Casa de Manoel de Barros, em MS, relembra rotina de palavras, uísques e novelas

Local em Campo Grande onde poeta viveu até a morte hoje serve de museu e conta sua relação com as letras

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Campo Grande

Quantos anos um homem leva para ficar velho?

Ora, "poeta nunca bota data de existência", Manoel de Barros começa assim a responder a pergunta que ele mesmo levantou. Conclui o texto em letras tão miúdas que é melhor sacar a lupa à disposição na mesinha: "Tenho em mim ainda o frescor das palavras iniciais".

Manoel de Barros em sua casa, em Campo Grande (MS)
Manoel de Barros em sua casa, em Campo Grande (MS) - Pedro Spíndola

Esse manuscrito e outras porções literárias do poeta, entre os maiores que o Brasil já teve, estão preservadas na Casa-Quintal Manoel de Barros. Ali, num bairro de elite em Campo Grande (MS), o autor de "O Livro das Ignorãças" viveu suas últimas três décadas, até morrer, em 2014, aos 97 anos.

Ele e a esposa, Stella, com quem acumulou 64 anos de casamento, negociaram com o arquiteto cada quina. Manoel, por exemplo, cismou que queria uma casa feita de tijolos em pé. Algo tecnicamente inviável para o todo, mas que prevaleceu em alguns pontos do imóvel, como a fachada.

Nunca pararia de pé uma versão convencional do criador de versos como "tudo que não invento é falso". Herdada por um neto, Silvestre, a residência hoje é um museu para acessar a literatura e também a intimidade de Manoel, um homem de natureza tímida, que recorria a uma dose de coragem para receber eventuais visitantes.

Ele sentava no lado direito do sofá, espaço cativo seu, e tomava seu uísque com pedra de gelo feita da água de coco, para relaxar e engatar conversas menos acanhadas. Stella costumava oferecer seus famosos pães de queijo para os convidados. Servia-os numa sala onde hoje ficam à mostra parte da coleção de vinis de Manoel. De Beethoven, de quem colecionou mais de 20 discos, a Gilberto Gil.

Ainda no terreno artístico, era fã de Miró, Picasso e Charles Chaplin. E também um noveleiro confesso —viu inclusive a primeira versão de "Pantanal", o folhetim batizado com o nome da região onde ele morou por um tempo, numa fazenda herdada do pai, a Santa Cruz, até se mudar para a casa em Campo Grande.

Manoel é de Cuiabá (MT), mas foi estudar no Rio, como tantos jovens bem de vida da sua geração, e se afeiçoou pela então capital do Brasil. Diplomado em direito, queria vender o terreno de 14 mil hectares numa área pantaneira chamada de Nhecolândia. Sua ideia era pegar a grana e abrir uma pequena editora em terras cariocas.

Foi Stella quem balançou a cabeça em negativo. Manoel cedeu, ficou com a fazenda e por quase uma década não escreveu um poeminha sequer. O casal se mudou para lá com o recém-nascido João, enquanto Martha e Pedro, os filhos mais velhos, ficaram num internato no Rio.

Manoel tocava os dias como um típico fazendeiro, saindo a cavalo e tratando bezerros feridos por parasitas. Os tantos passarinhos que sobrevoam sua obra vêm da zona rural que o abrigou na infância e depois, na fase mais adulta. Mas odiava ser chamado de "poeta do Pantanal", rótulo que a imprensa tentou lhe impingir por anos.

Preferia ser o "poeta das palavras", e elas voltariam com tudo em seu cotidiano, passado o período de estiagem literária. "Ele lança um livro um atrás do outro, e [ganha] premiações também, escrevendo até próximo de morrer", lembra Valéria Arruda, um dos seis voluntários que se revezam para recepcionar interessados em conhecer o museu.

As visitas, sempre guiadas e para pequenos grupos, têm que ser agendadas previamente, pela plataforma Sympla. Sugere-se uma contribuição de R$ 35.

Arruda intercala o tour pelo endereço com historietas sobre seu dono, como o hábito de tomar goles de uísque sentado numa poltrona posicionada na porta do quintal, de modo que o sol esquentasse seus pés. Como nem só de goró vive o homem, ele tomava todo dia uma mistura com guaraná em pó, sistematicamente mexida com três colheradas.

Alguns rearranjos dão ares museológicos para o lar, como as projeções sobre a colcha branca na cama onde Manoel e Stella dormiam. A estrutura está até hoje cheia de remendos, porque eles tinham costume de gastar os móveis até o limite. Só os descartavam quando não tinha mais nenhum uso. Mesmo a rede no quintal só era jogada fora quando enfim rasgava, após uma intensa vida útil. Dela os moradores contemplavam uma jabuticabeira plantada quando se mudaram, em 1986.

O projeto da casa tem preocupações com sustentabilidade que, se hoje andam mais populares, garantiam pioneirismo nos anos 1980, quando foi tirado do papel. Os cômodos têm farta entrada de luz e ar, para economizar energia, e jardins ocupando seus vãos.

Há ainda elementos colhidos de temporadas de Manoel no exterior. A referência para o corrimão metálico, que soava até metido a besta para a época, veio de Nova York.

Outro cômodo, antes usado como um depósito, foi adaptado para contar frações da vida de Manoel. Valéria Arruda, a guia do dia, lembra do dia em que ele foi detido pela polícia de Getúlio Vargas. Ainda estava no primeiro ano da faculdade de direito, em 1934, quando um oficial encontrou uma brochura no quarto de pensão que alugava. O material foi tachado de comunista.

"Nossa Senhora de Minha Escuridão", que seria seu primeiro livro, foi confiscado e nunca mais viu a luz do dia. Manoel, que depois até se filiaria ao Partido Comunista, chegou a brincar que justo aquela era sua obra mais religiosa.

A estreia literária veio três anos depois. Chamou o livro de "Poemas Concebidos sem Pecado".

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