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Prisão de jovem após postar sobre Bolsonaro é precedente perigoso apoiado em lei retrógrada, dizem advogados

Especialistas criticam ação da polícia contra jovem que comentou em rede social sobre visita do presidente

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Belo Horizonte

A prisão de um rapaz em Uberlândia (MG) na quinta-feira (4) após um comentário em rede social sobre a visita do presidente Jair Bolsonaro à cidade é incorreta e abre precedentes perigosos, segundo cinco professores de direito ouvidos pela Folha.

João Reginaldo Silva Júnior, 24, foi preso com base em artigos da Lei de Segurança Nacional, criada em 1983, no fim do período do regime militar.

Ele foi identificado pelo serviço de inteligência da Polícia Militar de Minas Gerais e teve auto de prisão em flagrante lavrado pela Polícia Federal depois de publicar em seu perfil no Twitter a mensagem: “Gente, Bolsonaro em Udia (Uberlândia) amanhã...Alguém fecha virar herói nacional?”.

O rapaz se referia à visita que Bolsonaro fez ao município do Triângulo Mineiro na manhã de quinta, antes de seguir viagem para Goiás. A região vive crise na saúde devido à pandemia da Covid-19. Com alvará da Justiça, João Reginaldo obteve liberdade provisória no final da tarde de quinta.

Para a PF, a conduta do jovem esteve enquadrada nos crimes previstos nos artigos 22 e 23 da Lei de Segurança Nacional, por “fazer propaganda” e “incitar” a prática de crimes contra a integridade física e a vida do presidente da República.

A PF instaurou inquérito sobre o caso e segue investigações em relação à conduta de outros usuários da rede social que comentaram na publicação feita por ele. Um deles escreveu que o “presidente voltaria para casa em um caixão” e que não se tratava de “ameaça, mas comunicado”. Outra usuária escreveu “né possível que não tem um sniper nessa cidade”.

Twitter - Reprodução

O professor da Faculdade de Direito da USP Gustavo Badaró diz que, embora algumas das respostas à mensagem publicada pelo jovem tangenciem a incitação ao crime, ele não vê no caso prática de incitação concreta.

“É errado enquadrar qualquer dessas condutas na Lei de Segurança Nacional e a mensagem desse rapaz que foi preso não me parece que caracterize nem propaganda nem incitação à prática de crimes previstos na lei”, afirma.

“Isso é perigoso porque não separa a crítica legítima, correta a quem gere a coisa pública, de uma eventual prática de crime, que não deveria ser enquadrada na LSN.”

Badaró defende há anos que os crimes previstos na LSN são incompatíveis com a Constituição Federal de 1988, criada cinco anos depois dela. Ao contrário da Constituição, que aceita pluralismo político, diz ele, a Lei de Segurança Nacional visa punir quem era contrário ao regime vigente.

“A lógica dela é que todo mundo que se insurge ou critica o poder instituído está fazendo isso para subverter aquela ordem. Regime ditatorial não aceita crítica”, explica.

Para Helena Lobo da Costa, também professora da Faculdade de Direito da USP, a Lei de Segurança Nacional, gestada no período de transição entre a ditadura e o regime democrático, é problemática e já deveria ter sido substituída. “É uma lei que tem uma raiz autoritária em todos seus artigos, sobretudo na parte penal”, afirma.

Sobre o caso em Uberlândia, ela enxerga ainda problemas técnicos na prisão do jovem, como o flagrante, por uma publicação que havia sido realizada um dia antes.

"O que eu questiono na conduta desse rapaz é o que a gente chama de idoneidade lesiva, a capacidade da conduta lesar ou colocar em perigo o bem jurídico que é protegido por aquela lei. Qual a possibilidade real de um tuíte como esse levar a praticar uma tentativa ou um homicídio consumado contra o presidente da República? Tem mais característica de brincadeira, crítica, do que de incitação em si”, avalia.

