Interesse pela carteira de motorista cai até mesmo entre os mais jovens

Ávida pela licença em outras gerações, juventude hoje tem outras prioridades

Mônica Manir
São Paulo

​É um fenômeno nacional. Nas cinco regiões do país, entre homens e mulheres de todas as faixas etárias, a emissão de CNH (Carteira Nacional de Habilitação) cai desde 2015. O volume total passava dos 3 milhões em 2014, mas, no ano passado, recuou para 2,1 milhões.

É o que revela levantamento feito pela empresa de pesquisa Ipsos a partir de dados fornecidos pelo Denatran (Departamento Nacional de Trânsito).

O cenário é semelhante no estado de São Paulo, segundo informações do Detran-SP. As 816 mil emissões de 2014 caíram para 564 mil no ano passado, o que significa 31% a menos em somente três anos.

“Muita gente pensa no custo-benefício de ter um carro e, por tabela, de tirar a carteira de motorista”, afirma Fernando Deotti, diretor de pesquisa automotiva da Ipsos.

“Atualmente existem aplicativos que atendem a essa necessidade de deslocamento. O veículo não é tão necessário assim para certo feixe da população”, afirma o diretor.

Segundo Deotti, o aspecto prático estaria preponderando sobre o aspiracional. Se há alguns anos era automático tirar a carteira e, assim que possível, adquirir um automóvel, agora os brasileiros estão postergando os dois momentos.

Os analistas estão de olho especialmente no comportamento dos jovens dos 18 aos 21 anos, nicho tradicionalmente mais ávido por ostentar a carteira de motorista como sinal de independência e status.

 levantamento da Ipsos identificou queda de 20,6% na quantidade anual de carteiras emitidas de 2014 para 2017 nessa faixa etária. Nordeste e Sudeste foram as regiões em que o declínio se mostrou mais contundente.

Uma outra pesquisa, feita pela Junior Mackenzie Consultoria, a pedido da empresa de cartões Alelo, mostrou que 55,4% dos jovens brasileiros entre 18 e 22 anos não tiraram a CNH.

A pesquisa foi feita em novembro e dezembro de 2017 com 1.537 estudantes, em nove regiões metropolitanas do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Goiânia e Brasília.

Embora a maioria dos que não tiraram a CNH (58%) responda que pretende cuidar disso no futuro, a principal justificativa para não fazê-lo até agora é o custo.

Em média, o candidato a condutor tem de desembolsar R$ 2.000 para conseguir uma habilitação na categoria B, que o autoriza a dirigir automóvel, caminhonete, camioneta e utilitário.

Os pesquisadores, porém, atentam para outro dado: a falta de interesse do jovem em dirigir. Cerca de 9% dos entrevistados no estudo das capitais assumiram que a carteira de motorista não encabeça seus sonhos de consumo.

Autora do livro “iGen: Why Today’s Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy – and Completely Unprepared for Adulthoood” (Geração i: por que os jovens superconectados de hoje estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes e completamente despreparados para a vida adulta), a americana Jean M. Twenge já havia pontuado esse dado ao estudar a iGeneration, ora conhecida como geração Z. O termo define as pessoas que nasceram de 1995 a 2010.

O livro, lançado no ano passado, relata pesquisa que mostra que, enquanto praticamente todo estudante Boomer (nascidos no começo dos anos 1960) do ensino médio tirava a carteira assim que completava 16 anos (a idade mínima permitida nos Estados Unidos para dirigir), em 2015 a taxa caiu para 75% deles.

“Isso significa que um em cada quatro ‘iGen’ers’ não tem habilitação para conduzir um carro ao completar o ensino médio”, afirma Twenge. 

Professora de psicologia na Universidade de San Diego, a autora afirma que, para alguns dos seus entrevistados, os pais são tão bons choferes que não há necessidade de se preocupar com a habilitação.

“Costumava ser o contrário: você mal podia segurar a ansiedade para tirar a carteira de motorista, enquanto seus pais pediam para esperar.”

Olhando para os jovens da atualidade, a psicanalista brasileira Maria Homem afirma: “Está um pouco difícil ser adulto”. Ela destaca que continuamente alteramos as leis para alargar o tempo da maturidade —vide proposta recente de cientistas de formalizar a adolescência até os 24 anos.

“Nessa linha de raciocínio, poder continuar a ‘brincar’ e ‘ser conduzido’ parecem desejos legítimos e profundos”, teoriza a psicanalista, retomando a questão da CNH tardia.

Há quem aposte que a tenra juventude está, na verdade, mais conscienciosa, menos consumista e mais alerta com relação aos efeitos deletérios do automóvel ao ambiente.

Os incentivos para a redução do uso de carro particular, como ampliação de corredores de ônibus, expansão de linhas de metrô e rodízio de veículos, também têm levado mais pessoas a optar pelo uso do transporte público.

Independência

“Para mim, sair da casa dos pais e poder pagar as próprias despesas são os maiores sinais de independência”, afirma Matheus Pedroni Negrão, 20, estudante de biomedicina da Universidade Federal de São Paulo. “Possuir a carteira de motorista faz pouca ou nenhuma diferença.”

Guilherme Peres Finardi, 19, é de Campinas e estuda engenharia de produção na USP de São Carlos. Faltou tempo para tirar a CNH aos 18, já que estava na correria do vestibular.

Agora falta interesse: “Não vejo necessidade de dirigir, faço tudo a pé ou pego carona. E duas semanas fazendo as aulas para obter a carteira significaria perder muita coisa, como o treino de futebol”.

O músico e ciclista Kevin Drummond, 28, não tem carteira nem ambição de dirigir. “Procuro não ter nada que seja insustentável ou impossível de todas as pessoas terem.”

Aplicativos como o Uber teriam sido tão decisivos nessa mudança? Twenge afirma acreditar que não. Ela aposta em “mamãe e papai levando Júnior de lá para cá” como principal fator. Já a pesquisa da Junior Mackenzie mostra que 23% dos jovens optariam pelo uso dos aplicativos.

Carolina Garcia, 23, está tirando a CNH. Sobrou tempo, e o carro da mãe está parado na garagem. Mas deve continuar usando os aplicativos. “Já perdi pessoas próximas por causa de bebida na direção.”
 

 
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