Caixas-d'água da Codevasf apodrecem em terreno, e famílias seguem na fila

Santa Filomena (PE) tem equipamentos estocados e doações duplicadas; já a vizinha Betânia do Piauí (PI) depende de carros-pipa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Caixas-d'água doadas pela Codevasf em 2021 estão estocadas nos fundos do hospital municipal em Santa Filomena (PE)

Caixas-d'água doadas pela Codevasf em 2021 estão estocadas nos fundos do hospital municipal em Santa Filomena (PE) Mathilde Missioneiro/Folhapress

Santa Filomena (PE) e Betânia do Piauí (PI)

Ladeiras íngremes em uma estrada de terra e cascalho levam ao topo da Serra do Inácio, na divisa entre Pernambuco e Piauí. Nos caminhos que serpenteiam o alto dos morros, moradores dos povoados enfrentam o desafio do isolamento para ter acesso a água, alimentos e itens básicos do dia a dia.

Na Vila do Mel, povoado do município de Betânia do Piauí (PI), a água encanada ainda é uma realidade distante e moradores dependem dos caminhões-pipa, mas nem todas as famílias têm acesso a cisternas ou caixas para armazenar a água.

A poucos quilômetros, no povoado Sítio Serra do Inácio em Santa Filomena (PE), o cenário é outro: há farta distribuição de caixas-d’água registradas com vídeos postados em redes sociais, relatos de famílias que receberam mais de uma caixa e até casos de venda por moradores de equipamentos doados pelo governo federal.

Betânia do Piauí e Santa Filomena ficam a cerca de 30 km uma da outra, são separadas por uma estrada de terra e pela divisa entre os estados. As cidades têm porte e realidade socioeconômica semelhantes, mas enfrentam disparidades na relação ao acesso à água.

A cidade pernambucana recebeu 2.333 caixas-d’água para comunidades da zona rural doadas pela Codevasf, estatal ligada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional e que vem sendo utilizada como uma espécie de "loja para políticos" nos governos Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT).

A cidade é um reduto do ex-senador Fernando Bezerra Coelho (MDB), nome influentes da política no sertão pernambucano. No ano passado, deu votação expressiva a Miguel Coelho (União Brasil) e Fernando Filho (União Brasil), filhos do então senador que concorreram ao governo e à Câmara.

O contrato de doação foi assinado em 2021, ainda no governo Bolsonaro. Mesmo assim, a prefeitura mantém dezenas de caixas-d’água estocadas em um terreno nos fundos do hospital municipal. Parte dos equipamentos já está danificada com os efeitos do sol forte e da falta de manutenção.

Cisternas estocadas em depósito atrás do hospital de Santa Filomena (PE) - Mathilde Missioneiro - 20.set.2023/Folhapress

O estoque de caixas-d’água doado ao município seria suficiente para atender o equivalente a 77% das famílias da cidade.

Mas a distribuição segue critérios pouco transparentes: há pessoas que se cadastraram e não receberam, famílias que receberam mais de uma caixa-d’água e até relatos de equipamentos que acabaram sendo vendidos pelos beneficiários.

Secretários da gestão do prefeito Gildevan Melo (PSD) celebram as entregas em povoados na zona rural do município, entregando uma por uma as caixas-d’água com registros de fotos e vídeos postados em suas redes sociais.

No povoado Sítio da Serra do Inácio, dezenas de caixas foram distribuídas para famílias que vivem na região. A agricultora Maria Nilza Amorim Silva, 62, foi uma das beneficiadas com a caixa, que passou a usar de forma complementar a uma antiga cisterna que já tinha na casa.

Duas de suas filhas, que moram em outras casas na mesma comunidade, não haviam feito cadastro para receber os equipamentos. Mas isso não foi um problema: fizeram o credenciamento no dia da visita do prefeito e receberam no mesmo dia as suas respectivas caixas-d’água.

A professora e agricultora Expedita Ferraz, 53, fez o cadastro na prefeitura, mas segue na lista de espera. Ela já possui uma cisterna doada por uma ONG, mas pleiteia uma caixa-d’água para tentar manter durante todo o ano a sua produção de hortaliças e iniciar um plantio de acerolas.

