Honesto, catártico, emocionante e até divertido são adjetivos que definem um livro, recém-lançado no país, sobre uma família lidando com um câncer.
Em “Mamãe Está com Câncer”, que sai pela DarkSide, o americano Brian Fies narra em quadrinhos a história verídica do diagnóstico e do tratamento do carcinoma de pulmão de sua mãe.
Publicado originalmente na internet, em tiras anônimas, o trabalho foi a primeira HQ do autor e, uma vez editada, conquistou em 2005 o Prêmio Eisner, o mais importante do gênero —e diversos outros reconhecimentos.
“Meu objetivo era desenhar um mapa para outras pessoas que passariam pelo caminho do câncer”, conta Fies à Folha, por email.
A expectativa do autor é de que as “emoções muito universais” presentes no trabalho impactem o público brasileiro como tocaram leitores de outras partes do mundo. “Às vezes, as pessoas me dizem que devo ter estado na casa delas, porque minha história também é a delas.”
As páginas abordam as incertezas de quatro personagens —mamãe, o autor, a irmã enfermeira e a irmã caçula— quanto a como tratar um câncer metastático (o nome se dá quando surgem tumores derivados do primário em outras partes do corpo).
A HQ acompanhou, quase em tempo real, o tratamento de Barbara, que morreu aos 66 anos, seis meses após escrever o posfácio da publicação. No texto, ela reflete: “De todas as coisas que fiz na vida, a que tenho menos orgulho é fumar —e agora sou reconhecida justamente por ela”.
Em sua busca por ter “o máximo de felicidade possível entre os tratamentos”, conta Fies, Barbara “passava muito tempo com amigos, foi a todas as festas que pôde”.
Consultas, radioterapia e quimioterapia, sensação de agulhadas na cabeça, câimbras e dificuldade para respirar estavam entre as questões com as quais a mãe se deparou.
Na HQ, ela se mostra perdida quando conversa com médicos e terapeutas, entre os quais um que não tira o sorriso do rosto mesmo dando péssimas notícias. O livro se tornou também um manual para profissionais de saúde, sendo usado inclusive em faculdades.
“Médicos me disseram que a leitura mudou a maneira como eles falam com as pessoas. Antes disso, alguns nunca tinham percebido a perspectiva dos pacientes”, diz Fies.
Ao planejar seu tratamento, defende ele, pacientes com câncer merecem respeito, independência e informações completas. “Algumas pessoas acham mais misericordioso não contar a verdade sobre quão doentes eles estão, mas os pacientes sabem quando estão mentindo para eles.”
Fies não concordou com todas as escolhas da mãe, mas respeitou-as. Os parentes podem também dar apoio de outras maneiras.
“Funciona muito bem ter um membro da família para fazer anotações nas consultas médicas, manter um cronograma e discutir as questões de saúde por você. O paciente fica dominado por informações e pelo pavor e precisa de ajuda. No caso da minha família, essa pessoa costumava ser minha irmã, a enfermeira.”
É importante também que os cuidadores não se cobrem tanto. “Pacientes e seus familiares estão fazendo o melhor que podem com a situação ruim e as informações incompletas que possuem.”
Graduado em física pela Universidade da Califórnia em Davis, Fies foi repórter de um jornal local, químico ambiental e redator científico. Enquanto perseguia outras carreiras, divertia-se ao colocar nanquim no papel para produzir ilustrações e cartuns freelance.
Ele desenha “desde que se lembra”. Quando resolveu transformar a história da própria mãe em quadrinhos, acreditava que isso “só seria interessante e útil se fosse totalmente verdadeiro”, mesmo nas metáforas, como os quadros em que a mãe anda numa corda bamba, entre diversos medicamentos.
Fies se valeu da experiência como jornalista para ser o mais honesto possível, deixando de fora apenas detalhes muito constrangedores. “Encaro todo o meu trabalho quase como jornalismo”, diz.
A mãe aprovou. “Quando eu mostrei a ela pela primeira vez, comentou: mal posso esperar para descobrir o que acontece a seguir”, lembra.
Ele admite que foi difícil ser verdadeiro em partes do livro em que ele ou a família “se comportaram mal”. Fies diz não se orgulhar de ter ficado bravo com pacientes com câncer fumando do lado de fora da clínica, como demonstrou nos quadrinhos. “Eu sei que deveria ser mais compassivo, mas, honestamente, foi esse o meu sentimento.”
“Mamãe Está com Câncer” não é o único livro de Fies surgido de tirinhas autobiográficas que viralizaram na internet.
Em outubro de 2017, incêndios na Califórnia mataram 44 pessoas e destruíram mais de 8.900 prédios e 6.200 casas, incluindo aquela onde Fies morava com a esposa, Karen, em Santa Rosa. Pouco depois, ele começou a publicar a HQ “A Fire Story” (Uma história sobre o fogo). A obra foi transformada em livro e em animação, que ganhou um Emmy.
Embora colocar dores e infortúnios no papel seja terapêutico, ajudando a entender o que aconteceu e a razão por trás dos sentimentos, também é sofrido, descreve.
“Desenhar uma história em quadrinhos leva muito tempo. Você passa meses imerso, pensando nos piores dias da sua vida. E, então, se você tiver bastante sorte, em 15 anos, uma editora brasileira maravilhosa lançará sua história em português e você poderá falar mais um pouco sobre ela.”
Fies e Karen, têm duas filhas gêmeas adultas e vivem na casa que reconstruíram no mesmo terreno, em Santa Rosa. Como Karen tem raízes em Portugal, ver o livro publicado em português (o oitavo idioma para o qual foi traduzido) tem um significado especial para a família.
Introvertido, Fies diz que gosta de trabalhar sozinho e brinca que esteve se preparando para a pandemia durante toda a vida. Ficar em casa não é um problema, mas a incerteza sobre o futuro e o medo de pegar Covid —ou infectar alguém— tornam a situação exaustiva para ele.
Atualmente, o cartunista trabalha numa nova HQ, sobre a qual mantém segredo e que deve sair em setembro de 2021.
Esta reportagem foi produzida no âmbito do Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde, que conta com o patrocínio do Laboratório Roche e da Rede D’Or São Luiz.
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