Para Rubens Glezer, professor de direito da FGV, o contexto envolvendo o jovem, que tinha cerca de 150 seguidores na rede social, também deveria ser levado em consideração na avaliação do caso. Ou seja, o quanto seria crível que ele teria condições de exercer ou incentivar ameaça ou levar outras pessoas a praticá-la.

“Não é a palavra em si, como no caso da ofensa, mas o contexto é crucial na construção desse sentido”, analisa ele.

Glezer diz ainda que vê uma falsa simetria entre o caso de Uberlândia e a prisão, em fevereiro, do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que é investigado em dois inquéritos do STF (Supremo Tribunal Federal) e também foi preso com base em artigos da Lei de Segurança Nacional após ataques aos ministros da corte.

“Nós nunca tivemos uma esfera pública que exigiu um discurso político que tivesse que ser polido para ser lícito, para não ser crime. O próprio presidente da República. Você colocar uma régua mais alta para as pessoas comuns do que para os próprios agentes públicos é complicado”, afirma.

Outra professora de direito da FGV, Raquel Scalcon diz que vê coerência entre a situação da prisão do deputado e a do jovem de Uberlândia. Para ela, o STF legitimou a prisão ocorrida no interior de Minas com a interpretação anterior no caso de Silveira. O uso da lei, que é produto de um período autoritário, diz ela, é bastante perigoso no contexto atual.

“O que vai ser grave ameaça em rede social se as pessoas falam impulsivamente o que vem à mente? Ainda mais quando há possibilidade de duplo sentido. Temos um problema de contexto também”, diz.

Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP, também diz que não vê no caso do jovem de Uberlândia uma situação de ameaça —que consistiria na promessa de um mal grave, factível, a uma pessoa, através da palavra—, mas um comentário jocoso, feito por um rapaz sem condição de provocar qualquer dano ao presidente. Ele questiona, por exemplo, o fato de Bolsonaro não ter deixado de cumprir a agenda na cidade.

“Uma vez que chegou a esse estudante, agora chega em absolutamente a qualquer pessoa. Se uma pessoa, com cerca de 150 seguidores, pode ser presa, quem não pode?”, diz ele.

“Isso manda que as pessoas vigiem, o tempo todo, o que elas postam numa rede social sob pena de sofrer a mais grave das intervenções, que é um policial vir te buscar na sua casa e falar que você está preso em flagrante. Tem efeito potencial inibitório gigantesco”, afirma.

A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

Entenda as origens, o seu uso atual e as propostas para modificá-la ou revogá-la

A LEI
Tendo sua última versão editada no estertores do regime militar (1964-1985), em 1983, é uma herança do período ditatorial, sendo um desdobramento de legislações anteriores, mais duras, usadas contra opositores políticos.

O QUE HÁ NELA
Com 35 artigos, estabelece, em suma, crimes contra a "a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União".

Traz termos genéricos, como incitação à subversão da ordem política ou social" e artigos anacrônicos, como pena de até 4 anos de prisão para quem imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.

EXEMPLOS DE APLICAÇÃO NOS DIAS DE HOJE

  • O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou a lei para pedir ao STF a abertura de inquérito para apurar atos antidemocráticos promovidos por bolsonaristas, com o apoio do presidente da República
  • O Ministério da Defesa usou a lei em representação contra o ministro do STF Gilmar Mendes, que havia declarado que o Exército estava "se associando a um genocídio" na gestão da pandemia
  • O ministro da Justiça, André Mendonça, usou a lei para embasar pedidos de investigação contra jornalistas, entre eles, o colunista da Folha Hélio Schwartsman, pelo texto "Por que torço para que Bolsonaro morra", publicado após o presidente anunciar que havia contraído a Covid-19
  • O ministro Alexandre de Moraes (STF) usou a lei para embasar a prisão do bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).

​PROPOSTAS DE MUDANÇA OU REVOGAÇÃO
Há em tramitação na Câmara 37 projetos de lei que alteram ou revogam a lei, entre elas a de substituição por uma Lei de defesa do Estado democrático de Direito em que seria punido, entre outras ações, a apologia de fato criminoso ou de autor de crime perpetrado pelo regime militar (1964-1985)

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