Descrição de chapéu The New York Times

No cemitério de celebridades em Paris, a natureza ganha atenção de visitantes

O esverdeamento do local trouxe um novo grupo de turistas, que inclui observadores de pássaros

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Constant Méheut
Paris | The New York Times

Folhas secas farfalhavam sob os passos de Benoît Gallot enquanto ele percorria o terreno acidentado. Parando perto de arbustos de louro e sabugueiro, ele afastou a folhagem para revelar uma colunata de pedra em ruínas. Um periquito, empoleirado numa árvore próxima, cantou.

Parecia uma cena nas profundezas de uma das florestas luxuriantes da França –mas foi dentro de um dos cemitérios mais visitados do mundo, o Père-Lachaise, aninhado entre avenidas movimentadas no leste de Paris.

Vista do cemitério Père-Lachaise, que se transformou em um exuberante jardim, em Paris
Vista do cemitério Père-Lachaise, que se transformou em um exuberante jardim, em Paris - Dmitri Kostiukov/The New York Times

O cemitério é conhecido há muito tempo como o local de repouso final de artistas célebres, incluindo Jim Morrison, Oscar Wilde e Édith Piaf. Mas nos últimos anos também se tornou um refúgio para a flora e a fauna da cidade. Raposas e corujas estão entre os muitos animais que o chamam de lar.

"A natureza está recuperando seus direitos", disse Gallot, o curador do cemitério, responsável pela manutenção dos terrenos e alocação de sepulturas, enquanto continuava sua caminhada entre as lápides cercadas por trepadeiras e ervas daninhas.

O esverdeamento da necrópole decorre de um plano criado há uma década para eliminar os pesticidas e transformar o cemitério num dos pulmões verdes de Paris, enquanto a densa capital redesenha sua paisagem urbana para torná-la mais ecológica diante do aumento das temperaturas.

Ao encorajar a vida silvestre em um local dedicado à morte, essas iniciativas também provocaram uma pequena revolução nos costumes dos cemitérios franceses.

"Fizemos uma reviravolta completa", disse Gallot. O Père-Lachaise mostra que "os vivos e os mortos podem coexistir", acrescentou.

Inaugurado em 1804, o cemitério de 44 hectares –batizado em homenagem ao confessor de Luís 14, o reverendo François de La Chaise d'Aix– se localiza numa colina com vista para o centro de Paris. Suas lápides mais antigas ficavam ao lado de árvores e plantas num cenário semelhante a um parque.

À medida que a reputação do local crescia, entretanto, sua vegetação luxuriante diminuía. Primeiro foi a chegada dos supostos restos mortais do dramaturgo Molière e do poeta Jean de La Fontaine, transferidos em 1817, levando os parisienses a querer reivindicar seus próprios lugares de repouso final perto dos ilustres residentes. Abóbadas e capelas esculpidas brotaram no terreno irregular do cemitério, tirando partes da vida silvestre.

Hoje, cerca de 1,3 milhão de pessoas, incluindo Proust, Chopin e Sarah Bernhardt, estão enterradas lá, número igual a cerca de metade da população viva de Paris.

Então, na segunda metade do século passado, a natureza recuou ainda mais como resultado de intensas operações de capina. Ao contrário do norte e do centro da Europa –como na Grã-Bretanha e na Áustria, onde as lápides se espalham por paisagens verdejantes–, a França e outros países latinos preferem cemitérios austeros e pedregosos, de acordo com Bertrand Beyern, um guia e historiador de cemitérios.

"A menor flor tinha de ser eliminada", disse Jean-Claude Lévêque, jardineiro do cemitério desde 1983. Ele lembrou que, várias vezes por ano, ele e outros despejavam galões de pesticidas nos cemitérios. "Era a mentalidade do 'campo de golfe’."

Essa abordagem começou a mudar em 2011, quando o governo municipal incentivou os cemitérios de Paris a eliminar gradualmente os pesticidas, por preocupação ambiental. Gallot, que então trabalhava em outro cemitério na periferia da capital, disse ter sido inicialmente "muito hostil" à iniciativa. Mas ver as flores desabrocharem novamente e os pássaros retornarem aos ninhos o conquistou.

Em 2015, entrou em vigor uma proibição total de herbicidas, e Xavier Japiot, um naturalista que trabalha para a prefeitura de Paris, disse que um "rico ecossistema" se desenvolveu como resultado.

As folhas ovaladas do cíclame –com flores brancas, rosa ou lavanda– surgiram entre as criptas elevadas. Coros inteiros de pássaros, incluindo tordos e papa-moscas, se instalaram no enorme dossel do cemitério.
Alguns visitantes acharam as mudanças não apenas agradáveis, mas também reconfortantes.

"Essa diversidade natural distrai sua atenção da morte", disse Philippe Lataste, aposentado de 73 anos que vagava pelas vielas de paralelepípedos do Père-Lachaise. "É menos assustador."

A explosão mais espetacular de vida silvestre ocorreu durante um período de luto excepcional: a crise do coronavírus. Em abril de 2020, em uma Paris fantasmagórica sob bloqueio, Gallot encontrou um par de raposas e seus quatro filhotes no cemitério, um avistamento raro nos limites da cidade.

"Ver os filhotes naquele momento foi muito bom", disse Gallot, lembrando um período marcado por "funerais ininterruptos".

O esverdeamento do local trouxe um novo grupo de visitantes, cujo número total ultrapassa 3 milhões em um ano típico. Agora, ao lado dos fluxos de turistas em busca das sepulturas mais famosas, há mais moradores locais atraídos pela promessa de um refúgio na natureza.

Em uma manhã de domingo recente, 20 desses amantes da natureza participaram de uma observação de aves no cemitério, sem se importar com o frio intenso que deixava seus narizes vermelhos. De binóculo na mão, eles ouviram atentamente os comentários de Philippe Rance e Patrick Suiro, dois ornitólogos amadores que fizeram do Père-Lachaise seu novo playground.

A espécie mais famosa do local é o periquito-de-rosa-anel, cujas penas verdes e gorjeios agudos são difíceis de não notar. Diz a lenda que os progenitores dos periquitos, nativos da África e da Índia, escaparam de um contêiner num aeroporto de Paris na década de 1970, e bandos de pássaros se espalharam pela capital francesa.

Suiro disse que contou mais de cem espécies de aves nas últimas duas décadas. Ele ficou feliz porque a vasta população de gatos do cemitério, alimentada por fãs de felinos que deixavam ração em caixas abertas, diminuiu, principalmente por causa das operações de esterilização, abrindo caminho para os tordos.

Naturalista apaixonado, Suiro também documentou dezenas de orquídeas, que gosta de chamar por seus nomes latinos. "Epipactis helleborine", disse com entusiasmo durante a excursão de domingo, apontando para um caule frágil que se erguia entre duas lápides cobertas de musgo.

Beyern, o guia e historiador de cemitérios, explica que o esverdeamento do Père-Lachaise reflete uma mudança social mais ampla em direção ao ambientalismo.

Em Paris, capital com baixa arborização, a abóbada vegetal do cemitério ajuda a atenuar os efeitos de verões cada vez mais escaldantes. Em toda a França surgiram cemitérios "ecologicamente corretos", incentivando o uso de caixões biodegradáveis e lápides de madeira.

O novo cenário de parque no Père-Lachaise teve consequências inesperadas.

Funcionários do cemitério se acostumaram a lidar com fãs se embebedando perto do túmulo de Morrison ou cobrindo a lápide de Wilde com beijos de batom. Mas agora, disse Gallot, eles estão ocupados perseguindo corredores e pessoas que estendem cobertores para piqueniques.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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