Minoria, evangélicos de esquerda montam coalizão para pedir 'fora, Bolsonaro'

Grupo elege versículo como mote: 'O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Se Jair Bolsonaro tem um carinho especial por João 32:8, “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, este grupo de evangélicos prefere associar o presidente a outro versículo do Evangelho de João, o 10:10: “O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.

É sob esse chapéu bíblico que a Coalizão Evangélica Contra Bolsonaro vai às ruas neste sábado (24), na quarta rodada de manifestações contra o chefe do Executivo.

A frente nasceu da união de grupos que reúnem dois adjetivos tidos como água e azeite por muitos pares: são evangélicos e progressistas.

Na quinta (22), a trupe lançou um manifesto que termina com outra passagem bíblica (Provérbios 31:8-9): "Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados".

“Afirmamos, profeticamente, que Bolsonaro governa à base de mentiras e manipulando o discurso do Evangelho”, diz o texto.

“O bolsonarismo cria uma religiosidade mentirosa que nada tem a ver com o verdadeiro Evangelho, causando perversão e idolatria cega, além de uma ignorância negacionista, tanto da ciência como dos ensinamentos libertadores e verdadeiros de Jesus Cristo.”

Núcleo de Evangélicas e Evangélicos em ato de 29 de maio contra o presidente Jair Bolsonaro
Núcleo de Evangélicas e Evangélicos em ato de 29 de maio contra o presidente Jair Bolsonaro - Divulgação

O consórcio religioso agrega coletivos como o Movimento Negro Evangélico, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e o Cristãos Contra o Fascismo.

O peso dos evangélicos de esquerda é pluma para a cúpula pastoral do país. São líderes com pendor conservador, programas de televisão, acesso ao presidente e alta popularidade em redes sociais. Não há nenhum pastor de digitais progressistas com projeção nacional graúda.

Na semana passada, o pastor Elias Cardoso, presidente do Ministério Perus da Assembleia de Deus foi além e pregou, durante um culto, que um fiel que entrasse numa legenda esquerdista não era bem-vindo.

“É proibido, hein? É proi-bi-do crente se filiar a partido de esquerda. Pede baixa do ministério, pede baixa do membro da igreja”, disse. Cardoso citou PT, PSOL e PC do B como siglas malditas.

“Você já pensou o crente filiado ao PC do B, partido comunista que detesta crente? Enforca e mata crente nos outros países? E os demais partidos que detestam crente? Aí o crente vai lá e se abraça com o ímpio e faz uma aliança com o ímpio e quer trazer para dentro da igreja. Não, senhor, meu caro. Você pode ir para onde quiser, mas fora da igreja, fora da igreja.”

No dia 7 de julho, o concílio presbiterial da IBRB (Igreja Batista Reformada de Brasília) resolveu que não iria aceitar “em seus quadros de liderança pessoas com visão progressista”.

Seria uma decisão baseada não apenas em fatos políticos, mas também na “responsabilidade bíblica e doutrinária”, diz documento da IBRB.

É hora de rever se o rótulo de progressista mais atrapalha do que ajuda, propõe a batista Nilza Valéria, 50, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

“Fico me dando conta que talvez esse termo específico seja grande armadilha para nos dividir, acirrando essa polarização que existe no país, dificultando o diálogo com outros irmãos nossos”, diz.

Se evangélicos —hoje três em cada dez brasileiros— caminham para se tornar um latifúndio populacional, também é certo que são cada vez mais fragmentados e menos denominacionais.

Ou seja, grandes igrejas, em geral comandadas por pastores bolsonaristas, têm poder? Claro. Mas as pequenas células evangélicas representam uma multidão. E o apoio ao presidente não é incondicional nelas.

“O que está em disputa agora é nossa capacidade de dialogar com esses irmãos arrependidos para engrossar o caldo contra esse projeto de governo”, diz Valéria.

Presbiteriana que representa as Evangélicas Pela Igualdade de Gênero, Simony dos Anjos, 35, diz que é fundamental concorrer com a narrativa de que todo evangélico é “um reacionário que apoia Bolsonaro”. Generalizar o segmento é uma ratoeira, afirma.

“Sempre gosto de falar que o evangélico é o povo. E o povo tá pagando R$ 10 no litro de óleo, R$ 60 no quilo da carne, R$ 100 no botijão de gás”, diz ela, que em 2020 tentou se eleger prefeita de Osasco pelo PSOL. “É por esse eixo que a gente tem que conversar com as pessoas.”

“Com mais de meio milhão de mortos”, diz Simony sobre a cifra letal da Covid-19 no Brasil, “não dá para ser neutro”.

Consagrado presbítero no Ministério Madureira da Assembleia de Deus, o carteiro José de Ribamar Passos, 47, aponta raízes históricas para uma insistente birra no campo progressista com evangélicos.

“Desde as grandes revoluções socialistas que aconteceram no mundo, nas quais a igreja sempre fez um papel de aliada da contrarrevolução, isso desde a comuna de Paris até os levantes mais recentes, parte da esquerda passou a ter o povo cristão basicamente como adversário.”

Tolice, diz. “Somos um povo em sua grande maioria de pobres, que vivem nas comunidades, dentro das fábricas, nos alagados, nos porões. Somos negros e negras todos os dias escravizados até mesmo pelo nossos irmãos, que nos saúdam com a paz de Cristo, mas nos negam o mínimo para sobreviver.”

“Cristo abdicou do clero romano e foi viver com os que nada tinham. A palavra de Deus não tem lado, mas se tivesse não seria de direita, não seria capitalista”, afirma Ribamar. “Seria justamente o contrário.”

Se o alcance desse discurso ainda é limitado no Brasil evangélico de 2021, em que pautas identitárias (como feminismo e LGBTQI+) são pejorativamente tachadas de esquerdistas, é preciso lembrar que Jesus está do lado dos fracos, diz Simony dos Anjos.

“A gente segue na marginalidade dentro da igreja, mas não dentro da religião.”

O campo religioso que irá marchar na avenida Paulista também contará com o PSDB Cristão, visto como um núcleo mais ao centro neste debate.

“Nossa preocupação agora não é ideologia, mas todos combaterem o mal comum independentemente de sua linha política”, diz a presidente da ala tucana e fiel da Bola de Neve, Carolini Gonçalves. “Não há partidarização quando mais de 500 mil pessoas morrem, quando há fome e desemprego.”

Carolini conta que conversou com os organizadores do movimento Fora, Bolsonaro, “que na maioria é de esquerda”. Diz que foi “muito bem tratada”. “Qualquer manifestação contra o Bolsonaro terá nosso apoio, seja esquerda, direita, centro.”​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.