Campanha como a da Legalidade em 1961 seria bem mais difícil hoje, afirma pesquisador

Juremir Machado diz que ação militar para impedir posse de Jango era tão ilegal que acendeu sentimento de justiça

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Porto Alegre

As duas semanas que marcaram a resistência civil a um golpe de ministros militares contra a posse do vice-presidente João Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros, como previsto pela Constituição, foram um momento de patriotismo, que mexeu com o senso de justiça da população, e também podem ser vistas como um dique insuficiente em um contexto de força maior que já se articulava e resultaria em 1964.

A avaliação do professor da PUC-RS, jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, 59, autor de “Brizola - Vozes da Legalidade”, é que a campanha liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, Leonel Brizola, desde o Palácio Piratini, sede do governo estadual, conquistou o que poderia conquistar naquele momento e deixou como legado a capacidade do povo de dizer não a ilegalidades.

“Todo mundo defendeu a Legalidade porque era evidente que aquilo não fazia sentido. Os ministros militares tiraram da cartola que o Jango era comunista e não podia assumir. Era tão flagrante que contrariava a Constituição, que não tinha base aquilo, que os próprios militares, um Exército depois do outro, disseram que não tinha como bancar o delírio dos ministros”, afirma.

“Eu fico me perguntando o que aqueles ministros devem ter sentido ao perceber que o país inteiro estava contra eles", diz Juremir. Em entrevista à Folha por telefone de sua casa em Porto Alegre, ele avalia as lições deixadas pelo movimento seis décadas depois.

O jornalista e escritor Juremir Machado
O jornalista e escritor Juremir Machado, autor de um livro sobre a Campanha da Legalidade - Ana Claudia Rodrigues/Divulgação

Brizola articulou rapidamente o plano de resistência, com a renúncia do Jânio numa sexta que pegou todos de surpresa, e no domingo já iniciando as transmissões da Rede da Legalidade. Como ele conseguiu isso? Logo no anúncio da renúncia, o Brizola não aceitou. O que precisava acontecer para deflagrar alguma coisa? Foi o discurso do marechal Lott, que era um ex-ministro da Guerra, um militar influente, tinha concorrido à Presidência da República, e lançou um manifesto dizendo que não podia concordar com o que os colegas militares estavam fazendo [recusar a posse de Jango, vice, na Presidência].

As rádios que veiculavam o manifesto eram tiradas do ar —aqui no Rio Grande do Sul, ele foi lido na Gaúcha e na Farroupilha, mas não na Guaíba. O Brizola gostava de rádio, fazia falas semanais, e foi rápido em requisitar a que seguia no ar. Não tinha muito tempo a perder, e as coisas estavam se intensificando, se acelerando. Era preciso possibilitar a volta do Jango do exterior, com todo cuidado para que ele não fosse preso, e tinha que ter algum mecanismo para isso.

Colocada a rádio da Legalidade no ar, começaram as adesões. A rede chegou a ter 104 emissoras no país todo. Foi como um rastilho de pólvora, começaram a vir por conta própria para retransmitir o que estava sendo feito no Palácio Piratini. Eles foram rápidos, montaram uma programação, tinha momentos em que se transmitia em inglês, até em árabe. Como as rádios estavam fora do ar, os grandes locutores estavam livres.

O Lauro Hagemann, que era o Repórter Esso local, se apresentou [no Piratini] e aquilo deu uma enorme legitimidade ao movimento. Tu imaginas assim, o William Bonner está sem microfone e se apresenta. A equipe da Guaíba montou o estúdio e fez funcionar, o resto foi a incandescência do Brizola, com seus discursos, e o entusiasmo de todo mundo. Era algo tão flagrante na ilegalidade que acendeu uma espécie de sentimento de justiça em todo mundo, até quem não gostava do Brizola e do Jango.

Gaúchos aguardam a passagem de Jango na praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, em Porto Alegre
Gaúchos aguardam a passagem de Jango na praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, em Porto Alegre - Folhapress

O rádio, naquela época, era o principal veículo de massas. É um movimento da era do rádio. Talvez o último grande acontecimento da era do rádio. A televisão ainda era incipiente, os jornais tinham influência, mas a população, grande parte, ainda era analfabeta. O Brizola não pensou em requisitar um jornal, mas uma rádio, que era a rede social da época, o contato direto com a população. Ainda mais com a capacidade discursiva que ele tinha.

A campanha teria sido possível sem um meio de comunicação? Com certeza, não. É aquilo que a gente sempre fala em faculdade de história: quem faz a história? Um homem excepcional ou a força das estruturas? Normalmente, as duas coisas. O que seria da história da Europa sem Napoleão? Teria outro Napoleão igualzinho? Difícil.

