Senado adia votação diante de divergências em projeto de lei sobre fake news

Texto prévio de relatório, divulgado durante a madrugada, cria 'score chinês' e pede CPF em redes sociais

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São Paulo e Brasília

O projeto de lei sobre fake news foi retirado da pauta da sessão virtual do Senado desta terça-feira (2) após horas de discussão nos bastidores em relação a mudanças feitas no texto original.

A decisão pelo adiamento foi anunciada por um dos autores da proposta, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), após um acordo com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

O motivo, segundo Vieira, foi um atraso na finalização do relatório, que está sendo construído pelo senador Angelo Coronel (PSD-BA), presidente da CPMI das Fake News. A expectativa é que o tema volte à pauta no próximo dia 10.

Alvo de críticas de entidades progressistas, de empresas e de aliados do governo do presidente Jair Bolsonaro, o projeto vinha sendo desidratado. Pontos sensíveis, classificados de censura pelos críticos, foram retirados.

Pela madrugada, um esboço do relatório circulou entre os parlamentares, mas foi duramente criticado, especialmente pelos autores do projeto em trâmite no Senado.

De autoria de Angelo Coronel, o texto incorpora críticas recebidas em consulta pública e altera uma série de pontos considerados preocupantes por organizações ligadas a direitos na internet.

Senador Angelo Coronel (PSD-BA); ele preside a CPMI das Fake News
Senador Angelo Coronel (PSD-BA); ele preside a CPMI das Fake News - Edilson Rodrigues/Agência Senado

“O texto que circulou na madrugada não tinha condições de ser votado. Mudou muito do que estamos propondo, impossível ser colocado em votação daquela forma. Conversamos com o relator, e agora ele vai ter mais tempo de fazer as mudanças”, afirmou Vieira.

A minuta de relatório de Coronel exigia documentos de identificação para cadastro em redes sociais, como CPF e RG, e permitiria que delegados de polícia ou membros do Ministério Público requisitassem a provedores de aplicações de internet, como redes sociais, essas informações.

Também criava um “sistema de pontuação das contas de usuários” com base, entre alguns pontos, no “histórico de conteúdos publicados”. Chamado de "score chinês" por críticos ao projeto, ele deve ser eliminado pelo próprio autor.

A redação original do projeto foi apresentada em duas frentes: na Câmara, pelos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), e no Senado, por Alessandro Vieira. O texto avançou no Senado e foi modificado nos últimos dias, após críticas de organizações da sociedade civil, de aliados do governo e de empresas de tecnologia.

Também nesta terça, Tabata e Rigoni retiraram o projeto anterior e apresentaram nova versão.

A ideia do texto é que pessoas que financiam redes de robôs ou contas falsas que cometem crimes como difamação em redes sociais sejam enquadradas nas leis de organização criminosa (12.850/2013) e de lavagem de dinheiro (9.613/1998), que preveem penas de 3 a 10 anos de prisão.

A minuta do senador Angelo Coronel, que causou polêmica durante a madrugada, estipulava que contas na internet tivessem verificação da identidade de seu responsável. Ele exigia cópia de documento de identificação com foto, cópia do CPF ou CNPJ e de comprovante de endereço.

“Os provedores de aplicação [como redes sociais] deverão manter banco de dados com todas as informações e documentos utilizados na identificação de suas contas”, dizia a minuta.

Para especialistas, isso burocratiza o acesso às redes e fornece a empresas privadas mais dados além dos que elas já coletam.

"Agregar CPF, RG e endereço é temerário porque piora o conjunto de dados que as grandes empresas têm. Faz com a rede social o que o Nubank, por exemplo, faz para abertura de contas bancárias. É uma medida inédita e, no limite, pode ser vista como um tratamento de usuários como potenciais criminosos, além de burocratizar o acesso", diz Bruna Martins dos Santos, analista de políticas públicas na organização Coding Rights.

A ideia de incluir CPF em cadastros não é nova, ronda o Legislativo desde a promulgação do Marco Civil da Internet, em 2014.

"É uma proposta zumbi, cria mais problemas do que soluciona. A identificação real na internet gera um ambiente muito propício para a vigilância absoluta", diz Danilo Doneda, professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público).

Sobre o sistema de pontuação, o texto de Coronel dizia que o provedor de aplicação, como redes sociais e outros sites, deve manter um banco de dados com tempo desde a abertura da conta, "manifestações dos demais usuários", histórico de conteúdos publicados e de reclamações registradas.

“É uma mistura do sistema de score da China com um episódio de "Black Mirror" [que mostra uma sociedade distópica de vigilância]. O texto não foi modificado, ele foi reescrito, desconsiderando o funcionamento de serviços de internet e padrões de regulação internacional”, diz Pablo Ortellado, doutor em filosofia, professor da USP e colunista da Folha.

Em entrevista à Folha antes do adiamento da pauta, o senador Angelo Coronel afirmou que esse ponto seria revisto. A identificação por documentos, entretanto, tende a ser mantida.

"Se não colocar identificação, continuam as fake news. A própria rede vai ter um campo para que ele [usuário] se cadastre. Com isso, você evita a proliferação de pessoas que usam rede social de forma criminosa", afirmou o senador.

Nos casos de investigação criminal, a polícia hoje persegue o conteúdo até chegar no IP, o que na visão do senador é insuficiente. "Estou na CPMI das Fake News há seis meses. A gente pede e as empresas não dão. Dizem que estão regidos pelo MLAT", lembra Coronel.

MLAT é a sigla para tratado de assistência jurídica mútua, acordo vigente entre Brasil e Estados Unidos que determina os procedimentos para obtenção de comunicação privada de empresas estrangeiras no país.

Além dessas mudanças, o texto propunha que empresas de tecnologia com mais de 2 milhões de usuários não pudessem fazer moderação de conteúdo e retirá-los de forma automática. Hoje, o Facebook barra publicações de cunho pornográfico ou com violência visual explícita.

Ficaria vedada a exclusão de conteúdo promovido por uma conta identificada —ou seja, de uma pessoa que deu seu CPF e RG— sem ampla defesa. A redação também alterava o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que versa sobre censura.

Pelo Marco Civil, as plataformas devem retirar um conteúdo da rede mediante decisão judicial. O relatório prévio sobre fake news determinava que uma simples ação na Justiça já seria suficiente para o banimento.

"Estamos estudando a parte do Marco Civil. Vou manter como está no Marco Civil", disse Coronel à Folha.

Especialistas também afirmam que a minuta dava espaço para bloqueios de aplicações como os registrados nos últimos anos, quando a Justiça determinou a suspensão do WhatsApp. Na semana passada, o STF (Supremo Tribunal Federal) adiou o julgamento sobre esses casos.

A Coalizão Direitos na Rede divulgou nota assinada por 35 entidades e empresas, como Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), ITS-Rio, Facebook, Fercomércio-SP e ISOC Brasil, afirmando que a votação às pressas do projeto sobre fake news coloca em risco a liberdade de expressão online.

"Em um contexto em que o Senado realiza deliberações por meio do sistema remoto, sem a existência de comissões, o debate aprofundado sobre o tema se mostrou comprometido desde o início", diz a nota.

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