Como dizer que a Constituição não diz o que diz?
Essa parece ser a pergunta essencial que ronda o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de reeleição de presidentes da Câmara do Senado.
Afinal, o texto constitucional que está sob análise do Supremo é bem claro. O parágrafo 4º do artigo 57 diz que, no primeiro ano da legislatura (período de quatro anos), deputados e senadores elegerão as respectivas mesas diretoras —e, nelas, a presidência de cada uma das casas legislativas— “para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
Ainda que não pairem dúvidas sobre o texto constitucional, o Supremo foi instado pelo PTB a declarar inconstitucional qualquer outra interpretação que não a óbvia que proíbe a reeleição de presidente da Câmara e do Senado em uma mesma legislatura. O debate dividiu o Supremo.
Porém, ainda que seja óbvia e literal a vedação constitucional à reeleição de presidentes da Câmara e do Senado em uma mesma legislatura, o Supremo dirá o oposto.
Por enquanto, cinco ministros do Supremo Tribunal Federal, além da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União, entendem que a Constituição não diz o que diz.
O relator, ministro Gilmar Mendes, desenvolveu para isso um voto com uma série de razões: em um primeiro momento, argumentou que a norma que proíbe a reeleição não é cláusula pétrea, ou seja, a vedação à reeleição poderia se transformar em permissão, sem com isso gerar qualquer afronta aos princípios democráticos e republicanos.
Depois argumentou que a emenda constitucional nº 16, ao instituir a possibilidade de reeleição para cargos do Executivo, passou a exigir uma harmonização com demais regras constitucionais, de forma a rebalancear as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo.
E, por fim, defendeu que algumas normas constitucionais, sobretudo aquelas que se referem à organização interna dos Poderes, devem ter “plasticidade” para permitir novas interpretações e privilegiar as práticas institucionais sobre a literalidade constitucional.
Essa posição entende que a Constituição não veda a possibilidade de uma (e apenas uma) reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado, independentemente da legislatura, se os parlamentares assim desejarem.
Há uma única divergência estabelecida nesta posição, entre os ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques, reside no momento para observar essa nova orientação.
Para Gilmar, em razão da anterioridade eleitoral, a possibilidade de uma (apenas uma) reeleição será aplicada a partir da próxima legislatura. Até lá, Câmara e Senado poderiam promover novas reeleições, sem observar esse limite.
Para Nunes Marques, o limite de uma reeleição valeria desde já. Na prática, trata-se sobre a possibilidade de Maia e Alcolumbre, ou apenas este último, reelegerem-se, respectivamente, presidentes da Câmara e do Senado.
De outro lado, três ministros votaram pela inteligência literal da Constituição. O julgamento tem previsão de término em 14 de dezembro.
Até lá, outras divergências ou mudanças nos votos ainda podem acontecer. Caso o julgamento assim se consolide, os efeitos práticos não serão desprezíveis.
A presidência das casas legislativas controla a agenda de grande parte do que é votado na Câmara e no Senado. Em especial, a presidência da Câmara é responsável, sozinha, por segurar ou fazer avançar os pedidos de impeachment contra Bolsonaro.
É verdade, não é a primeira vez que o Supremo altera o sentido literal da Constituição. Assim o fez, inclusive, em relação a normas de direitos fundamentais, cláusulas pétreas. Neste mesmo ano de 2020, o Supremo julgou que a redução de salários poderia ser feita por acordos individuais entre trabalhadores e empregadores, ainda que a Constituição exija convenção ou acordo coletivo (art. 7º, VI).
Nos últimos anos, o Supremo entendeu possível a prisão após condenação em segunda instância, ainda que a Constituição exija o esgotamento de todos os recursos (art. 5º, LVII) e também achou viável suspender o mandato parlamentar como medida cautelar penal, mesmo com a Constituição vedando a prisão de parlamentares justamente para preservar o mandato (art. 53, §2º).
Em todos esses julgamentos, havia uma razão não jurídica a justificar o abandono do texto da Constituição: ora foi preciso “salvar a economia”, ora foi preciso “ouvir o clamor das ruas”.
Agora, parece que é preciso “salvar a governabilidade” e o “padrão civilizatório” do Parlamento. Ouvir o direito e salvar a Constituição ficaram para depois.
O Supremo parece se afastar daquilo que justamente lhe dá autoridade: sua adesão à Constituição e a coerência de seus votos.
O maior impacto desse julgamento parece ser a resposta dada, mais uma vez pela suprema corte do país, de que simplesmente não importa o que a Constituição diz.
O que a Constituição diz sobre o caso
Veto à recondução
O artigo 57, no parágrafo 4º da Carta Magna, afirma: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
A atual legislatura começou em fevereiro de 2019 e se estenderá até fevereiro de 2023
Julgamento no STF
A corte começou a decidir na sexta-feira (4) se permite a reeleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, e de Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado.
A simpatia de ministros com a postura dos dois nos enfrentamentos do presidente Jair Bolsonaro com o STF, mudanças constitucionais recentes e as articulações políticas nos bastidores têm alimentado a esperança de ambos de continuarem à frente do Congresso.
Gilmar Mendes (relator), Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes votaram a favor da recondução dos dois. Kassio Nunes, que assumiu vaga na corte neste ano, após indicação de Bolsonaro, defendeu a possibilidade de reeleição apenas de Alcolumbre. Eles defenderam que a reeleição pode ser autorizada por mudança no regimento, “questão de ordem” ou “qualquer outro meio de fixação de entendimento próprio à atividade parlamentar”.
Já Marco Aurélio defendeu a proibição, assim como as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber.
O julgamento poderá se estender até o próximo dia 14. O processo, porém, ainda pode ser retirado da pauta online se qualquer ministro indicar preferência em analisar a questão em sessão presencial, atualmente realizada por videoconferência. Caso isso ocorra, a matéria vai para as mãos do presidente da corte, ministro Luiz Fux, que deve escolher uma data para análise no plenário físico
Visão do Planalto
A decisão do Supremo em relação à possibilidade de reeleição aos comandos da Câmara dos Deputados e do Senado também será acompanhado de perto pelo Planalto.
O governo simpatiza com a manutenção de Alcolumbre à frente do Senado, mas trabalha para eleger Arthur Lira (PP-AL), réu no Supremo sob acusação de corrupção passiva, e derrotar Maia ou o candidato apoiado por ele para presidir a Câmara dos Deputados
Posição da PGR e da AGU
Em parecer de setembro enviado ao Supremo, a Procuradoria-Geral da República, comandada por Augusto Aras, alinhado a Bolsonaro, defendeu que a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado é um assunto a ser tratado pelo próprio Legislativo.
A Advocacia-Geral da União, ligada ao governo Bolsonaro, tem o mesmo posicionamento, expresso em documento também de setembro deste ano.
A leitura política é a de que, com isso, o governo federal acenou positivamente à recondução de Alcolumbre ao comando do Senado
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