Artista ou vigilante? Belga usa câmeras públicas para mostrar produção de 'instagramers'

Dries Depoorter descobriu imagens de vídeo de pessoas trabalhando duro para captar a melhor foto para a rede social

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Kashmir Hill
Nova York | The New York Times

David Welly Sombra Rodrigues, um professor de francês de 35 anos, adora viajar. Depois que a pandemia o obrigou a oferecer suas aulas de idiomas virtualmente, ele aproveitou a oportunidade e se mudou do Brasil para a Europa, onde podia pegar trens para novas cidades, com grande deleite, tudo documentado no Instagram.

Este mês, uma foto que ele tirou na Irlanda para seus mais de 7.000 seguidores na plataforma viralizou. Mas ele não percebeu até que um amigo lhe enviou uma mensagem, indicando-lhe uma notícia sobre "The Follower" [O Seguidor], um projeto de arte digital que mostra o quanto pode ser capturado por webcams de espaços públicos –e como pode ser surpreendente para quem é involuntariamente filmado por elas.

O artista combinou fotos do Instagram com imagens de vídeo que mostravam o processo de tirá-las. Ele não incluiu os nomes ou perfis dos usuários, mas os amigos de Rodrigues o reconheceram.

Foto The Following
Reprodução/The Following

No caso dele, uma webcam operada por uma empresa chamada EarthCam captou o esforço feito para tirar uma foto aparentemente casual dele encostado na típica entrada vermelha do Temple Bar em Dublin, na Irlanda.

Ele tentou alguns ângulos e poses diferentes, fez uma pequena troca de roupa e, eventualmente, acrescentou um adereço –uma caneca da cerveja do famoso pub. Matérias sobre o projeto descreviam incorretamente os sujeitos da peça, incluindo Rodrigues, que atende por @avecdavidwelly no Instagram, como influenciadores com centenas de milhares de seguidores. Mas a maioria deles eram apenas usuários típicos de rede social, com audiências muito menores.

"Fiquei completamente chocado", disse Rodrigues em entrevista ao Zoom. "Eu não esperava que alguém estivesse me gravando."

O artista por trás de "The Follower", Dries Depoorter, disse que seu projeto demonstra tanto o artifício das imagens nas redes sociais quanto os perigos de formas de vigilância cada vez mais automatizadas.

"Se uma pessoa pode fazer isso, o que um governo pode fazer?", indagou Depoorter, 31.

Ao vivo da Times Square

Ñ PHOTO MOVED IN ADVANCE AND NOT FOR USE - ONLINE OR IN PRINT - BEFORE 12:01 A.M. ET ON SUNDAY, SEPT. 25, 2022 Ñ  The artist Dries Depoorter in Ghent, Belgium, on Sept. 20, 2022. Depoorter unearthed video footage of people working hard to capture the perfect shot for Instagram. It is a lesson in the artifice of social media and the ubiquity of surveillance. (Lauren Fleishman/The New York Times)
Depoorter diz que seu projeto demonstra tanto a artificialidade das imagens nas mídias sociais quanto os perigos de formas cada vez mais automatizadas de vigilância - Lauren Fleishman - 25.set.2022/NYT

Depoorter, que mora em Ghent, na Bélgica, teve a ideia de "The Follower" há mais de um mês, pesquisando câmeras instaladas em locais públicos que ele poderia usar para outro projeto artístico. Enquanto assistia a um feed ao vivo da Times Square, ele viu uma mulher tirando fotos de si mesma durante "muito tempo". Pensando que ela poderia ser uma influenciadora, ele tentou encontrar o produto de sua extensa sessão entre fotos do Instagram recém-marcadas como da Times Square.

Ele não conseguiu nada, mas isso o fez pensar.

A transmissão 24 horas que Depoorter assistiu –intitulada "Live From NYC’s Times Square!"– foi fornecida pela empresa EarthCam, de Nova Jersey, especializada em feeds de câmeras em tempo real. A EarthCam montou uma rede de webcams de transmissão ao vivo "para transportar pessoas para locais interessantes e únicos ao redor do mundo que podem ser difíceis ou impossíveis de experimentar pessoalmente", de acordo com seu site. Fundada em 1996, a EarthCam rentabiliza as câmeras por meio de publicidade e licenciamento das filmagens.

Depoorter percebeu que poderia criar uma maneira automatizada de combinar essas câmeras publicamente disponíveis com as fotos que as pessoas postavam no Instagram. Assim, durante um período de duas semanas, ele coletou imagens da EarthCam transmitidas online da Times Square em Nova York, do estádio de beisebol Wrigley Field em Chicago e do Temple Bar em Dublin.

Rand Hammoud, ativista contra a vigilância da organização global de direitos humanos Access Now, disse que o projeto ilustrou a frequência com que as pessoas são filmadas sem seu conhecimento por câmeras de vigilância, e como é fácil montar esses movimentos usando tecnologias automatizadas de digitalização biométrica.

"É uma realidade distópica que muitas pessoas não percebem que está presente hoje", disse Hammoud.

