Juiz das garantias é como dizer que erramos todos esses anos, diz presidente da AMB

Para Renata Gil, da Associação dos Magistrados do Brasil, figura fere a Constituição

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São Paulo

Em 11 de dezembro passado, a juíza Renata Gil tornou-se a primeira mulher a presidir a AMB (Associação dos Magistrados do Brasil), uma das principais entidades de defesa da categoria.

Não houve, porém, tempo para celebração. Ao assumir o posto, Renata Gil já teve que assumir a frente de uma disputa importante para a categoria.

A AMB entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contestando a criação da figura do juiz das garantias, um dispositivo aprovado na lei anticrime que prevê que os processos criminais passarão a ter um juiz para a fase de investigação e outro que será responsável pelo julgamento dos casos.

A motivação para a criação do instituto é reforçar a imparcialidade do julgamento

"O escopo do juiz de garantias é garantir essa imparcialidade. O problema é a forma como esse juízo de garantias se apresentou", diz Renata Gil. "E dizer que há parcialidade durante todos esses anos é a mesma coisa que dizer que todos esses anos nós erramos, fomos contaminados pelas provas", diz a presidente da AMB.

Renata Gil, primeira mulher eleita para presidir a Associação dos Magistrados do Brasil
Juíza Renata Gil, primeira mulher eleita para presidir a AMB (Associação dos Magistrados do Brasil) - Raquel Cunha /Folhapress

A AMB e a Ajufe entraram com ação no STF contra a criação dos juízes das garantias. Por quê? Porque  fere a Constituição tanto de forma formal como materialmente. E o ponto mais importante dessa inconstitucionalidade material é o fato de que a Constituição toda se baseou, quando trata do juiz, no princípio da unicidade do juiz natural. Quando a lei cria o juiz garantias, ela trabalha com o princípio de binariedade, então seriam dois juízes naturais, o que não foi feito [em] nenhuma outra legislação no país ainda.

Este tratamento nunca foi concebido em nenhuma outra área de atuação jurisdicional. Não existe duplicidade de juiz na área tributária, não tem na área cível, não tem na área empresarial. A lei criou essa binariedade somente na competência penal e a prova disso é que no artigo quinto da Constituição, quando se fala em violação ao sigilo individual, a única exceção é que seja em caso de investigação criminal e instrução criminal e há uma menção a um único juiz.

Há juízes que dizem que a nova figura fere as prerrogativas dos magistrados. Quando se fala em violação da prerrogativa, se fala em violação da prerrogativa constitucional. A gente tem lá na Constituição que o juiz tem três grandes prerrogativas: a inamovibilidade, a vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos. O ponto principal é a inamovibilidade, porque você acaba tirando um juiz que estaria numa comarca para cobrir esse outro juiz das garantias pela ausência de número suficiente de magistrados no país para aplicação desta lei. 

A OAB diz que o modelo dos juízes das garantias é adotado em outros países. São modelos diferentes do  adotado no Brasil. Tanto é assim que na reforma do Código de Processo Penal, 10 anos atrás, o modelo de juiz de garantias não tinha atribuição de recebimento da denúncia. Isso era relegado ao juiz da instrução do processo. Isso é uma alteração muito significativa desse sistema.

E também não existia a possibilidade de revisão das medidas cautelares pelo juiz da instrução. Então a lei, de forma incongruente, determina uma revisão por juízos que têm a mesma hierarquia, o que viola todo o sistema constitucional brasileiro. São juízes de mesma hierarquia, um revisando a decisão do outro. E o mais incrível: esse juiz revisor não tem acesso às provas que o juiz que deferiu as decisões cautelares teve, porque ele é impedido pela própria lei de ter esse acesso, sob pena de eventual contaminação, que é o grande mote desta lei, a contaminação do juiz de instrução.

Um exemplo usado para defender a viabilidade dos juízes das garantias é o Dipo, em SP, que adota sistema semelhante. Isso não mostra que é viável a instituição de juízes das garantias no resto do país? Nem Dipo e nem Gabriela Hardt (que atua em parceria com Luiz Bonat em processos da Lava Jato, em Curitiba) são casos de juiz de garantias. Porque no Dipo o juiz toma as medidas cautelares e envia todo esse material para o juízo originário, o juiz da instrução, o juiz natural da causa.

