Talvez a maior especificidade do avanço ultraconservador no Brasil tenha sido o engessamento do principal partido da social-democracia. Se os trabalhistas britânicos lançaram as bases de uma refundação e os socialistas franceses entraram em via de extinção, o PT continua tendo a maior bancada, mas segue avesso a qualquer tipo de renovação. É o pior dos dois mundos.
A história contará como a atual cúpula petista manipulou um drama nacional --a detenção da maior liderança da era democrática-- e deslegitimou a campanha do seu maior agente renovador, Fernando Haddad, para assegurar a sua sobrevivência.
Os líderes do Congresso Nacional Africano, referência mitológica dos dirigentes do PT, jamais se esconderam entre as pernas de Nelson Mandela. A identidade do partido sempre foi maior do que a do seu símbolo, tendo sido possível substituí-lo sem perder força política. Décadas se passaram desde a presidência de Madiba, e o CNA continua um viveiro de lideranças.
Para o campo progressista, a consequência mais imediata da obtusidade burocrática foi a de juntar a ofensa à derrota histórica e às angústias sobre o que vem pela frente. Especificamente, a ofensa de ver os dirigentes apresentarem, na sua primeira missiva pós-eleitoral, uma visão que glorifica o seu próprio desempenho e coopta os eleitores não petistas, essa coalizão heteróclita e improvável de psolistas a tucanos cujos apelos por uma maior abertura foram rigorosamente desdenhados durante a campanha.
Soma-se a ofensa de ver pavonear figuras ultrapassadas como José Dirceu que, em recente entrevista, ousou falar de “nós”, como se tivesse um resquício de autoridade para palpitar sobre o futuro.
A ofensa maior que representa a ida da presidente do partido à posse de Nicolás Maduro é o sinal que faltava para uma insurreição dos progressistas.
Ao aterrissar em Caracas, Gleisi Hoffmann realiza a fantasia daqueles que buscam por todas as formas etiquetar o PT como antidemocrático, agrava o distanciamento com a social-democracia europeia --unânime na condenação do regime de Maduro-- e relembra aos brasileiros que o partido continua refém da sua ala mais sectária. A ida a Caracas será lembrada como o ponto de ruptura dos atuais dirigentes com todos os princípios que nortearam a história do partido.
Numa palestra a poucas semanas da eleição, Márcio Pochmann, entre uma sonolenta digressão sobre a burguesia industrial e uma delirante interpretação da reforma da Previdência, comoveu-se com o destino do Partido Socialista Francês, obrigado a vender a sua sede depois da debacle de 2017.
A sede do PT continua de pé --mas a que custo? Os atos e declarações recentes dos dirigentes são mais uma camada de cimento que fazem dessa sede um bunker em que ninguém entra-- e as rachaduras, cada vez maiores, tornam o risco de desabamento iminente.
MATHIAS DE ALENCASTRO é doutor em ciência política na Universidade Oxford e colunista da Folha
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.