TSE tira do ar conteúdos jornalísticos, fala em fake news e dá combustível a Bolsonaro

Especialistas se dividem entre risco à liberdade de imprensa e atuação correta contra afirmações falsas

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São Paulo

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinou a remoção de ao menos cinco conteúdos divulgados por veículos jornalísticos desde o dia 1º de outubro, véspera do primeiro turno da eleição brasileira.

A lista reúne uma entrevista à Jovem Pan, uma reportagem do portal R7 e outra de O Antagonista, além da reprodução desta pela Jovem Pan e de um post no perfil da Gazeta do Povo no Twitter sobre outro tema.

A principal alegação é que os conteúdos trazem fatos inverídicos, associando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao caso Celso Daniel, à ditadura da Nicarágua, à facção criminosa PCC e ao satanismo.

O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, no plenário do tribunal
O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, no plenário do tribunal - Alejandro Zambrana - 6.out.22/TSE/Divulgação

Parte dos especialistas ouvidos pela Folha avalia que as decisões ferem a liberdade de imprensa. Outros dizem que, num ambiente repleto de desinformação, as medidas se alinham às atribuições da Justiça.

Autor de sucessivos ataques a jornalistas e veículos de comunicação, o presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a se apresentar como defensor da liberdade de expressão. Nesse contexto, as decisões do TSE têm servido de combustível à narrativa bolsonarista de que o Judiciário persegue o candidato à reeleição.

A visão de Moraes sobre a remoção de conteúdos publicados por veículos de comunicação ficou clara em sessão da corte em 1º de setembro, quando deliberou sobre conteúdos que associavam o PT ao PCC.

"É importante salientar que a mídia tradicional também pode cometer fake news. Estamos mais acostumados com a questão das redes sociais", disse ele.

É importante salientar que a mídia tradicional também pode cometer fake news

Alexandre de Moraes

presidente do TSE

Até então, deliberações sobre eventuais conteúdos inverídicos vinham tendo como referência frequente uma decisão de 2019 do ministro do STF Luís Roberto Barroso.

Nela, Barroso dizia que não poderiam ser caracterizados como fake news "os juízos de valor e opiniões; as informações falsas que resultam de meros equívocos honestos ou incorreções imateriais; as sátiras e as paródias; e as notícias veiculadas em tom exaltado e até sensacionalista".

Professor da Universidade Metodista de São Paulo e doutor em comunicação pela USP, Ivan Paganotti afirma que não há definição consensual sobre fake news.

Pesquisadores que adotam a expressão "notícia fraudulenta" em vez de "notícia falsa" tentam enfatizar a intenção de enganar, o que afastaria da definição eventuais erros cometidos por veículos de imprensa.

Ainda assim, para Paganotti, isso não é determinante nos casos em análise. Para ele, as decisões do TSE configuram censura judicial pois não têm base jurídica e são desproporcionais ao suposto dano causado.

Ele afirma que a estratégia de resposta aos conteúdos deveria se dar no campo da comunicação. Alguns exemplos disso, cita, seriam a manifestação de outro lado, declaração oficial e tentativa de contestação do fato em outros veículos. Com a censura no tribunal, diz, dá-se munição a Bolsonaro. "Parece uma armadilha que foi construída, e muitos estão caindo nela como patos."

A cientista política e pesquisadora na área de comunicação Tathiana Chicarino discorda. Segundo a professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o uso de mídias vistas como hiperpartidárias para produzir conteúdos falsos "faz parte da tática de desinformação da extrema direita".

Na avaliação dela, compromisso com a checagem e a apuração dos fatos junto a diferentes fontes, parâmetros usados por mídias de referência, não é seguido por esses veículos.

Chicarino reconhece que a remoção de conteúdo é "uma arma muito forte" e que por vezes é usada sem a discussão devida. Entretanto, diante da urgência imposta pelas eleições, a especialista afirma não ver outra medida efetiva para conter danos em um curto espaço de tempo.

"É importante entender como essa estrutura opera, porque tem dinheiro e atores profissionais envolvidos. O ideal seria combater esse tipo de atuação a partir do entendimento dessa estrutura e, claro, ter mais regulação das plataformas digitais."

No âmbito jurídico, as avaliações também divergem. A advogada Luisa D’Avola classifica de correta a decisão de Moraes de remover notícia que dizia que um líder do PCC havia declarado voto em Lula.

