Descrição de chapéu vale do javari

Bruno Pereira é velado em meio a homenagens e rituais indígenas

'Aqui, é dia de festa', diz companheira do indigenista; índios realizaram luto em sua homenagem

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Brasília

O indigenista Bruno Pereira, 41, assassinado no Vale do Javari (AM), foi velado nesta sexta-feira (24) em Paulista, na região metropolitana do Recife.

Indígenas de diversas etnias e de diferentes locais do país homenagearam o indigenista, morto ao lado do jornalista britânico Dom Phillips no último dia 5. O crime jogou forte pressão sobre o governo Jair Bolsonaro por evidenciar o cenário de criminalidade na Amazônia.

Em Pernambuco, os xukuru, que vivem no agreste, começaram seus rituais de encantamento de madrugada e, durante o velório de Bruno, dançaram e cantaram em sua memória. "Cadê o meu irmão, ô meu irmão, ô irmão meu, cadê meu irmão", cantaram ao redor do caixão.

Simultaneamente, indígenas e indigenistas organizaram atos em Brasília, São Paulo e Atalaia do Norte, cidade para onde Bruno e Dom deveriam ter retornado na viagem na qual foram mortos.

Após o velório, o corpo de Bruno foi cremado em cerimônia reservada à família.

"É um capricho arretado de um pernambucano ser velado em um São João. Aqui, é dia de festa, e Bruno e festa são sinônimos!", disse à Folha Beatriz, companheira de Bruno Pereira, nesta sexta.

As homenagens a Bruno não se limitaram aos locais por onde ele passou, aos povos que ele contatou ou a causa que ele defendia.

Os kanamari, do Vale do Javari, decidiram cumprir o seu ritual de luto tradicional, realizado apenas em caso de morte —ou "passamento", como eles preferem— dos seus.

Caixão de Bruno foi coberto por uma camiseta da Univaja, uma bandeira do Sport e uma bandeira de Pernambuco; indígenas xukuru realizaram cerimônia em frente à cruz de Jesus, em um cemitério na Grande Recife
Caixão de Bruno foi coberto por uma camiseta da Univaja, uma bandeira do Sport e uma bandeira de Pernambuco; indígenas xukuru realizaram cerimônia em frente à cruz de Jesus, em um cemitério na Grande Recife - Brenda Alcantara/AFP

"Os caciques falaram, com lágrimas nos olhos, que a dor que eles estão sentindo é como se fosse um cacique que tivesse ido a óbito. Então a gente tem que fazer isso para se despedir e mostrar o caminho dele para chegar onde está o nosso pai maior", disse mestre Aldair, kanamari.

O rito é praticado exclusivamente pelos homens e não pode sequer ser visto pelas mulheres e pelas crianças. Ele explica que consiste em cortar e guardar o cabelo, cada vez que um familiar morre, até que, quando a comunidade se sentir triste demais, um novo ritual é feito para "se despedir do luto" e "se acostumar à lembrança da pessoa que vivia com a gente".

"Ele não foi uma pessoa que fez mal a ninguém, ele morreu por fazer o bem, mas o mal levou ele, para não mais fazer o bem para ninguém. A gente fez essa despedida com ele, com as danças e os rituais, para ele chegar ao poderoso Deus, que é Tamakori", completa Aldair.

Bruno, conta Eliesio Marubo, da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), era talvez a única pessoa não indígena que os kanamari permitiam participar de seus rituais de ayahuasca.

É um canto kanamari, o "canto da mãe arara chamando os filhotes para dar comida na porta do ninho, no bico", que o indigenista entoa num vídeo que se popularizou recentemente, após sua morte. Ele cantava a música para seus filhos.

"Falando com o líder espiritual kanamari, ele me confidenciou que foi o espírito da ayahuasca que deu a música a Bruno. Ele tinha autorização dos xamãs daquele povo para cantar aquela música, uma letra escolhida especialmente para ele, para uma situação específica que ele estava vivendo em certo momento", conta Eliésio .

Beto Marubo, irmão de Eliésio, é padrinho de um dos filhos de Bruno, que por sua vez sentava à mesa da família de Beto e Eliésio nas refeições —"o que só fazemos com pessoas muito íntimas"—, cheirava rapé com eles e dormia na casa deles.

"A gente vai continuar com essa mesma relação no mundo espiritual, é uma relação que vai durar para toda a eternidade, porque ele foi, ele é e sempre será uma pessoa de muito respeito no Vale do Javari por todos os povos que ali habitam", completa Eliésio.

Desde sua morte, foram feitas diversas homenagens pelo Brasil e a sua família vem recebendo vídeos de rituais e cerimônias em sua memória.

Bruno, por exemplo, deu nome ao filho de uma liderança mayoruna (ou matsé). Era dos poucos que tinha acesso aos recém-contatados korubos —que são muito "seletivos", lembra Eliesio.

Em uma aldeia yawanawá, no Acre, as mulheres cantaram em sua memória. Os mebêmgôkre, ou kayapós, do Xingu (MT), em um comunicado, enviaram um "forte abraço e acolhimento" para "Beatriz, companheira de Bruno, a qual conhecemos como Bia e chamamos carinhosamente de Irekaron".

Em Atalaia do Norte, os kanamari, em frente à sede da Funai (Fundação Nacional do Índio), transformaram a música da ayahuasca ensinada a Bruno em um cântico fúnebre, e levaram faixas em nome dos "defensores da floresta".

Em São Paulo, guaranis pediram justiça, e entoaram, em sua homenagem, um canto que diz "Devolvam a nossa terra, que vocês nos tiraram, para que possamos viver bem", segundo tradução do antropólogo Lucas Keese.

Bruno também foi lembrado em um kadish judaico —homenagem aos mortos—, em paróquias católicas —ato organizado pelo padre Julio Lancelotti— e sua família recebeu recados de comunidades quilombolas que dedicaram a ele um dia de seus terreiros e seus congados.

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