Ali, duas coisas se cruzam: a personalidade ímpar do Brizola e a tecnologia disponível. O Jango, por exemplo, não teria tido essa ideia, porque não era da personalidade dele. Jango era um conciliador, escutava, não era o cara do arroubo. Não seria o Jango a dizer: “requisita uma rádio”, “vamos botar fogo nesse negócio”, “vamos impedir esse golpe”. Isso é da personalidade única do Brizola. Ele teve a grande ideia e executou. Precisava alguém que fosse o estimulador, esse papel Brizola cumpriu à risca.

Jornalistas que participaram do movimento falam que naqueles dias foram mais militantes do que jornalistas. O senhor é professor de jornalismo, como vê essa linha? Começa que naquela época o jornalismo era muito mais militante. A Última Hora era um jornal bem marcado, os outros fingiam que não eram, mas eram jornais mais conservadores que dissimulavam a posição.

Ali era um momento em que precisava tomar partido, porque estavam tomando partido pelo que era visivelmente certo. Era algo cristalino. Cândido Norberto, que era um cara que batia no Brizola e no Jango dia sim e outro também, do Partido Libertador, radialista, viu que tinha que ficar com Brizola e com Jango. Ali o jornalismo foi totalmente militante. Felizmente.

O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, fala a apoiadores no Palácio Piratini, em Porto Alegre, em 1961
O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, fala a apoiadores no Palácio Piratini, em Porto Alegre, em 1961 - Museu da Comunicação Hipólito José da Costa/Divulgação

Apenas a figura do Brizola, que era visto como um tribuno popular, teria sido capaz de catalisar esse movimento? O que a campanha diz sobre a sociedade da época? Nós tínhamos uma sociedade com um grau bastante razoável de politização, toda a atenção estava concentrada nos jornais e no rádio, portanto aquilo que o rádio dizia repercutia muito. A atenção não estava tão fragmentada como agora, e ali é aquela situação histórica singular em que o senso de justiça e honestidade intelectual das pessoas foi tocado profundamente.

Aquilo vinha de uma década de muitas violências políticas, tentativas de golpe, suicídio do Getúlio Vargas, ascensão do Juscelino Kubitschek, era um período muito conturbado e aqui era o Rio Grande do Sul, terra de trabalhistas que vinham se sentindo muito agredidos desde 1954. Era mais uma tentativa de golpe contra o trabalhismo gaúcho. Acho que a melhor metáfora é essa: Brizola estava esperando qualquer cavalo passar encilhado para ele montar. Foi o homem certo, no lugar certo, na hora certa, que fez a coisa certa.

Tínhamos uma sociedade mais politizada, então? Isso se perdeu com a ditadura? Com certeza. Tínhamos uma sociedade bastante politizada e, um dos objetivos da ditadura depois, com as medidas que ela teve, foi sufocá-la. Pega pequenas medidas que a ditadura tomou e que surtiram efeito: pegou os campi universitários de praticamente todas as grandes universidades brasileiras e tirou do centro das cidades, tirou a UFRGS, a UFMG, tudo aquilo que poderia provocar ruído foi para longe.

Como se desdobrou a Legalidade fora do Rio Grande do Sul? Rapidamente, governadores como Cid Sampaio, de Pernambuco, se manifestaram dizendo “estamos com a Legalidade”. A Assembleia Legislativa do RS recebia manifestações de diferentes estados apoiando. Foi um rastilho de pólvora. Chegou um momento em que era até curioso perguntar: quem realmente lutaria contra a Legalidade?

Foi uma espécie de catarse popular, todo mundo entrou naquilo, as pessoas queriam participar daquele acontecimento. Em Goiás, o governador Mauro Borges foi um segundo Brizola. Foi um lutador de primeira hora, praticamente se ombreou com Brizola na defesa da Legalidade.

Homem dá entrevista a rádio enquanto está rodeado por outros homens em foto preto e branco
O ainda vice-presidente João Goulart em foto de 1º de setembro de 1961; ele tomaria posse na Presidência seis dias depois - Acervo UH/Folhapress

Brizola e Jango tiveram um desentendimento em torno da questão do parlamentarismo, colocado como condição para a posse. O que significou essa discussão para aquele momento? Os militares tomaram uma decisão errada, eles precisavam ter uma saída. Entrou na jogada o Tancredo Neves, que era um negociador, para buscar essa saída, mas ela já estava sendo costurada.

Deixa eu ler um pedaço do discurso do Paulo Brossard, na Assembleia Legislativa gaúcha, já no fim de tudo, a solução parlamentarista já tinha sido aprovada: “No dia 26, imediato ao da renúncia, falei com o deputado Raul Pilla e ele me disse que lá, do deserto de Brasília, ao juízo de todos, a solução estava na aprovação imediata da emenda parlamentarista já em curso, em tramitação regular. Perguntei-lhe então se ele achava possível diante da precipitação dos acontecimentos, ele me respondeu que o problema se resumia a uma luta contra o tempo”.

A emenda foi aprovada no dia 2 de setembro. O Raul Pilla se movimentou, viu a oportunidade para avançar o parlamentarismo. Mal tinha a crise começado, ele já estava articulando.

