Descrição de chapéu Saúde do Brasil 2021

Medicalizamos em excesso e ignoramos os principais fatores de risco de doenças, diz especialista de Stanford

Para Robert Kaplan, indicadores de uma vida longa estão mais relacionados com bom comportamento

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São Paulo

“Se você quer um exemplo de sistema de saúde que não deveria existir é o dos Estados Unidos.” A afirmação é de Robert Kaplan, doutor em psicologia e membro do corpo docente do Centro de Pesquisa de Excelência Clínica da Universidade Stanford.

Além dos custos dos cuidados de saúde no país estarem entre os mais elevados do mundo, diz, é um sistema basicamente financiado por empregadores. “Se o patrão precisa gastar mais com o seguro do trabalhador, ele terá menos dinheiro para pagar salário.”

Robert Kaplan aparece sorrindo na foto; ao fundo, há árvores
Psicólogo Robert Kaplan em sua casa em Pacific Grove, Califórnia; ele é especialista em pesquisa de resultados de saúde e estudos comparativos de eficácia - Daniela Estlin/Folhapress

Os EUA viram o número de mortos por Covid-19 subir nas últimas semanas, e o governo tenta convencer os americanos a se vacinar. Não faltam doses, mas só 54% da população está totalmente imunizada. Segundo Kaplan, a recusa está relacionada com a polarização política do país e com uma cultura que valoriza direitos individuais. “Sei que tem um pouco disso no Brasil.”

Em entrevista, ele comenta sobre a descrença na ciência, o uso excessivo de remédios e a popularização da telemedicina, entre outros temas.

As mortes por Covid-19 estão aumentando nos EUA e só 54% dos americanos estão totalmente vacinados. O problema não é a falta de vacinas, e sim convencer as pessoas a tomá-las. Como o sr. vê essa situação? Isso está altamente associado a crenças políticas: pessoas que não foram vacinadas têm maior probabilidade de serem conservadoras politicamente.

Há o que chamamos de direitos positivos (educação gratuita, água, ar limpos etc.) e há os direitos negativos: o governo não deveria interferir no meu direito de andar de motocicleta, no meu direito de portar uma arma. Os americanos são mais propensos a esses direitos negativos, ao individualismo. Eu sei que tem um pouco disso no Brasil.

Fizemos pesquisas de opinião pública repetidamente e, se olharmos ao longo do tempo, o interessante é que as novas informações não parecem afetar a decisão das pessoas. Mesmo antes de haver uma vacina, 25% disseram que era “muito improvável” que tomassem um imunizante. Outros 15% afirmaram que seria “improvável” tomar. Depois do lançamento das vacinas da Moderna e da Pfizer, repetimos o estudo e o número dos que diziam não querer tomar era quase igual.

Como fazer as pessoas acreditarem na ciência? Não sei, temos lutado contra esse problema. Fizemos alguns estudos e, pelo menos nos EUA, os políticos são os últimos a quem a população recorre para pedir conselhos. A maior parcela é influenciada por médicos particulares. Tem sido difícil, mas acho que há mais gente sendo vacinada recentemente, porque estão ficando com medo.

Os EUA têm um movimento antivacina grande mas, ao mesmo, tempo vive uma epidemia de opioides. Quase meio milhão de pessoas morreram de overdose envolvendo qualquer opioide, incluindo os de prescrição médica e os ilícitos, entre 1999 e 2019. Só em 2019, 10 milhões usaram indevidamente opioides prescritos. Qual a sua opinião sobre esse assunto? Quando trabalhei para o Instituto Nacional de Saúde vimos um aumento massivos nas mortes. Parte desse problema pode ser explicado pela forma como os opioides foram comercializados. Eles funcionam muito bem para o controle da dor, mas não houve uma avaliação de quão perigosos e viciantes eles eram.

