Inquérito das fake news no STF abre precedente perigoso para liberdade de expressão, diz pesquisadora

Clarissa Gross afirma que discursos contra ministros do Supremo, mesmo que usem linguagem de ameaça, não necessariamente devem ser proibidos e punidos

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São Paulo

O inquérito das fake news instaurado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) abre um precedente perigoso e pode ter como possível efeito a dissuasão da participação das pessoas no debate público, afirma a professora Clarissa Piterman Gross, coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da FGV Direito SP.

Em entrevista à Folha, ela critica a falta de delimitação do objeto do inquérito. "É o tribunal responsável pelas defesas dos direitos fundamentais e constitucionais dos indivíduos no Brasil, dentre eles —e muito importante— a liberdade de expressão, e se permite a uma atuação de investigação sem contorno, com possíveis efeitos de dissuasão ao exercício da liberdade de expressão pelos cidadãos."

Clarissa Gross diz que discursos contra ministros do STF, mesmo que usem de linguagem de ameaça, não necessariamente devem ser punidos.

"A meu ver, depende do contexto, o que quero dizer com isso? A ameaça tem que ser crível. Ela tem que ser feita por alguém num contexto que traga indícios que a pessoa de fato terá condições de tomar medidas para impedir o exercício da magistratura pelos ministros do STF."

Para ela, inclusive discursos que defendem o fechamento do Supremo deveriam ser protegidos pela liberdade de expressão. "Por mais que elas não tenham o direito de implementar, eu acho que elas têm o direito de defender essa ideia."

Mulher branca, cabelos castanhos claros com comprimento um pouco abaixo dos ombros, sorri levemente para a câmera. Ao fundo se vê dois prédios e a copa de árvores.
Clarissa Piterman Gross, professora e coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da FGV Direito SP - Arquivo pessoal

Em seu voto quanto à continuidade do inquérito, o ministro Alexandre de Moraes disse que não se podia confundir críticas ácidas com agressões, ameaças e coações. É possível estabelecer critérios objetivos de quando a livre manifestação ultrapassa os limites legais? Eu acho que o ministro Alexandre de Moraes diria que toda a expressão que utilizar palavras cujo sentido do dicionário remeter a uma ameaça vai constituir uma ameaça punível e que é objeto de proibição, ou seja, que pode ser restringida.

Por exemplo, se alguém escreve: 'Cuidado, ministros do STF, como vocês vão se comportar em relação a uma ação x. E a depender do que fizerem, nós vamos derrubar vocês'.

Isso tem linguagem de ameaça? Tem linguagem de ameaça. Constitui uma ameaça que pode ser de fato proibida e punida pelo direito? A meu ver, depende do contexto, o que quero dizer com isso? A ameaça tem que ser crível. Ela tem que ser feita por alguém num contexto que traga indícios que a pessoa de fato terá condições de tomar medidas para impedir o exercício da magistratura pelos ministros do STF.

Ela simplesmente esbravejar, por exemplo, em rede social, não configura uma ameaça punível pelo direito. Eu acho que isso continua sendo um exercício da liberdade de expressão.

Qualquer crítica ao Supremo e a seus ministros é um ataque antidemocrático à instituição? Não. Eu acredito inclusive que discursos que defendem o fechamento do STF devem ser protegidos pela liberdade de expressão. [Mas] eu não acho que as pessoas têm direito de tomar ações concretas para impedir o trabalho dos ministros do STF. Ou violar a integridade física dos ministros ou a integridade da instituição, da infraestrutura do STF, do seu prédio, dos seus arquivos. Isso as pessoas não podem fazer.

Mas defender a ideia de que elas acreditam que o STF não deveria existir, ou que uma corte constitucional não deveria existir, ou que essa corte constitucional não deveria existir, por mais que elas não tenham o direito de implementar, eu acho que elas têm o direito de defender essa ideia.

Os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, do Supremo
Os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, do Supremo - Pedro Ladeira/Folhapress

A defesa dessa ideia não seria contrária ao Estado democrático de Direito? A defesa da ideia apenas não me parece atentar contra o Estado democrático de Direito. A defesa pura e simples dessa ideia. Eu acho que existem outros contraexemplos muito evidentes que nos ajudam a entender esse ponto.