A EarthCam se recusou a responder a perguntas sobre suas câmeras e os riscos que elas podem representar para a privacidade dos indivíduos que são filmados por elas, numa era de tecnologias de rastreamento biométrico mais poderosas. O diretor de marketing da empresa, Simon Kerr, disse apenas que Depoorter "usou imagens e vídeos da EarthCam sem autorização, e tal uso viola nossos direitos autorais".

Depoorter disse que seu projeto não é sobre as empresas específicas que o possibilitaram. "Não é só a EarthCam", disse ele. "Existem muitas câmeras desprotegidas em todo o mundo."

Ñ PHOTO MOVED IN ADVANCE AND NOT FOR USE - ONLINE OR IN PRINT - BEFORE 12:01 A.M. ET ON SUNDAY, SEPT. 25, 2022 Ñ  The artist Dries Depoorter in Ghent, Belgium, on Sept. 20, 2022. Depoorter unearthed video footage of people working hard to capture the perfect shot for Instagram. It is a lesson in the artifice of social media and the ubiquity of surveillance. (Lauren Fleishman/The New York Times)
Dries Depoorter em seu estúdio em Ghent, na Bélgica - Lauren Fleishman - New York Times

Violação de privacidade

Ao gravar os feeds da EarthCam, Depoorter baixou simultaneamente fotos públicas do Instagram que os usuários marcavam como sendo desses locais.

O Instagram desencoraja a coleta de fotos em massa de sua plataforma. "Coletar informações de forma automatizada" é uma violação dos termos de uso da empresa e pode levar um usuário a ser banido.

"Entramos em contato com o artista para saber mais sobre esta peça e entender seu processo", disse Thomas Richards, porta-voz da Meta, empresa proprietária do Instagram. "A privacidade é uma prioridade para nós, assim como proteger as informações das pessoas quando elas compartilham conteúdo em nossas plataformas."

Após a coleta de dados da EarthCam e do Instagram, veio a parte difícil: encontrar as pessoas certas no palheiro digital.

Depoorter já havia feito projetos de arte sobre o olhar surpreendente de câmeras públicas que o obrigaram a escrever um software para classificar muitas imagens de vídeo. No ano passado, ele criou o projeto "Roladores flamengos", que destaca políticos belgas nas redes sociais olhando para seus telefones durante sessões parlamentares transmitidas ao vivo no YouTube. Antes disso, ele tinha usado câmeras de vigilância abertas para detectar pedestres que ignoravam os semáforos vermelhos –fotos que ele vendia online pelo custo das multas que os infratores teriam de pagar se fossem pegos.

Para pesquisar os rostos das fotos do Instagram nas imagens da EarthCam, Depoorter contou com um software de reconhecimento facial de código aberto, que pode ser encontrado em sites como GitHub.

"Não é perfeito", disse ele. Foi necessário fazer uma extensa revisão manual das correspondências sugeridas para encontrar aquelas que eram precisas. Quanto ao punhado de pessoas que ele escolheu para "The Follower", Depoorter queria um grupo diversificado, que incluiu um casal tirando uma foto se beijando em Dublin, dois amigos passeando pela Times Square e uma mulher que tinha centenas de milhares de seguidores no Instagram. Depoorter não entrou em contato com eles com antecedência e disse que não teve notícias de nenhum deles.

Suresh Venkatasubramanian, ex-assessor de tecnologia da Casa Branca e professor da Universidade Brown, disse que achou o projeto intrigantemente "subversivo", ao mostrar as possibilidades de invasão de privacidade com a tecnologia moderna. Mas ele disse que a utilização da vigilância de Depoorter em "pessoas aleatórias" foi inquietante.

"Você não invade a casa de alguém para mostrar que pode invadir sua casa", disse Venkatasubramanian. "Você não deve fazer isso a menos que lhe peçam."

Um sujeito disposto

Depoorter está sediado na União Europeia, que tem regras firmes de privacidade, chamadas Regulamento Geral de Proteção de Dados, para proteger os dados pessoais dos cidadãos, incluindo suas fotos e informações biométricas. Omer Tene e Gabe Maldoff, advogados de privacidade do escritório de advocacia Goodwin, disseram que há isenções na lei para expressão artística, mas que os artistas devem estar atentos para como o trabalho afetará seus temas.

"Não acho que a ‘arte’ lhe dá um passe livre", disse Maldoff.

Depoorter não revelou os nomes ou identificadores do Instagram das pessoas que incluiu em seu projeto porque, segundo ele, não queria que elas "recebessem muitas mensagens".

Ele se recusou a identificá-las para o The New York Times, com exceção de Rodrigues, com a condição de que o Times não escrevesse sobre o professor de francês brasileiro sem sua permissão explícita.

Rodrigues disse que não se importa com a atenção. "Adoro tirar fotos", disse. "Adoro gravar vídeos. Eu não sou 'low profile'."

Rodrigues tem sua conta no Instagram há uma década. Ele a usa para divulgar seu negócio, mostrando aos potenciais clientes as experiências que uma nova linguagem pode proporcionar. Ele disse que não se importou de ser incluído no projeto de Depoorter, que ficou feliz com o aumento da exposição e até postou sobre isso no Instagram, como um "story" que expirou após 24 horas.

Erramos: o texto foi alterado

A cidade de Dublin fica na Irlanda, não na Escócia. O texto foi corrigido.

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