Descrição de chapéu Lava Jato

Dinheiro da Lava Jato banca reforma em escolas e cria fundo anticorrupção

Investigação aposta em 'legado permanente' e refuta crítica de excesso de protagonismo, prometendo governança aos recursos

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Curitiba

De uma joalheria para uma escola em São Gonçalo (RJ). Esse foi o atípico percurso feito no ano passado por recursos recuperados na Operação Lava Jato —e que deverá ser seguido por outros milhares de euros, dólares e francos suíços em breve.

Prestes a completar cinco anos, a investigação que desnudou um esquema de corrupção na Petrobras e em outros entes públicos pelo país se prepara para criar um inédito e bilionário fundo anticorrupção, a ser investido em projetos de educação, cidadania e transparência.

Dinheiro apreendido pela Polícia Federal em maio de 2017 na Operação Patmos
Dinheiro apreendido pela Polícia Federal em maio de 2017 na Operação Patmos - Reprodução

Em paralelo, outros recursos recuperados em delações, acordos de leniência e multas judiciais foram aplicados na reforma de escolas públicas no Rio, num formato que se estuda replicar pelo país.

"Serão milhões de reais por ano. É um legado permanente", afirmou à Folha o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal do Paraná.

No total, a Lava Jato estima já ter recuperado pelo menos R$ 3 bilhões até aqui, entre valores repatriados, multas e recursos devolvidos por delatores e empresas.

No Paraná, a Procuradoria é a atual curadora dos valores que darão origem ao bilionário fundo anticorrupção. O primeiro aporte foi feito em janeiro: foram R$ 2,5 bilhões pagos pela Petrobras, como parte de um acordo da estatal com o Departamento de Justiça americano.

O dinheiro deve render cerca de R$ 160 milhões por ano. Metade dos valores irá para eventual ressarcimento de investidores da Petrobras que acionem a estatal na Justiça.

A outra metade será administrada por uma fundação independente, a ser formada por membros e entidades da sociedade civil, que farão a seleção de projetos anticorrupção a serem financiados.

O formato não é convencional na Justiça brasileira. Mas é uma prática comum —e com bons resultados— em outros países, diz o diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão.

"É uma novidade no Brasil, mas não é uma novidade fora", afirma, citando o caso da multinacional alemã Siemens, que, após ter admitido desvios pelo mundo, foi obrigada pela Justiça a fazer investimentos em políticas anticorrupção em vários países. 

O fundo da Lava Jato, estabelecido em acordo entre a Petrobras, o Ministério Público Federal e o Departamento de Justiça americano, pode bancar ações "que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção".

Entram na lista estudos sobre transparência, programas voltados a populações afetadas pela paralisação de obras da Petrobras e até a reparação de direitos afetados pela corrupção, inclusive difusos, como saúde, educação e meio ambiente.

É algo semelhante ao que já ocorreu no Rio de Janeiro, onde parte dos valores recuperados pela força-tarefa da Lava Jato foi direcionada à segurança pública e à reforma de seis escolas estaduais com graves deficiências estruturais.

No caso das escolas, a iniciativa foi concebida pela procuradora da República Maria Cristina Manella Cordeiro, especializada em educação, que idealizou a parceria entre o Ministério Público e o governo estadual. Os R$ 19 milhões investidos vieram de multas pagas por diretores da joalheria H. Stern, que fizeram delação premiada.

"É uma nova forma de atuar. Em vez de ficar correndo atrás do prejuízo, a gente previne", disse Manella à Folha.

As iniciativas também coincidem com críticas ao chamado ativismo judicial, quando o Judiciário extrapola suas competências e se imiscui na atividade de outros poderes.

Os procuradores refutam a acusação e afirmam que continuam cumprindo seu papel de defender os interesses da população. "A gente tem que saber até aonde ir. A escolha das escolas a serem reformadas, por exemplo, partiu da secretaria da Educação, para não invadir a competência do poder público", afirma Manella.

Para o juiz Marcelo Bretas, que autorizou a aplicação dos recursos, a iniciativa está "em total consonância" com a lei, que estabelece que multas compensatórias por crimes com vítimas indiretas podem ser destinadas a entidades públicas ou privadas com atuação social.

No Rio de Janeiro, a ideia ainda está em execução: para assegurar a lisura dos investimentos, o termo de cooperação técnica, assinado um ano atrás, exigiu a licitação de projetos executivos, que ficaram prontos recentemente.

Só agora vai começar a licitação das obras, num processo fiscalizado pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). "E o risco de dar essa verba ao estado, para depois desviarem tudo de novo?", comenta a procuradora. "A gente tinha que dar transparência a esses recursos."

No caso do fundo bilionário, a governança será feita por uma fundação. O MPF articula a criação da entidade, em parceria com outros órgãos do poder público e da sociedade civil, num processo a ser homologado pela Justiça.

O termo de acordo prevê a consulta de pelo menos cinco entidades para a indicação de nomes à fundação, a criação de um conselho fiscal, a vedação a qualquer membro com atuação partidária e a prestação mensal de contas.

"A crítica [de exacerbação do papel do judiciário] seria razoável se o Ministério Público determinasse, de maneira discricionária, o destino dos recursos. Mas não é isso que está acontecendo", diz Brandão. "Eles não estão se apropriando dos recursos; estão envolvendo para a sociedade."

Para ele, todos os fundos públicos, em especial os que congregam recursos judiciais (de multas, acordos ou indenizações, por exemplo), deveriam seguir o mesmo formato.

"Da forma como é hoje, esses fundos acabam sendo contingenciados para fazer superávit", afirma. "Há um descontrole muito grande; há pouquíssima transparência ou governança."

A parceria para as reformas de escolas no Rio, por exemplo, já foi replicada na Procuradoria de Goiás, e deve ser estendida a outros estados.

Outras organizações também defendem a iniciativa.

"É um recurso que volta à sociedade em forma de prevenção, que cria uma cultura da integridade", afirma Roni Enara, diretora-executiva do Observatório Social do Brasil.

"Onde começa a corrupção? Começa com pequenos desvios que são tolerados pela população. A gente precisa falar na ponta, e precisa de investimento para isso", diz.

A fundação que irá administrar o fundo bilionário da Lava Jato ainda está em criação. O Ministério Público Federal estima que esse processo dure até meados deste ano.

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