Índice ideológico orientou ajuda dos EUA a governadores para desestabilizar Jango

Livro de historiador da USP reconta, com base em documentos inéditos, tentativa de interferência na política brasileira no início dos anos 1960

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Porto Alegre

Governadores receberam ajuda financeira para desestabilizar a gestão do presidente João Goulart (1961-1964), o Jango, com base em um “índice ideológico”.

Financiamentos e doações orquestradas pelos Estados Unidos usavam como critério sete categorias elaboradas pela embaixada americana no Brasil em 1962.

O índice tipificava os governadores como: comunista ou criptocomunista; companheiro de viagem ou inocentes úteis; esquerdista ultranacionalista; reformistas radicais não comunistas; centristas; conservadores; e extremistas de direita.

Uma oitava categoria, “outros”, servia para os políticos que não se encaixassem nas sete anteriores.

O índice ideológico integra documentação descoberta pelo historiador e professor da USP Felipe Pereira Loureiro.

A pesquisa, que levou mais de oito anos, agora é publicada no livro “A Aliança para o Progresso e o Governo João Goulart: Ajuda Econômica Norte-Americana a Estados Brasileiros e a Desestabilização da Democracia no Brasil Pós-Guerra” (editora Unesp).

Presidentes John F. Kennedy e João Goulart, nos EUA, em 1962
Presidentes John F. Kennedy e João Goulart, nos EUA, em 1962 - Abbie Rowe - 03.abr.62/Casa Branca

Jango sofreu um golpe em 1964, que deu início à ditadura militar que duraria até 1985. Então vice-presidente, em 1961, Jango assumiu a Presidência com a renúncia de Jânio Quadros.

Ele sofreu uma tentativa de um primeiro golpe, para que não assumisse o cargo. Jango tomou posse graças à campanha da legalidade, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, a partir da capital gaúcha.

Entre a documentação estudada, Loureiro localizou correspondências entre embaixada e consulados com discussões sobre em quais categorias os governadores deveriam ser enquadrados.

“O principal argumento é que os partidos não adotavam claramente as divisões ideológicas e que o governo norte-americano precisava de uma régua mais precisa para saber quem eram os políticos inimigos, os adversários ou confiáveis. Esse termo, inimigo, aparece com alguma frequência nas correspondências. Mostra um tipo de interferência muito extrema”, afirmou à Folha o pesquisador.

O governador que mais recebeu ajuda foi Carlos Lacerda (41%), da Guanabara, classificado como reformista radical não comunista. Lacerda foi seguido por José de Magalhães Pinto (11%), de Minas Gerais, marcado como centrista, e Ademar de Barros (9%), de São Paulo, como conservador.

Os três conspiraram contra Jango —Magalhães Pinto, enquanto tramava para derrubar o presidente, chegou a escrever inúmeras cartas a Jango pedindo favores.

Para Loureiro, é curioso que Lacerda tenha sido classificado como um reformista. “É verdade que, quando se olha os discursos, ele retoricamente se dizia favorável à educação básica, a reformas mínimas no que se refere a tributos. Mas, de forma prática, ele pouquíssimo avançou."

De acordo com o historiador, o principal objetivo da ajuda financeira dos EUA aos governadores, por meio do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), era fortalecer uma oposição política a Jango tendo em vista a eleição presidencial marcada para 1965. Naquele momento, o golpe ainda não era a saída.

“O principal objetivo era moderar Goulart. Políticos como Lacerda, Magalhães e Ademar de Barros podiam influenciar deputados e senadores dos seus estados. Assim, o presidente era obrigado a negociar com essas forças, que dificultariam a implementação de uma agenda radical”, diz Loureiro.

Jango era um fazendeiro rico e, embora tivesse o plano das Reformas de Base, que incluía a reforma agrária, não era ideologicamente comunista, sendo alinhado ao trabalhismo. Antes de ser presidente e vice-presidente, ele foi ministro do Trabalho (1953-1954) durante o governo de Getúlio Vargas.

A reforma agrária era, inclusive, uma das pautas da chamada Aliança para o Progresso, programa de ajuda econômica dos Estados Unidos para a América Latina lançado pelo presidente John Kennedy em 1961.

O propósito da Aliança para o Progresso era colaborar com o desenvolvimento desde que cumpridas contrapartidas como reformas socioeconômicas e manutenção de regimes democráticos.

A Revolução Cubana, em 1959, impulsionou os Estados Unidos a agirem na América Latina. Para Loureiro, é como se os EUA tivessem feito uma autocrítica sobre como agiram com Cuba, onde alimentaram o regime do ditador Fulgêncio Batista e a desigualdade se manteve.

Assim, para impedir que mais revoluções ocorressem no continente, Washington concluiu que era preciso mudar de estratégia e tentar diminuir a pobreza.

Mais desigualdade seria um prato cheio para o tão temido comunismo. Por isso, a Aliança para o Progresso levaria investimentos privados para os países latino-americanos.

Nesse sentido, o Nordeste brasileiro reforçou o receio de que uma revolução popular poderia começar por ali.

“O Nordeste foi simbólico. Um conjunto de reportagens de fôlego, do jornalista Tad Szulc, em 1961, no New York Times, apresentou à sociedade norte-americana a pobreza endêmica, a fome, a desnutrição e, ao mesmo tempo, a organização das Ligas Camponesas”, diz Loureiro.

Havia o medo de que o Nordeste se transformasse em uma Cuba, mas com bases continentais. A Aliança para o Progresso agiu, porém, diretamente com os governos estaduais a partir do índice ideológico.

Durante a gestão Jango, o governo federal não recebeu nenhum empréstimo do BID —exceto para empresas com atuação no Nordeste. Porém, em 8 de abril de 1964, apenas oito dias após o golpe militar, o BID aprovou um empréstimo de US$ 3 milhões para o Banco do Brasil.

Nos oito meses seguintes, o BID aprovou para o governo militar um montante equivalente a 48,3% do valor total para estados e organismos regionais durante os três anos de governo Goulart.

Sobre o curto intervalo após o golpe, quando o BID começa a liberar empréstimos para o governo federal, Loureiro escreve no livro: “Diante disso, fica difícil argumentar que o BID teria formulado políticas de empréstimo com base em questões puramente técnicas: nenhum novo governo, por mais eficiente que fosse do ponto de vista técnico em comparação a um governo anterior, conseguiria imprimir sua marca na administração federal tão rapidamente”.

Índice ideológico dos EUA para categorizar políticos brasileiro em 1962

Comunista ou Criptocomunista
Aqueles que forem identificados com alto grau de certeza (>90%) seja como filiados ao Partido Comunista Brasileiro, seja como seguidores consistentes da ideologia marxista-leninista

Companheiro de viagem ou inocentes úteis
Esquerdistas radicais ou esquerdistas ingênuos (dupes) que, na prática, seguem a linha do Partido Comunista

Reformistas Radicais Não-Comunistas
Defensores de reformas sócioeconômicas básicas, sem serem críticos aos EUA e e sem seguirem os comunistas

Centristas
Liberais e reformistas moderados que, apesar de adotarem uma retórica pró-reformas de base, na prática não estão engajados em executá-las

Conservadores
Aqueles que resistem a mudanças, incluíndo grande parte da elite econômica nacional (industriais, grandes latifundiários, chefes políticos tradicionais)

Extremistas de direita
Reacionários que pretendem liderar ou não se oporiam a uma ditadura militar de direita no Brasil

Outros
Todos os que não se encaixam nas categorias anteriores

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