O texto, publicado no portal O Antagonista, tinha como base diálogo de maio de 2021 no qual o criminoso, que não pode votar, manifestava preferência pelo petista. Para ela, a remoção se justificaria por não estar expresso o pedido de voto e pelo fato de, a um dia da votação, o processo eleitoral estar mais vulnerável.

Na avaliação do Observatório da Desinformação Online nas Eleições de 2022, parceria do Cepi (Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação) e do Núcleo de Pesquisa em Concorrência, Políticas Públicas, Inovação e Tecnologia da FGV-SP, as decisões das cortes eleitorais indicam respeito à liberdade de imprensa.

"Quando há publicação de algo que a Justiça considere sabidamente inverídico, ela pode tomar esse tipo de posição de ordenar a remoção. Essas decisões têm ocorrido sempre a posteriori, após a publicação, e jamais de antemão no formato de 'censura prévia'", dizem os professores Caio Mario Pereira Neto e Alexandre Pacheco e os pesquisadores Helena Secaf e Antonio Bloch Belizario.

Professor da PUC-Rio e especialista em liberdade de expressão, Fábio Leite avalia que medidas como a remoção de conteúdo são legítimas em período eleitoral em caso de afirmação sabidamente falsa, independentemente da intenção de quem a produziu.

Ele ressalta que não há uma definição jurídica sobre o que seria um veículo de imprensa, e ela fica ainda mais nebulosa com as mudanças trazidas pela internet. Leite afirma ainda que o TSE mostra estar desatualizado ao usar o termo fake news, deixado de lado por especialistas no tema depois de ter sido apropriado por propagadores de mentiras para atacar o jornalismo.

Já Alexandre Fidalgo, advogado da área de imprensa, diz que, na busca por equilíbrio, o TSE comete um equívoco. Ele atua para a Jovem Pan no caso da remoção de vídeo com entrevista da senadora Mara Gabrilli (PSDB) que vincula, sem evidências, Lula ao caso do assassinato do então prefeito Celso Daniel.

"As pessoas, no caso a candidata a vice [na chapa derrotada de Simone Tebet], podem responder pelo que foi publicado, mas o conteúdo tem que ser mantido. Será muito ruim para a democracia se o tribunal agir como órgão de vigilância do que pode ser publicado."

'Decisão equivocada', diz veículo

A decisão do TSE que determinou a remoção de um post da Gazeta do Povo no Twitter é classificada de equivocada por Guilherme Cunha Pereira, presidente do grupo que edita o jornal.

A postagem dizia "Ditadura apoiada por Lula tira sinal da CNN do ar" e levava a um texto sobre a Nicarágua no site do veículo. Não houve determinação de remoção da reportagem.

Para Pereira, como o pedido inicial da coligação de Lula citava diversos conteúdos, todos foram analisados em conjunto, sem uma avaliação que levasse em conta as diferenças entre cada um.

"Talvez a polarização tenha levado a um equívoco que fere a tradição da liberdade de expressão", diz.

Cláudio Dantas, diretor-geral de jornalismo de O Antagonista, disse que o veículo está proibido pelo TSE de comentar a decisão de remoção do conteúdo que associava Lula ao PCC. Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a Record, dona do portal R7, não se manifestou até a conclusão deste texto.


DECISÕES DE REMOÇÃO DE CONTEÚDO PELO TSE

1º.set.22

Remoção de conteúdo de O Antagonista —e republicada pela Jovem Pan— sob o título: "Exclusivo: em interceptação telefônica da PF, Marcola declara voto em Lula. ‘É melhor, mesmo sendo pilantra’".

Justificativa: fato sabidamente inverídico e descontextualizado

4.out.22

Remoção de post da Gazeta do Povo no Twitter com o título "Ditadura apoiada por Lula tira sinal da CNN do ar", além de outros conteúdos relacionados a crimes contra religiosos na Nicarágua.

Justificativa: informações "manifestamente inverídicas"

5.out.22

Remoção de texto do portal R7 que afirma: "Satanista diz que forças malignas se uniram por vitória de Lula, mas erra resultado da eleição".

Justificativa: "inadmissível" associar imagem de candidato "a determinada religião ou ideologia sem o seu consentimento"

7.out.22

Remoção de vídeo da Jovem Pan com entrevista da senadora Mara Gabrilli, que, sem qualquer evidência, acusa Lula de ter pagado para não ser envolvido no caso Celso Daniel

Justificativa: conteúdo desinformativo e violador da imagem

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