Medida do governo Lula cria novo atrito com bancada evangélica

Receita suspendeu isenção a pastores editada por Bolsonaro antes da eleição de 2022; Órgão diz que cumpriu proposta do Ministério Público perante o TCU

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Brasília

Líderes da bancada evangélica no Congresso Nacional afirmaram, nesta quarta-feira (17), terem visto como ataque político do governo Lula (PT) a suspensão de ato da Receita Federal editado pela gestão de Jair Bolsonaro (PL) em 2022, um mês antes do início da campanha eleitoral.

O ADI (Ato Declaratório Interpretativo) nº 1, de 29 de julho de 2022, ampliou o alcance da isenção tributárias a pastores —forte núcleo de apoio a Bolsonaro, então candidato à reeleição— e estava sob investigação do TCU (Tribunal de Contas da União) desde 2022 e reanálise da Receita a partir do ano passado.

"É lamentável. Para um governo que diz reconhecer a importância das religiões e a necessidade de aproximação do segmento, fazer um movimento desses é incompreensível", disse o coordenador da bancada evangélica, o deputado Silas Câmara (Republicanos-AM).

O presidente Lula reunido com evangélicos em São Paulo, durante a reta final das eleições de 2022 - Marlene Bergamo-19.out.2022/Folhapress

Lula e o PT têm uma reconhecida dificuldade de penetração no meio evangélico —a última pesquisa Datafolha mostrou que seu governo é reprovado por 38% desse segmento, contra 30% da média nacional— e afirmam tentar estabelecer pontes.

O partido aposta na retomada de programas sociais para driblar a força do bolsonarismo no segmento, quer que o próprio Lula faça gestos às igrejas e defende que, para alcançar os evangélicos, o discurso político tem que ser muito mais amplo do que tradicionais campanhas de comunicação. Dirigentes petistas também pregam a necessidade de haver intermediação fora dos templos.

Reportagem da Folha do início de janeiro mostrou que, embora a rejeição não tenha passado, há sinais de abrandamento na relação após um ano de gestão do petista.

"É um ato político do governo da esquerda, que quer voltar à velha prática da chantagem", disse o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que é do partido de Bolsonaro e um dos principais críticos do governo Lula no Congresso.

"O ato [da Receita] só elucidava e explicava o óbvio. Agora nós voltaremos às velhas práticas que o governo da esquerda e o PT amam, que é a chantagem aos religiosos. Vão mandar os fiscais em cima das instituições religiosas para ficar produzindo chantagem: 'Ou acorda e vota com a gente, ou vocês vão ficar sendo multados'", disse Sóstenes.

Bolsonaro citou o ato que ampliou a isenção tributária a pastores em sua primeira viagem na campanha, em 16 de agosto de 2022, em um encontro com lideranças religiosas em Juiz de Fora (MG).

O ato aborda a prebenda, remuneração recebida pelos pastores e líderes religiosos por serviços prestados às igrejas.

A lei isenta a prebenda do recolhimento de contribuição previdenciária, desde que ela tenha relação com a atividade religiosa e não dependa da natureza ou da quantidade de trabalho.

A Receita, porém, havia detectado que algumas igrejas usavam a prebenda para driblar a fiscalização e distribuir uma espécie de participação nos lucros aos pastores que reuniam os maiores grupos de fiéis (beneficiando lideranças de templos em grandes cidades ou bairros, por exemplo) ou as maiores arrecadações de dízimo.

"Essa é a alegação daqueles que querem perseguir. O ato declaratório só elucidava o óbvio, aí evitava que alguns fiscais pudessem interpretar a lei ao seu bel prazer", disse Sóstenes.

Ele também disse: "Vamos fazer política, que é o que o PT quer. Mostrar para os evangélicos do Brasil todinho o que nós avisamos que ia acontecer. Eles [governo] vão só potencializar os evangélicos contra o PT e contra a esquerda. Simples assim".