E no caso da Gabriela existe apenas uma designação para que ela funcione. Isso é comum no país inteiro em varas que têm processos de grande volume de réus, de grande volume de instrução, há uma designação, um suporte ao juiz natural da vara. 

O principal argumento para a criação dos juízes das garantias é o de garantir a imparcialidade do julgamento. O que a senhora pensa disso? O escopo do juiz de garantias é garantir essa imparcialidade. O problema é a forma como esse juízo se apresentou. É um modelo absolutamente diverso. E dizer que há parcialidade durante todos esses anos é a mesma coisa que dizer que todos esses anos nós erramos, fomos contaminados pelas provas.

A instituição dos juízes das garantias pode atrasar os processos? Pode atrasar e dou um exemplo meu. Eu sou juíza criminal no Rio de Janeiro na 40ª Vara Criminal da capital, no prédio do tribunal. Os processos todos no Rio de Janeiro são físicos, os criminais.

Como o juiz de garantias, ou eu —não sei se serei eu a juíza da vara ou a juíza de garantias, ou se será um juiz designado para isso, porque a gente ainda não tem essa definição nos tribunais brasileiros. Quando eu receber esse processo, eu vou receber por um malote, se eu for a juíza da instrução. Isso vai demorar algum tempo. Antigamente eu mesma recebia a denúncia, eu mesma processava aquele feito.

Faltam juízes no Brasil para implantar esse novo sistema? No Brasil faltam aproximadamente 4.400 juízes de acordo com o último “Justiça em Números”, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, que é um relatório sobre os números da Justiça. Como é que eu vou duplicar a função do juiz criminal de garantias? 

Haverá aumento de custos do Judiciário? Há aumento de custos porque é necessário que você faça deslocamentos de magistrados, deslocamentos de processos, criação de novas serventias. Quando a lei impede que o juiz da instrução visualize os autos do processo do juiz de garantias, ela cria uma serventia separada do juiz de garantias. Então, por certo eu vou precisar de servidores para cuidar dos processos, instalações, salas para esses processos. Tudo isso é um aumento de despesas.

Vinte por cento das comarcas têm apenas um juiz. Mas defensores da nova lei dizem que pode haver colaboração entre juízes das comarcas vizinhas. Isso é viável? É esse compartilhamento que a lei previu através de uma palavra que ela entabulou de rodízio. Nós não sabemos o que a lei quis dizer com rodízio. E nós tememos que essas designações de substitutos firam o princípio da inamovibilidade. Porque efetivamente você não pode criar substituições permanentes. As substituições na Justiça brasileira são sempre em caráter temporário para atender a alguma exigência de um fato concreto. Neste caso, pela falta de juízes, você criaria uma substituição permanente. Então a gente entende que o compartilhamento genérico é indevido. É inconstitucional.

A tecnologia, com processo eletrônico, com videoconferência, não pode ajudar? Por mais que eu tenha um processo eletrônico que seja encaminhado imediatamente para este outro juiz, nós temos que este outro juiz não poderia estar acumulando genericamente essas funções como a lei pretendeu. A lei cria dois juízes, mas quer deixar um mesmo juiz cuidando das coisas. Ele vai cuidar da vara dele mais a vara do outro. Ou você tem uma binariedade de verdade, criando realmente outros juízos, ou você tem apenas uma ficção para atender a esse comando legislativo.

RENATA GIL, 48

  • Formada em direito pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
  • Especialista em segurança pública formada pela UFF (Universidade Federal Fluminense)
  • Juíza há 21 anos, tendo atuado por quase todo período na área criminal
  • Representante da Justiça estadual na Enccla (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro). É presidente da Amaerj (Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro) e vice-presidente Institucional da AMB
  • Eleita há duas semanas, assume o cargo de presidente no dia 11 de dezembro
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