Elza Soares inspira luta contra pobreza menstrual e violência no Rio

Adolescentes escreveram projeto de lei para incluir absorventes na cesta básica; proposta foi aprovada na Alerj

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Rio de Janeiro

Aos 16 anos, Amanda Menezes, moradora da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, já acumulava um histórico de violência doméstica. O sofrimento, por motivos que preferiu não detalhar, só não era maior porque, no colégio, ela encontrou uma amiga para compartilhar suas dores.

Da percepção de que dividir alivia, surgiu a vontade de se unir a outras meninas. O resultado foi a criação do clube Girl Up Elza Soares, em 2019, que, no ano seguinte, conquistou a aprovação de uma lei estadual obrigando o governo a incluir absorventes femininos em suas cestas básicas.

"A minha ideia, na época, não era tanto promover mudanças. Eu não sabia o que dava para fazer, que a gente tinha um poder tão incrível e que conseguiria mudar as coisas de verdade. Eu achava que aquele era um espaço apenas para a gente conversar e reclamar", afirmou Amanda, estudante de comunicação social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), atualmente com 21 anos.

Retrato de Amanda, uma menina com cabelos cacheados e vermelhos na altura do ombro; sorrindo, com os braços erguidos na frente do corpo, ela segura um absorvente menstrual externo; ela veste casaco azul e blusa lilás
Amanda Menezes, 21, fundadora do coletivo Elzas, no Rio de Janeiro - Zo Guimarães/Folhapress

De encontro em encontro, o clube foi ganhando adeptas. Na pandemia, contava com 30 participantes. Elas se organizavam em grupos de estudo virtuais para tratar, principalmente, da elaboração de projetos sociais. No meio do caminho, também aprenderam novidades, como meios de utilizar as ferramentas do Google para dar visibilidade aos seus trabalhos.

Junto com as demais 29 meninas, Amanda bateu na porta de dezenas de deputados estaduais do Rio, em 2020. Teve retorno de um, Renan Ferreirinha (PSD-RJ), atual secretário municipal de Educação. A reivindicação era que algo fosse feito para acabar com a pobreza menstrual no Rio.

Para sua surpresa, a resposta do parlamentar foi que elaborassem elas próprias um projeto de lei exigindo a inclusão do item na cesta básica. O documento foi escrito em um dia e aprovado com unanimidade na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

A descoberta do Girl Up Brasil por Amanda e a amiga Dhara Ataíde, aconteceu por meio do Instagram. O passo seguinte foi entrar em contato com a entidade nacional para criar uma subdivisão carioca, representante das adolescentes da zona norte do Rio de Janeiro, o clube Girl Up Elza Soares. Na cidade, já existiam quatro clubes como o delas, todos formados por meninas da zona sul, por isso a escolha por representar a zona norte.

O movimento global Girl Up, da Organização das Nações Unidas (ONU), treina e conecta meninas para serem líderes e ativistas pela igualdade de gênero. Num primeiro momento, Amanda sentiu medo de assumir o compromisso, passou pelo descrédito dos adultos, mas também pelo estímulo da amiga.

"Ser feminista é trazer à tona conhecimentos e ajudar na comunicação entre as mulheres. É sobre coletividade, sobre se conectar", avalia a jovem.

Todas as atividades realizadas pelo grupo foram bancadas por elas próprias, que, até este ano, não tinham recebido qualquer tipo de financiamento. Apenas em 2023, o coletivo venceu um edital do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), de R$ 5 mil, para, com o apoio da Fundação Gol de Letra, capacitar adolescentes para questões climáticas e construir um jardim vertical com horta comunitária na comunidade do Caju, onde Menezes cresceu.

A Fundação Gol de Letra contribui no contato entre o coletivo e as crianças e adolescentes que participam do projeto e disponibiliza o espaço para a realização de oficinas.

Retrato de Amanda, uma menina com cabelos cacheados e vermelhos na altura do ombro; e de Gabriela, uma mulher com camiseta branca e casaco laranja; ela tem cabelos loiros, ondulados e longos
Amanda Menezes, 21, fundadora do coletivo Elzas, e Gabriela Machado, 20, estudante de Administração - Zo Guimarães/Folhapress

Hoje, o coletivo se chama apenas Elzas, ganhou vida própria, não está mais associado ao Girl Up Brasil, e de 30 passou a ter três integrantes. À medida que envelheciam, as participantes se direcionavam aos estudos e ao trabalho e ficava difícil permanecer no clube. Uma das remanescentes, a estudante de sdministração Gabriela Machado, 20, conta que pretende seguir carreira política. Em sua opinião, ser uma ‘Elza’ é "ser resistência, não desistir". Além de Amanda e Gabriela, o grupo é formado por Beatriz Diniz, 20.

A escolha do nome de Elza Soares para batizar o clube começou no Google, onde as adolescentes pesquisaram as mulheres mais importantes do Brasil. O critério era que a homenageada tivesse nascido na zona norte do Rio, tivesse uma história de sobrevivência à violência e à pobreza e estivesse viva.

A cantora se encaixou perfeitamente. Até então, elas mal tinham ouvido as músicas da artista, mas se tornaram profundas conhecedoras a partir do coletivo. O maior orgulho que têm são os dois comentários da cantora, morta em 2022, na página do clube no Instagram. Em um, Elza Soares chama as meninas de lindas e em outro envia quatro beijinhos.

Já o tema da menstruação surgiu porque o da violência doméstica, principal motivo de mobilização do grupo, era pessoalmente difícil para Amanda lidar. "Eu me sinto muito vulnerável quando se trata desse assunto. Se der uma palestra sobre isso, vou começar a chorar. Tento ir por outros meios", desabafa.

No Brasil, mais de 4 milhões de meninas não têm acesso a itens básicos de cuidados menstruais nas escolas, segundo a Unicef. Essa é uma das razões para faltarem às aulas e se sentirem sem dignidade.

Pesquisadora do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Corina Mendes diz que, sem produtos básicos como absorventes, muitas mulheres recorrem a miolos de pão e pedaços de papel, sem a higiene adequada, e por isso ficam sujeitas à infertilidade, doenças sexuais, exclusão social e sofrimentos psíquicos.

"Existe um processo, hoje, de ressignificação da menstruação. Grupos, como o Elzas, se apropriam dela como uma ferramenta de poder. Conversar gera confiança, saída do silêncio", enfatizou a pesquisadora.

A avaliação da socióloga Lígia Cardieri, secretária da Rede Feminista de Saúde, é que as mulheres ganharam força nos últimos anos. "Voltamos às primeiras páginas no mundo, porque a questão da democracia voltou a ser problemática", acredita.

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