O preenchimento de cargos e o descongelamento de gastos com remuneração de juízes e servidores esvaziam a promessa de criar sem custos extras mais um Tribunal Regional Federal no país.
Um projeto de lei pronto para ser votado no Congresso prevê a criação em Minas Gerais do TRF-6, tribunal de segunda instância que funcionaria apenas para casos deste estado. Em plena pandemia, a proposta tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados.
A proposta é de autoria do STJ (Superior Tribunal de Justiça), sob a liderança do presidente da corte, ministro João Otávio de Noronha, que é mineiro, aliado do presidente Jair Bolsonaro e um dos cotados para a próxima vaga para o STF (Supremo Tribunal Federal).
Noronha foi o responsável pela controversa decisão de conceder prisão domiciliar na semana passada a Fabrício Queiroz, amigo do presidente Bolsonaro e pivô das investigações em torno do esquema de "rachadinha" no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio.
A previsão é que esse novo tribunal federal seja instalado na estrutura onde hoje funciona a sede da Justiça Federal, em Belo Horizonte.
Um dos argumentos dos defensores do projeto é o de que a verba para preencher os cargos do TRF-6 já está indicada na previsão orçamentária da Justiça Federal e, por isso, o tribunal não trará novos custos. Esse valor, porém, hoje não é desembolsado, uma vez que se refere a postos vagos na Justiça Federal.
Além dos custos, críticos ao projeto dizem que o novo tribunal pode ser alvo de tentativas de ingerência de políticos locais, por abranger só um estado —será o único TRF com essa característica no país.
Ao serem criados 18 cargos de juízes, esses postos do TRF-6 poderão ser preenchidos de uma vez com nomeações de um único presidente da República, hoje Bolsonaro, a partir de listas preparadas por Judiciário, Ministério Público e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Os tribunais regionais federais julgam em segunda instância os recursos nos processos de competência da Justiça Federal. Em geral, os casos mais complexos e com repercussão interestadual relativos a corrupção, lavagem de dinheiro e improbidade administrativa tramitam nessas cortes.
Hoje, os recursos da Justiça Federal mineira são encaminhados para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), com sede em Brasília e responsável também por julgar em segundo grau as ações oriundas de outros 12 estados e do Distrito Federal.
O TRF-1 é o que tem maior volume de trabalho por magistrado. São mais de 26 mil ações para cada juiz federal. Desse montante, 35% correspondem ao estado de Minas Gerais. Os dados são do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ.
Em seguida, por esse critério, aparece o TRF-3, que engloba os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, que contabiliza 14 mil processos por magistrado.
Os juízes do TRF-4, que compreende os três estados do Sul, têm 12 mil processos cada um. O TRF-2 (Rio de Janeiro e Espírito Santo) e o TRF-5 (responsável por cinco estados nordestinos) têm respectivamente 6.000 e 7.000 processos para cada magistrado.
Em meados de maio, o projeto de lei para a criação do TRF-6 estava pronto para ser votado, mas líderes partidários pediram adiamento para julho ou agosto.
O motivo oficial foi aprofundar a discussão sobre o projeto, mas, como pano de fundo, há a polêmica de se criar um tribunal no momento em que o país enfrenta uma pandemia e uma profunda crise econômica. O projeto foi enviado à Câmara pelo STJ em novembro passado.
Apesar de a discussão sobre a criação de novos TRFs se arrastar desde 2013, quando uma emenda constitucional sobre o tema foi aprovada pelo Congresso, os deputados adotaram regime de urgência para tramitação desse projeto.
Este ganhou o apoio imediato da bancada mineira no Congresso e rapidamente foi aprovado pelas comissões temáticas.
Segundo o pesquisador Bernardo Buta, membro do grupo de pesquisas em administração da Justiça da UnB (Universidade de Brasília), o novo tribunal demandará um gasto anual de cerca de R$ 30 milhões com despesas que não estavam sendo executadas, já que havia cargos vagos.
Serão criados 18 cargos de juiz de tribunal, 44 cargos de analista judiciário e 74 cargos em comissão, cujos recursos viriam de extinção de cargos vagos, diz Buta.
Segundo o pesquisador, dados importantes não foram levados em consideração no projeto. “Valores discriminados nos anexos do projeto não estão anualizados e não consideram as despesas com férias, décimo terceiro e contribuição para o plano de seguridade social”, diz Buta. “É apresentado apenas o valor da remuneração mensal."
Uma das críticas à proposta é a ex-ministra do STJ e ex-corregedora do CNJ Eliana Calmon. Hoje advogada, ela também já foi juíza do TRF-1 e depois colega de Noronha no STJ.
Ela diz que, nos últimos anos, vários projetos de ampliação do TRF-1 enfrentaram forte movimento de oposição por parte de Noronha e acabaram barrados. “Ele [Noronha] é mineiro e tem o orgulho de criar um tribunal na terra dele e ver as pessoas que ele quer bem, as pessoas com que ele tem relação, todas num tribunal que ele poderia chamar de seu.”
Eliana diz que a proposta envolveu a aproximação de Noronha com o presidente Bolsonaro e a atuação do bloco de partidos conhecido como centrão.
“Agora tudo indica que ele [Noronha] conseguiu se aproximar do presidente e, num momento de fragilidade do presidente, conseguiu o apoio da bancada mineira, para os mineiros se juntarem com centrão, e desta forma ser possível a aprovação do tribunal de Minas”, afirma a ex-corregedora nacional.
A cientista política e professora da USP Maria Tereza Sadek, especializada em pesquisas sobre o funcionamento do Poder Judiciário, critica o uso de recursos para o tribunal neste momento.
“Por mais louvável que seja, por mais que facilite o desempenho e o acesso ao Judiciário, nesse momento a prioridade é a questão da pandemia. O Estado é um só e, neste momento, não cabe pensar em nada que não seja essa prioridade, que é absoluta”, diz Maria Tereza.
Entidades de juízes federais defendem a proposta, repetem o discurso do custo zero e dizem que a judicialização crescente, sobretudo com a pandemia, faz necessária a nova estrutura.
Segundo Ivanir Ireno, presidente da Ajufemg (Associação dos Juízes Federais de Minas Gerais), o acréscimo de custo está devidamente autorizado na lei orçamentária anual e pertence ao próprio orçamento da Justiça Federal.
O ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), foi das poucas vozes contrárias entre os magistrados.
“A instalação do TRF-6 durante a pandemia é inoportuna”, disse o ministro. Ele ressaltou que o preenchimento dos novos postos levará a gastos. “Mesmo mantido o orçamento, prover novos cargos implicará aumento de despesa durante a crise."
Para Eliana Calmon, o problema do congestionamento do TRF-1 poderia ser resolvido sem a criação do TRF-6. “O aumento do número de membros do TRF-1 seria o ideal, o suficiente para resolver o problema. Há um acúmulo de trabalho que vem há muitos anos. A criação desses tribunais regionais é muito mais política do que funcional”, afirma.
O vice-presidente da Anafe (Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais), Rogério Filomeno, não se opõe à criação do TRF-6, mas diz que há várias alternativas para desafogar os tribunais.
“Você tem como descentralizar as varas, tem mecanismos de remanejamento de territorialidade e outros mecanismos para ajudar o Brasil inteiro, adequando estruturas e diminuindo custos."
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