O ato suspenso agora pela Receita diz que o pagamento de valores diferenciados, no montante ou na forma, "não caracteriza esses valores como remuneração sujeita à contribuição". No texto, são citados como fatores de diferenciação "antiguidade na instituição, grau de instrução, irredutibilidade dos valores, número de dependentes, posição hierárquica e local do domicílio".

Após a posse de Lula, esse ato declaratório foi considerado atípico por integrantes do Fisco e passou por reanálise.

Um dos pontos detectados, de acordo com envolvidos na análise, é que a edição do ato não passou pela avaliação técnica da subsecretaria de tributação da Receita.

O TCU abriu ainda em 2022 um procedimento para investigar possíveis irregularidades na edição do ADI e solicitou informações ao Fisco.

A suspensão do ato foi assinada pelo secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, e publicada no Diário Oficial da União desta quarta-feira (17). No texto, não é apresentada a justificativa para a medida.

"A quase totalidade dos líderes religiosos não tem na igreja a sua principal fonte de renda. Esquece o governo que o apoio sacerdotal aos seus fiéis ocorre diuturnamente em templos, hospitais, presídios. A prebenda que recebem, geralmente não cobre os custos do que fazem", disse o deputado Eli Borges (PL-TO), que coordenou a bancada evangélica no primeiro semestre de 2023 e que voltará ao posto em fevereiro.

"Já temos de forma explícita a igrejofobia, a bíbliofobia e agora, a sacerdofobia. Parece uma tentativa política de intimidação. Se visam dividendos com isso, estão equivocados, pois na prática a maioria dos líderes religiosos não será alcançada pela medida."

O deputado Marco Feliciano (PL-SP) disse que a bancada evangélica discutirá o tema após o fim do recesso parlamentar de janeiro. "Nada muda no Congresso. Não nos aliamos a ele [Lula] e nem nos aliaremos. O comunista iniciou sua perseguição religiosa por ele tanto negada."

A Folha pediu uma manifestação à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência e ao Palácio do Planalto na noite desta quarta. O governo informou que a resposta seria dada pela Receita.

Em nota, o Fisco disse apenas que atendeu a "determinação proposta pelo Ministério Público perante o TCU".

Em nota, o TCU disse que o assunto é objeto de análise, sob relatoria do ministro Aroldo Cedraz, e que ainda não há decisão. A corte de contas destaca ainda que "o TCU se manifesta apenas por meio de seus acórdãos ou por decisões monocráticas dos seus ministros".

Também em nota assinada por Silas Câmara, a bancada evangélica afirmou que "nunca houve nenhum tipo de isenção dada a ministros de qualquer culto", que a lei que trata da questão previdenciária desse segmento continua vigente e que "revogar um ato interpretativo deixa os ministros de qualquer culto à mercê da interpretação particular e do humor dos auditores da fazenda", representando "a velha prática de promover o caos".

A composição atual do Congresso não traz um cenário de tranquilidade ao governo. Apesar de a base formal contar com mais de 350 dos 513 deputados, a esquerda tradicional tem pouco mais de 100 cadeiras.

Os demais partidos com ministros no governo —MDB, PSD, União Brasil, PP e Republicanos— abrigam em seus quadros um considerável número de opositores abertos, entre eles integrantes da bancada evangélica.

Entenda benefício

Às vésperas da eleição 
O governo Jair Bolsonaro, em julho de 2022, editou ADI (Ato Declaratório Interpretativo) da Receita Federal ampliando o alcance da isenção previdenciária a pastores —forte núcleo de apoio ao então presidente, candidato à reeleição

Análise na Receita 
Após a posse de Lula, esse ato foi considerado atípico por integrantes do Fisco e passou por nova análise. Um dos pontos detectados é que o benefício não passou pela avaliação da subsecretaria de tributação da Receita

Investigação 
A isenção também está sob investigação do TCU (Tribunal de Contas da União); segundo Isac Falcão, presidente do Sindfisco Nacional, o ato usurpou função do Congresso e representa prejuízo aos cofres públicos

Perseguição 
Líderes da bancada evangélica no Congresso afirmam que a reavaliação do benefício simboliza uma perseguição política pelo governo Lula

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