Nessa briga entre Jango e Brizola, quem estava com a razão? Jango que aceitou o parlamentarismo ou o governador gaúcho, contra ele? Se eu tivesse 20 anos, eu ficaria com o Brizola. O Brizola era um espírito de fogo, incandescente, o Jango tinha direito a seus plenos poderes presidenciais, o Brasil era presidencialista, ele foi eleito no presidencialismo, por que ele iria aceitar perder parte dos seus poderes, como aceitou?

Mas, aos 59 anos, fico com Jango. O Jango pensou assim: eles não me querem, se eu exigir tudo, talvez eu não tenha nada, talvez eles simplesmente efetivem o golpe ou vai morrer gente. A emenda parlamentarista previa um plebiscito de confirmação, que foi feito em 1963, vencendo a volta ao presidencialismo. O Jango deu um passo atrás para dar dois passos à frente depois. Coisa de político, tem que ter capacidade de espera.

Naquela época, houve um racha entre oficiais e praças das Forças Armadas. Por que não interessava a posse do Jango e compraram essa briga? Essa coisa veio lá de cima, de três ministros militares extremamente reacionários, completamente contaminados pelo clima da Guerra Fria, apavorados com o espectro do comunismo. Eles se lembravam do Jango dos anos 1950, ministro do Trabalho, e viam uma ameaça comunista que era irreal, mas que eles enxergavam.

Deu uma divisão entre uma base de tropa mais à esquerda e uma cúpula distanciada da realidade e extremamente conservadora. Ali foi uma fotografia do que acontecia com as Forças Armadas na época —estavam divididas, os sargentos pensavam de uma maneira, os generais de outra, bem diferente.

A Legalidade consegue garantir a posse do Jango, em 1961, mas três anos depois temos o golpe. Qual foi o peso desses dias em 1964? Foi total. Os militares improvisaram um golpe em 1961 e o golpe fracassou, foi um fiasco. Então, de 1961 a 1964, eles se preparam para o golpe que funcionaria. O golpe de 1964 começou em 1961.

O Jango assumiu, com seu espírito conciliador, tentou evitar determinadas questões, mas não tinha como evitar. Quando ele assume, com as reformas de base, especialmente a reforma agrária, se foi o boi com a corda. Eles continuaram cada vez mais acreditando nesse espírito de Guerra Fria, temiam que o Brasil se transformasse num “Cubão”, numa imensa Cuba.

Houve uma ameaça de bombardeio ao Piratini, um palácio de governo, que seria bombardeado dentro do próprio território por forças nacionais. E cheio de gente, tinha mulher, criança, homem, ia ser a maior tragédia da nossa história. Acho que é a ameaça interna mais pavorosa que enfrentamos.

No aniversário de 50 anos da Legalidade, Moniz Bandeira disse à Folha que ela foi o primeiro levante civil a impedir golpe, mas acreditava que ela não tinha deixado legado, porque 1964 aconteceu. Qual o legado 60 anos depois? Eu acho que ela venceu o que ela poderia vencer, que era impedir o golpe naquele momento. Mas a Legalidade era um dique, uma barreira insuficiente naquele contexto da Guerra Fria.

Os militares estavam com o trabalhismo, que eles viam cada vez mais como comunismo, atravessado desde Getúlio. A Legalidade foi um momento em que se conseguiu a adesão suprapartidária das pessoas, direita, esquerda, porque todo mundo viu ali simplesmente a defesa da Constituição. Mas militares continuaram focados no combate à esquerda, e a principal expressão de esquerda então era o trabalhismo, o PTB.

O golpe viria porque os militares queriam, os Estados Unidos fomentavam, e a Legalidade não tinha como evitar isso. Ela funcionou bem porque foi pontual, uma defesa de um direito líquido e certo garantido pela Constituição.

No momento que vivemos ameaças, inclusive à realização de eleições, seria possível ocorrer algo assim de novo? Acho bem difícil de acontecer agora. Precisaria ser algo muito, muito preciso. Ela pode acontecer se os militares tentarem um golpe usando o artigo 142 da Constituição, dizendo que os militares estão garantidos pela Constituição para exercer uma espécie de poder moderador. O texto é menos claro do que o que garantia a posse do Jango.

A posse do Jango era líquida e certa: foi eleito, a eleição jamais foi contestada e a Constituição diz que, na ausência, na vacância do titular, assume o vice. Ele não cometeu nenhum crime de responsabilidade, é a mesma lei que vige até hoje. Não tinha respaldo nenhum, achavam que ele era um mal para o Brasil porque achavam que ele tinha pendores comunistas.

Juremir Machado da Silva, 59

Nascido em Santana do Livramento (RS), tem graduação em jornalismo e em história pela PUC-RS e é doutor em sociologia pela Université Paris Descartes. É professor da PUC-RS e escritor de livros como “Brizola - Vozes da Legalidade” (editora Sulina, 2011)

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