'Vai haver guerra', afirma 'guardião' sobrevivente de ataque em terra indígena no MA

Laércio Guajajara vive sob proteção do estado em casa em local não divulgado

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Maranhão

Sobrevivente do ataque a tiros no dia 1º de novembro na terra indígena Arariboia, no Maranhão, o “guardião da floresta” Laércio Guajajara, 34, está sob proteção do governo estadual em uma casa numa cidade maranhense.

Ele tem uma bala alojada no corpo, que entrou pelo braço direito e parou perto da clavícula esquerda. Laércio disse à Folha que vai haver “guerra” se a Justiça não tomar providências para conter a invasão da Arariboia.

Indígenas Paulo Paulino (à dir.) e Laércio Guajajara, baleados por invasores da Terra Indígena Arariboia em 01.11.2019, no Maranhão
Indígenas Paulo Paulino (óculos escuros) e Laércio Guajajara (camisa amarela), baleados por invasores da Terra Indígena Arariboia. Paulo não sobreviveu. - Scott Wallace

O indígena Paulo Paulino, 26, também integrante do grupo de fiscalização “Guardiões da Floresta”, foi assassinado com um tiro no ataque de novembro. Além dele, morreu a bala o não indígena Márcio Gleik Moreira Pereira, 37 —as circunstâncias das mortes estão sendo apuradas pela polícia.

Laércio narrou à reportagem sua trajetória e a situação tensa na região. A pedido dos indígenas, a Folha não revela o paradeiro dele, que está sob proteção estadual.

Nasci na aldeia do Funil, em Arariboia. Tenho três filhos, o mais velho com 15 anos e o mais novo com 7 anos.

Eu tinha uns 16 anos quando ocorreu o assassinato do cacique Tomé [por madeireiros]. Eu não tinha muito interesse em lutar, mas depois que houve isso, os caciques se reuniram e me deu uma vontade de ajudar também na proteção da terra.

Eu via a exploração da terra. Muito caminhão saindo com madeira, com estacas, muita destruição. Numa das aldeias, quando meu pai me levou para lá pela primeira vez, era uma floresta alta, a gente quase não enxergava o céu. E eu fui me sentindo mal com aquilo, estavam acabando com tudo.

Quando começaram os “guardiões”, em 2013, eu me senti forte. Já estava com idade para lutar. Desde o início já começaram as ameaças. Participei da primeira ação dos "guardiões". Ocorreu depois que a gente foi à Funai pedir para eles nos ajudarem a defender a terra. Aí algum deles lá falou que a nossa terra "não tinha mais jeito", que era para nós "largar de mão porque já era considerada perdida".

Foi quando a gente ficou com muita raiva e decidiu que ia mostrar que na nossa terra também tinha guerreiro e não ia ser perdida como eles estavam dizendo. Eles falavam que não podiam ajudar porque tudo mundo lá era vendedor de madeira, que todo mundo era traficante, era tudo que não prestava. Até as crianças. Isso deu muita raiva e nós decidimos por conta: "nós vamos limpar essa terra".

A primeira ação foi nas aldeias Mucura e Bacabal, ao mesmo tempo. Pegamos dois caminhões. No primeiro dia quase teve conflito porque eles queriam partir para cima da gente. Não tínhamos estrutura nenhuma. Chegamos a pé e numas motinhas velhas. Éramos apenas seis no máximo.

O Paulino também começou nesse dia. Quando abordamos os caminhões, ele chegou. Ele era muito criança [cerca de 15 anos] mas chegou com flechas e todo pintado. Não precisou chamar nem convidar ele. Ele já teve essa atitude de guerreiro desde menino e desde então nunca mais se separou da gente. Eu também estava com flecha, borduna, espingarda.

A minha vida de lá para cá mudou muito. Não tive mais liberdade para nada, nem de sair do território. A gente evita sair, é ameaçado de morte. Sempre que um índio procura defender sua terra, vai ser procurado até ser morto pelos pistoleiros.

Eu terminei o segundo grau, mas aqui não tem curso superior perto. Eu não tenho renda. Vivo da roça, do braço, eu mesmo planto e colho. Crio galinha, porco, junto com os parentes, planto arroz, milho, mandioca, fazemos farinha. É assim que crio minha família.

Mesmo depois de tudo o que ocorreu, eu jamais vou parar. Nós sempre falamos que nunca vamos desistir. Mesmo que alguém morra, nós nunca vamos parar. Porque a nossa terra não vai acabar e a vida dos nossos parentes não vai acabar. Tem que lutar até quando Deus quiser. Para tentar ao menos amenizar a destruição do nosso povo. 

O que vai acontecer daqui para frente é que vai piorar ainda mais. Se a Justiça não tomar de conta. Porque mais uma vida de um guerreiro foi matada dentro do território por defender a terra. Isso traz muita revolta para nós. Se não tiver Justiça, nós vamos continuar a guerra mesmo se matando com os brancos.

Isso não vai acabar se a Justiça não tomar de conta. Vai é piorar mais. Acho que vai ter uma guerra no futuro com o branco. Porque nós não vamos entregar nossa terra para eles destruírem. E eles não vão querer desistir de roubar o que é nosso. A tendência é piorar mais se ninguém intervir nessa exploração do território.

Comigo eu não temo tanto. Já morreu um companheiro perto de mim, agora tanto faz eu morrer, ser matado. Eu me preocupo mais com a minha família, que fica na aldeia, meus irmãos, que não têm nada a ver com essas coisas.

A gente tem medo até da própria Justiça. Porque a gente luta pelo nosso direito, mas a corrupção é muito grande e eles podem querer inverter contra nós, dizer que nós é que somos bandidos. Como já aconteceu.

Eu já fui preso por defender a terra. Passei quase um mês preso na cadeia de Amarante [em 2016]. Quase um mês preso por expulsar caçador do território. Eles deram parte de mim dizendo que nós assaltamos eles, tomamos as coisas deles. E aí no final nós é que fomos [considerados] bandidos, que "nós sequestramos, torturamos eles". Aí a Justiça mandou me prender. Por defender nossa terra, nosso direito.

Foi uma tentativa de acabar com o grupo. Fizeram essa denúncia falsa contra nós. Depois fizeram uma assembleia dentro da terra indígena para destituir o [coordenador] Olímpio, espalharam fake news, vinha história de todo canto.

Se a Justiça não tomar as providências, é se preparar para a guerra. Porque não vai ter outro caminho. Se preparar para se defender. Eu acho é que eles querem acabar com os "guardiões" para deixar a terra livre para eles. Porque matando alguns, eles querem meter medo nos outros que ficaram.

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