Por exemplo, o Manifesto Comunista, que é um texto muito conhecido, traz ideias de convocação dos trabalhadores a uma revolução proletária, muitas das teses do comunismo são pela instauração da ditadura do proletariado.

Outro exemplo: muitos de convicção anarquista acreditam que o Estado não deveria existir, que a própria existência da estrutura de um Estado —democrático ou não— viola direitos morais das pessoas. Essas ideias circulam no debate público, e nós as protegemos. Não nos passaria pela cabeça banir, por exemplo, a edição e a publicação de novas edições do Manifesto Comunista.

Me parece que a defesa de convicções que contrariam a tese de base do Estado democrático de Direito não viola por si só esse Estado democrático de Direito e o seu funcionamento. A proteção da liberdade de advogar por essas ideias faz parte da liberdade de expressão em um Estado democrático de Direito.

Iniciativas como a do inquérito das fake news podem fazer com que as pessoas pensem duas vezes antes de fazer críticas a qualquer um dos Poderes? Me parece que sim, esse tipo de iniciativa pode levar a um efeito de dissuasão da participação das pessoas do debate público. Acho que hoje, no Brasil, ninguém pode contar, com segurança, com a proteção das suas prerrogativas de expressão no debate político acirrado, inflamado.

Há muita dúvida a respeito de quais são os limites dessa liberdade, acho que é uma liberdade muito mal tratada e que ela funciona de maneira informal. Ou seja, as pessoas se pronunciam de diversas formas e contam com a informalidade, com a falta de iniciativa daqueles sobre os quais elas falam para tomar medidas judiciais para calá-las.

O inquérito das fake news recebeu críticas desde sua instauração. Cabe ao Supremo investigar esses ataques à corte? À primeira vista, o inquérito tem dois problemas. Primeiro de competência, o dispositivo do regimento interno do STF fala de competência para instauração de inquérito de crimes que tenham sido cometidos na sede e nas dependências do tribunal. Não me parece que seja o caso. Entender esses atos discursivos como crimes que poderiam ser investigados a partir desse dispositivo é estressar demais, e de forma indevida, o significado do dispositivo.

Outro aspecto é a falta de delimitação do objeto do inquérito. Ele tem um objeto muito amplo, fala de existência de notícias fraudulentas, denunciações caluniosas, ameaças e infrações e determina abertura do inquérito para investigação dos fatos e infrações em toda sua dimensão. Ou seja, não especifica o conjunto de fatos específicos que serão objetos da investigação. Isso para mim, a princípio, é um problema porque uma investigação criminal implica certas intrusões a alguns direitos e prerrogativas individuais como direito de privacidade e de sigilo.

O inquérito então abre precedente perigoso pensando na liberdade de expressão? Eu acredito que sim. É o tribunal responsável pelas defesas dos direitos fundamentais e constitucionais dos indivíduos no Brasil, dentre eles —e muito importante— a liberdade de expressão, e se permite a uma atuação de investigação sem contorno, com possíveis efeitos de dissuasão ao exercício da liberdade de expressão pelos cidadãos. Coloca um mau exemplo para as demais instituições encarregadas das atividades de investigação e persecução penal.

Está em debate no Congresso um projeto de lei para combater as chamadas fakes news. É possível fazer isso sem prejudicar a liberdade de expressão? Um ponto que é pouco discutido, mas que é central, é que protegemos uma série de conteúdos falsos e achamos que eles fazem parte do debate público. Um exemplo é o discurso religioso em algumas de suas instâncias. O discurso que diz que a terra é plana, ou que a mulher foi criada da costela de Adão. São conteúdos falsos, mas não passa pela cabeça de ninguém que esses conteúdos pudessem ser banidos do debate público. Então a gente precisa aprofundar um pouco mais a reflexão sobre o que de fato faz sentido proteger a título de desinformação. Não me parece que possa fazer uma correspondência simples entre desinformação e conteúdo falso.

Raio-X

Clarissa Piterman Gross, 34
Professora da FGV Direito SP, coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da FGV Direito SP, membro do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), doutora em direito pela USP, mestre em direito e desenvolvimento pela FGV e graduada em direito pela UFMG

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