Recusa de familiares em doar órgãos trava retomada de transplantes

Brasil ainda está longe de voltar ao patamar de cirurgias anterior à pandemia

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Barra Mansa (RJ)

Quando Marcia Rebelo, 53, abriu os resultados dos exames de rotina do filho, em janeiro de 2020, levou um choque. Os níveis de creatinina no sangue estavam em 7,7 mg/dL. O normal para um adulto saudável é 1,3mg/dL. O número indicava que ele estava perto da perda da função renal. Nesse dia, começou uma corrida contra o tempo.

Thiago Rebelo, 35, é paciente renal desde a infância, quando perdeu a função de um rim. É também autista e tem outras deficiências, o que o torna inelegível para diálise.

Em fevereiro daquele ano, ele conseguiu entrar na fila para receber um novo rim, mas, na semana seguinte, aumentaram os números de casos do coronavírus no país, e as cirurgias eletivas foram praticamente interrompidas.

Homem posa para foto na frente de mesas
O professor Hercules Ferreira recebeu transplante de fígado em 2021 após ser internado com hepatite fulminante - (Jardiel Carvalho/Folhapress)

Angustiada, a família, que é de Santos (SP), aguardou por meses a chegada de um órgão enquanto Thiago piorava. Durante a pandemia, houve redução do número de transplantes no Brasil.

Só neste ano o número voltou a subir, ainda timidamente. De acordo com informações compiladas pela Abto (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), foram 12,1 mil procedimentos de janeiro a junho, aumento de 17% em relação ao mesmo período de 2021, quando foram realizados 10,3 mil. O número inclui transplante de órgãos, córnea (que é um tecido) e medula (uma célula).

O país ainda está longe dos números de 2019, pré-pandemia. No primeiro semestre daquele ano foram 13 mil transplantes. Thiago esperou durante dois meses e chegou a ter perda total das funções de seu único rim operante enquanto estava na fila.

Os médicos insistiram em tentar a diálise, como última alternativa. Marcia conta que arrumava as malas para o filho ser internado quando recebeu uma ligação do Hospital do Rim, em São Paulo. Uma família de Fortaleza (CE) doaria o órgão de um parente que morrera. Graças a isso, Thiago hoje está recuperado.

Ilka Boin, secretária da Abto, diz que a recusa dos familiares na doação dos órgãos dos parentes é um obstáculo na recuperação dos indicadores.

Segundo dados compilados pela associação, entre 2021 e 2022, a negativa de familiares cresceu quatro pontos percentuais, atingindo 44% (1.608) das entrevistas realizadas. Um dos motivos para o crescimento pode ser a política de isolamento entre pacientes e familiares adotada por hospitais na pandemia.

Segundo Joel de Andrade, coordenador de transplantes do estado de Santa Catarina, participar do tratamento aumenta a confiança da família do paciente na equipe médica.

O estado está entre os líderes do Brasil em transplantes. No primeiro semestre foram realizados 37,9 por milhão de habitantes, ficando atrás apenas do Paraná, com 39,7. O médico diz que retomar o treinamento do pessoal de captação de órgãos foi fundamental para que Santa Catarina atingisse os números atuais.

Em 2007, no estado, a taxa de recusa dos familiares era de 70%. Em 2010, foi implementado o curso de comunicação de notícias em situações críticas para os profissionais de saúde, em parceria com a Espanha, país modelo na gestão de transplantes.

Andrade diz que a comunicação empática é fundamental para gerar uma boa impressão nos familiares, que estão num momento sensível. Se não for praticada, gera uma desconfiança em relação à equipe médica e o sentimento de negligência leva à negativa.

Desde então, a recusa vem diminuindo. Em 2019 chegou a 26%, contra 40% do resto do país, e Santa Catarina bateu a marca de 44,1 cirurgias por milhão de habitantes. Em todo o país, os rins foram os órgãos mais recebidos neste ano, 2.381 —350 a mais do que no mesmo período do ano passado, mas ainda 20% a menos do que em 2019.

Fígado (1.007), pulmão (45) e coração (176) também tiveram pequeno aumento no número de transplantes, ainda sem chegar a cifras de antes da pandemia. Os de córnea estão entre os mais impactados. No primeiro semestre de 2019 foram feitas 7.112 cirurgias, contra 6.690 no mesmo período de 2022. Apesar disso, o número representa um aumento de 19,5% em relação ao do ano passado.

Hércules Ferrari, 58, recebeu um fígado na pandemia. Professor universitário de Itu (SP), ele foi internado com hepatite fulminante em janeiro do ano passado. Os médicos tentaram tratamento clínico por quatro meses até optarem pelo transplante.

O estado era grave, e um doador foi encontrado em quatro dias. No Brasil, a fila é organizada segundo a gravidade do paciente, e casos urgentes são priorizados. Após a cirurgia, a recuperação foi lenta, mas o tratamento deu certo.

"Eu fui agraciado. Não foi fácil assimilar a notícia [da doença], mas eu encarei olhando para frente. A doação é um ato extremo de amor", afirma.

Para o segundo semestre, a expectativa é que os números melhorem. O Brasil aprovou a doação de órgãos de pacientes com exame positivo para Covid-19, desde que estejam assintomáticos há dez dias. Curados há dez dias também são elegíveis. O protocolo é o mesmo nos EUA e na Europa.

A medida pretende aliviar a fila represada de cerca de 51 mil pessoas que esperam por um transplante. A maior parte precisa de rim (56,4%) e córnea (39,5%). O SUS faz cerca de 90% dos transplantes no Brasil. O país é o terceiro em números absolutos desses procedimentos, atrás de EUA e China.

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