dela neste episódio também. A coordenação é da Magê Flores, que também editou o roteiro deste episódio, junto com o Maurício Meireles. O Maurício também fez a narração do trecho do jornal Diário de Notícias. A identidade visual é da Catarina Pignato, e a divulgação é feita pelo Naná DeLuca e pelo Mateus Camillo. A gravação foi feita no estúdio Madruga, em Brasília.

Este episódio usou áudios da Jovem Pan, Globonews, Rádio Câmara e do British Film Institute.

A gente agradece às professoras Teresa Cristina Novaes Marques, Monica Karavaitiki e Udymar Pessoa pela consultoria histórica, e à Andréia Araújo da Nóbrega, que fez a voz da Celina Guimarães Viana.

O segundo episódio sai na próxima quinta. Enquanto isso, aproveita pra seguir o podcast e dar uma nota pra gente. Até semana que vem!

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