O livro “Deaths of Despair and the Future of Capitalism” (mortes de desespero e o futuro do capitalismo, sem edição no Brasil), de Anne Case e Angus Deaton, que ganhou o Nobel de Economia, aborda a relação entre status social e risco de morte por overdose ou suicídio. O livro fala de uma parcela da população, com baixa escolaridade e situação econômica ruim, às margens da ascensão social.

Outro livro é o “Empire of Pain: The Secret History of the Sackler Dynasty” (império da dor: a história secreta da dinastia Sackler, sem edição no Brasil), sobre a família Sackler. Mostra como eles fundaram a farmacêutica Purdue e lideraram a campanha para comercialização da OxyContin [pílula que libera lentamente a oxicodona]. A empresa fez uma abordagem agressiva com médicos, superestimou os benefícios e subestimou os efeitos colaterais.

Vivemos um excesso de medicalização na sociedade? Estamos medicalizando em excesso sendo que, quando você dá um passo para trás e olha para os melhores indicadores de uma vida longa, eles tendem a estar relacionados com o comportamento. Faça exercícios regularmente, não fume, tenha uma boa alimentação e não ganhe peso em excesso. São os principais fatores de risco para todos os tipos de doença e não prestamos atenção o suficiente.

É importante aumentar o diagnóstico e o tratamento de várias doenças, mas não há muitas evidências de que os tratamentos fazem diferença em muitos casos. Existem condições que são criadas para vender medicamentos.

Os medicamentos para baixar o colesterol são um exemplo disso? Sim. Acredito que eles são muito importantes para quem precisa deles, mas a questão é se faz sentido para pessoas com baixo risco. Quando você olha os estudos com cuidado, não parece que as pessoas com baixo risco tenham benefícios, além da exposição a efeitos colaterais. Há um grande debate entre os cardiologistas.

Como podemos combater a solicitação excessiva de exames? Cerca de um terço deles, no Brasil, nem são acessados ​​por médicos e pacientes. Como é a situação nos EUA? É um grande problema em todos os países. A mamografia, por exemplo, fornece benefícios para mulheres em uma determinada faixa etária, particularmente entre 50 e 64 anos. Não está tão claro se há ganhos para mulheres na pré-menopausa e não está totalmente definido se traz benefícios para as que têm mais de 65 ou 70 anos. Temos um mecanismo para tentar combater isso nos EUA, que se chama força-tarefa de serviços preventivos, que analisa dados, olha para as evidências e faz recomendações se o programa público deve ou não pagar por eventuais testes.

O que a Covid nos ensinou em termos de sistema de saúde? A telemedicina pode ser uma alternativa? A pandemia reorientou tudo. Havia muita resistência [à telemedicina], mas agora está acontecendo. Médicos e clínicas perceberam que podem fazer isso facilmente​ e que funciona bem. Há classificações satisfatórias de médicos e pacientes.

Acredito que a telemedicina veio para ficar e teremos que lidar com algumas questões. Por exemplo: os prestadores de serviços são licenciados por estados, então, se você tem uma licença na Califórnia, não pode prestar serviços no Arizona. Na pandemia, muitos fizeram atendimento online além das fronteiras estaduais e agora o governo tenta recuar e voltar a ser como era, mas há resistência.

Com o surgimento de novas tecnologias e procedimentos caros, até onde podem ir as contas médicas? Como estabelecer um patamar? É um problema muito sério, especialmente nos EUA, pois não temos saúde universal. Não acho que o sistema funcione bem para ninguém. Pessoas que estão bem seguradas recebem tratamento excessivo e, claro, as que não estão seguradas recebem tratamento insuficiente.

Quem tem seguro não percebe que se fizer um procedimento caro desnecessário pago pelo plano, na verdade, todos os clientes desse plano pagam por isso, porque haverá aumento do seguro.

Como nosso sistema é influenciado pelo empregador, quando o patrão gasta mais com o meu seguro de saúde, ele tem menos dinheiro para pagar salário, o que prejudica os trabalhadores. Os custos dos cuidados de saúde nos EUA são exorbitantes, muito mais elevados do que em outros países do mundo. E nossos resultados não são terríveis, mas não são incríveis.

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