Escola sem sentido é parte do problema dos 'nem-nem'

Grupo que não estuda nem trabalha reflete deficiências da educação brasileira

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Belo Horizonte

Na pandemia, a proporção de jovens que não estudam nem trabalham, os “nem-nem”, atingiu nível nunca visto antes no país: 29,3% no segundo trimestre de 2020.

A taxa de brasileiros entre 15 e 29 anos nessa situação até recuou para 25,5% ao final de 2020, mas ainda ficou maior que os 23,6% de 2019, mostra estudo da FGV Social, centro de políticas sociais da Fundação Getulio Vargas.

O problema atinge de maneira desproporcional aqueles com menor nível escolar. Entre pessoas sem instrução, 66,8% estavam sem ocupação profissional ou acadêmica.

Pesquisa de 2020 do IBGE também mostrou que quanto mais novo um jovem larga os estudos, maiores as chances de ficar sem ocupação.

No ano passado, o desemprego disparou entre os menos escolarizados. Segundo o Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), pessoas sem instrução e fundamental incompleto sofreram corte de 17% nas vagas. Entre os que não completaram o ensino médio, a redução foi de 14,8% na comparação com 2019.

Para a deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP), combater a evasão é requisito para enfrentar a questão dos “nem-nem” —a quem ela se refere como os “sem-sem”.

“A sociedade tenta culpar essas juventudes, que vem sendo abandonadas”, afirma.

Segundo ela, esses jovens estão parados porque não têm oportunidades de emprego e uma escola que faça sentido para eles. “Uma educação que os permita quebrar o ciclo da pobreza, construir um projeto de vida, sonhar.”

A ausência de um ensino apropriado à realidade dos estudantes também é apontada pela deputada Professora Dorinha (DEM-TO) como uma das causas da evasão que reverbera nos “nem-nem”.

“É um problema antigo que, em grande parte, decorre da falta de identidade do ensino médio, da distância dele em relação à vida da juventude e ao mundo do trabalho”, diz ela, que é presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados.

Dados sobre evasão do IBGE mostram que, em 2019, 20% das pessoas entre 14 e 29 anos ou abandonaram a escola ou nunca a frequentaram. São mais de 10 milhões de jovens, a maioria (71%) preta ou parda.

A necessidade de trabalhar foi mencionada como principal motivo para ter largado ou nunca frequentado a escola (39,1%), seguida do desinteresse em estudar (29,2%).

“O Brasil perderá PIB, produtividade, será menos desenvolvido. Não é só um crime, é um tiro no pé”, diz Tabata. Ela cita um estudo feito por Insper e Fundação Roberto Marinho, que mediu as consequências econômicas da evasão. De acordo com a pesquisa, cada aluno que deixa a escola representa perda anual de R$ 372 mil para o país. O prejuízo total chega a R$ 214 bilhões por ano.

“O jovem que não termina os estudos tem vida mais curta, recebe salários menores, é menos produtivo, tem doenças mais graves e mais chances de se envolver com a criminalidade”, elenca Tabata.

Segundo a deputada —que tem projeto de lei criando auxílio financeiro para que alunos permaneçam na escola—, investir em educação profissionalizante pode ser uma solução, tanto para a evasão quanto para os “nem-nem”.

“É uma resposta ao argumento de que a escola não faz sentido, não dá acesso a trabalho digno”, diz.
Para ela, modelos de formação como ensino técnico deveriam estar disponíveis a todos.

“O Brasil faz um papel muito ruim em respeito à formação profissional. Somos um país tão desigual que o ensino superior é visto como coisa de rico, e o técnico, de pobre, sendo que, na prática, o pobre não termina o ensino médio e não tem acesso a nenhuma dessas duas coisas.”

A deputada Professora Dorinha também se diz a favor de uma educação mais próxima do ambiente profissional, como forma de reduzir o desinteresse dos alunos. Para ela, o ensino médio tradicional, que oferta até 19 disciplinas, não garante funcionalidade.

“Em modelos ligados ao trabalho, o jovem percebe que a escola tem a ver com sua visão de futuro. Enxerga oportunidade de trabalho, de empreendedorismo, sem aquele catálogo de disciplinas no qual não vê utilidade.”

Para os que precisam trabalhar, a deputada sugere a criação de incentivos financeiros, como bolsa de permanência. Outra alternativa, na sua visão, são estágios em empresas, contanto que não se tornem brecha para contratação de mão de obra barata.

José Antonio Küller é coordenador pedagógico do Formare, projeto de qualificação profissional da Fundação Iochpe. O programa tem parcerias com empresas, que oferecem suas dependências como ambiente de aprendizagem para alunos do ensino médio de escolas públicas.

“Eles se qualificam em funções produtivas da empresa, usando as instalações e equipamentos. Aprendem na situação real de trabalho”, diz.

Os alunos recebem auxílio financeiro e devem continuar frequentando a escola para participar do programa, que dura um ano. Segundo Küller, 80% saem empregados.

O objetivo é oferecer uma formação básica para o trabalho, desenvolvendo competências comuns a diversas ocupações, como comunicação oral e escrita, trabalho em equipe e pensamento criativo. Para o coordenador, essa deveria ser a essência do que é ensinado nas escolas.

“O ensino médio está distante da vida do jovem. É um curso conteudista, acaba sendo desestimulante. Eles desistem por falta de perspectiva”, diz.

Kuller afirma que manter os alunos na escola passa por oferecer uma experiência que potencialize virtudes e capacidades. “Se você percebe que aquilo te ajuda a melhorar de vida, continua estudando.”
Cacau Rhoden, diretor do documentário “Nunca me Sonharam” —que faz um retrato do ensino médio público no Brasil—, tem visão diferente.

Para ele, o ensino profissionalizante é um caminho possível, mas a educação não pode estar a serviço apenas da formação de trabalhadores.

“Nunca teremos uma sociedade em compasso com o século 21 se estivermos formando mão de obra. Precisamos de cidadãos que conheçam seus desejos, direitos, que possam fazer escolhas e atuar de forma transformadora.”

Rhoden defende uma escola mais alinhada a temas da atualidade, como diversidade, sustentabilidade e direitos humanos. O mais urgente, para ele, é proporcionar uma educação inclusiva, que não deixe ninguém para trás. “Precisamos ouvir nosso jovens. Não é questão de dar voz. Eles têm voz, a gente é que não as ouve.”

Para Sanara Santos, produtora chefe de formações na Énois —laboratório de diversidade e inclusão no jornalismo— a falta de oportunidades ajuda a entender por que há tanta gente afastada do trabalho e dos estudos.

Um projeto que ela acompanha forma comunicadores de periferias. A maioria dos integrantes já terminou a escola, mas não conseguiu emprego formal. “Em cada edição, são 25 jornalistas e comunicadores de quebradas que passam por processo formativo. Aprendem ferramentas de cobertura, criam conexões em várias regiões do país e publicam matérias em alguns veículos. Ajuda muito, porque a maioria desses jornalistas está desempregada”, afirma.

Sanara diz que projetos de qualificação são essenciais para a inserção profissional de jovens. Mas ela lembra que o risco de ser “nem-nem” é maior para mulheres e negros.

“Até que ponto a profissionalização vai ser importante para uma pessoa preta acessar o mercado? Essa formação importa aos empregadores? Esta sociedade racista torna esses números maiores e bem demarcados: são mulheres e pessoas pretas que não estão estudando nem trabalhando.”

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