Sem a certeza da água, ela atualmente produz apenas no inverno, quando as chuvas são suficientes para manter a produção de sequeiro. No período de estiagem, a solução é comprar água dos caminhões-pipa, mas é preciso ter onde estocá-la.

"Aqui em cima da serra a terra é muito frágil. A única forma de a gente realmente ter água é com reservatório. Se essas caixas viessem, eram muito bem-vindas para a gente", afirma Expedita, que preside a Associação de Pequenos Produtores Quilombolas do Sítio Serra do Inácio.

Expedita da Silva Ferraz, 53, professora, depena uma galinha no quintal de sua casa na comunidade rural de Serra do Inácio em Santa Filomena (PE) - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Ela critica o uso político da entrega dos equipamentos por políticos da cidade e diz que não raro as doações ganham tração quando se aproxima o calendário eleitoral. Também diz que, em geral, as famílias que apoiam o prefeito têm preferência no acesso às caixas-d’água.

"Quem é do lado do prefeito tem mais prioridade. Se ele desconfiar que eu não apoio ele, ele não entrega a minha", afirma a professora, que diz ser aliada do prefeito Gildevan Melo.

Algumas casas adiante, o casal de agricultores Edilson Alves de Oliveira, 40, e Claudete Pereira da Silva, 47, maneja as enxadas para limpar o terreno. Mesmo sem acesso recorrente à água, eles decidiram tentar a sorte e plantar no período de estiagem.

Eles receberam uma das caixas-d’água da Codevasf, mas enfrentam uma situação de insegurança hídrica, já que dependem dos carros-pipa da prefeitura para manter os reservatórios cheios. Edilson diz que o ideal seria ter uma barragem ou poços que garantissem a água durante todo o ano.

Edilson Alves de Oliveira, 40, agricultor, trabalha no quintal de sua casa na comunidade rural de Serra do Inácio em Santa Filomena (PE) - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Cerca de 10 km adiante, no povoado Vila do Mel, não há água encanada nas casas e há famílias que nem sequer possuem cisterna e dependem da boa vontade de vizinhos. Mas a comunidade já fica no território da cidade de Betânia do Piauí, em outro estado e sob gestão de outra prefeitura.

A cidade piauiense, que não possui água encanada, não recebeu nenhuma doação de cisterna ou caixa-d’água da Codevasf nos últimos anos, a despeito do grave cenário de insegurança no acesso à água.

Caminhão da prefeitura reabastece em barragem perto da zona urbana de Betânia do Piauí, que não tem sistema de abastecimento de água - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Moradora da comunidade, a agricultora aposentada Naielene Ferreira, 64, não possui nenhum tipo de reservatório na sua casa e depende da filha e do auxílio dos vizinhos para ter água no seu dia a dia.

"É muito complicado ficar sem água. Passo dias sem lavar roupa, às vezes não consigo limpar a casa. Não é fácil, não", diz Naielene.

Ela tem usado a cisterna da casa de um vizinho, mas quando a água acaba nem sempre tem dinheiro para abastecer com o caminhão-pipa. Na comunidade, os pipeiros cobram até R$ 130 para buscar água bruta em uma represa.

Nailene Antônia Pereira Ferreira, 64, aposentada, na sua casa na comunidade rural da Vila do Mel, em Betânia do Piauí - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Na Vila do Mel, moradores são atendidos por mais de uma prefeitura. O núcleo central do povoado faz parte do município de Betânia, mas grande parte dos moradores vota em Curral Novo do Piauí. Desta forma, a prefeitura atende parte das casas do povoado com água dos caminhões-pipa.

O prefeito de Betânia do Piauí, Fábio Macedo (PP), confirma as dificuldades em atender a população e diz que o município dispõe de apenas dois caminhões-pipa —um próprio e um contratado— para abastecer as casas da cidade. Também informou que pleiteou equipamentos à Codevasf, mas não foi atendido.

A Codevasf informou que suas doações para os municípios são realizadas após avaliação técnica, legal e de conveniência socioeconômica. A reportagem não conseguiu contato com o prefeito de Santa Filomena, Gildevan Melo.

Erramos: o texto foi alterado

O estado do Ceará estava incorretamente sinalizado com a sigla MA no infográfico que acompanha a reportagem. O mapa foi corrigido.
 

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.